PARÓQUIA S. MIGUEL DE QUEIJAS

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Ano da Vida Consagrada

Voc008aCarta Apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas

Consagradas e consagrados caríssimos!
Escrevo-vos como Sucessor de Pedro, a quem o Senhor Jesus confiou a tarefa de confirmar na fé os seus irmãos (cf. Lc 22, 32), e escrevo-vos como vosso irmão, consagrado a Deus como vós.

Juntos, damos graças ao Pai, que nos chamou para seguir Jesus na plena adesão ao seu Evangelho e no serviço da Igreja e derramou nos nossos corações o Espírito Santo que nos dá alegria e nos faz dar testemunho ao mundo inteiro do seu amor e da sua misericórdia.

Fazendo-me eco do sentir de muitos de vós e da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, por ocasião do quinquagésimo aniversário da Constituição dogmática Lúmen gentium sobre a Igreja, que no capítulo VI trata dos religiosos, bem como do Decreto Perfectae caritatis sobre a renovação da vida religiosa, decidi proclamar um Ano da Vida Consagrada. Terá início no dia 30 do corrente mês de Novembro, I Domingo de Advento, e terminará com a festa da Apresentação de Jesus no Templo a 2 de Fevereiro de 2016.

Depois de ter ouvido a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, indiquei como objectivos para este Ano os mesmos que São João Paulo II propusera à Igreja no início do terceiro milénio, retomando, de certa forma, aquilo que já havia indicado na Exortação pós-sinodal Vita consecrata: «Vós não tendes apenas uma história gloriosa para recordar e narrar, mas uma grande história a construir! Olhai para o futuro, para o qual vos projecta o Espírito a fim de realizar convosco ainda coisas maiores» (n. 110).

I. Os objectivos do Ano da Vida Consagrada

1. O primeiro objectivo é olhar com gratidão o passado. Cada um dos nossos Institutos provém duma rica história carismática. Nas suas origens, está presente a acção de Deus que, no seu Espírito, chama algumas pessoas para seguirem de perto a Cristo, traduzirem o Evangelho numa forma particular de vida, lerem com os olhos da fé os sinais dos tempos, responderem criativamente às necessidades da Igreja. Depois a experiência dos inícios cresceu e desenvolveu-se, tocando outros membros em novos contextos geográficos e culturais, dando vida a modos novos de implementar o carisma, a novas iniciativas e expressões de caridade apostólica. É como a semente que se torna árvore alargando os seus ramos.

Neste Ano, será oportuno que cada família carismática recorde os seus inícios e o seu desenvolvimento histórico, para agradecer a Deus que deste modo ofereceu à Igreja tantos dons que a tornam bela e habilitada para toda a boa obra (cf. Lumen gentium, 12).

Repassar a própria história é indispensável para manter viva a identidade e também robustecer a unidade da família e o sentido de pertença dos seus membros. Não se trata de fazer arqueologia nem cultivar inúteis nostalgias, mas de repercorrer o caminho das gerações passadas para nele captar a centelha inspiradora, os ideais, os projectos, os valores que as moveram, a começar dos Fundadores, das Fundadoras e das primeiras comunidades. É uma forma também para se tomar consciência de como foi vivido o carisma ao longo da história, que criatividade desencadeou, que dificuldades teve de enfrentar e como foram superadas. Poder-se-á descobrir incoerências, fruto das fraquezas humanas, e talvez mesmo qualquer esquecimento de alguns aspectos essenciais do carisma. Tudo é instrutivo, tornando-se simultaneamente apelo à conversão. Narrar a própria história é louvar a Deus e agradecer-Lhe por todos os seus dons.

De modo particular, agradecemos-Lhe por estes últimos 50 anos após o Concílio Vaticano II, que representou uma «ventania» do Espírito Santo sobre toda a Igreja; graças ao Concílio, de facto, a vida consagrada empreendeu um fecundo caminho de renovação, o qual, com as suas luzes e sombras, foi um tempo de graça, marcado pela presença do Espírito.

Que este Ano da Vida Consagrada seja ocasião também para confessar, com humildade e simultaneamente grande confiança em Deus Amor (cf. 1 Jo 4, 8), a própria fragilidade e para a viver como experiência do amor misericordioso do Senhor; ocasião para gritar ao mundo com força e testemunhar com alegria a santidade e a vitalidade presentes na maioria daqueles que foram chamados a seguir Cristo na vida consagrada.

2. Além disso, este Ano chama-nos a viver com paixão o presente. A lembrança agradecida do passado impele-nos, numa escuta atenta daquilo que o Espírito diz hoje à Igreja, a implementar de maneira cada vez mais profunda os aspectos constitutivos da nossa vida consagrada.

Desde os inícios do primeiro monaquismo até às «novas comunidades» de hoje, cada forma de vida consagrada nasceu da chamada do Espírito para seguir a Cristo segundo o ensinamento do Evangelho (cf.Perfectae caritatis, 2). Para os Fundadores e as Fundadoras, a regra em absoluto foi o Evangelho; qualquer outra regra pretendia apenas ser expressão do Evangelho e instrumento para o viver em plenitude. O seu ideal era Cristo, aderir inteiramente a Ele podendo dizer com Paulo: «Para mim, viver é Cristo» (Flp 1, 21); os votos tinham sentido apenas para implementar este seu amor apaixonado.

A pergunta que somos chamados a pôr neste Ano é se e como nos deixamos, também nós, interpelar pelo Evangelho; se este é verdadeiramente o «vademecum» para a vida de cada dia e para as opções que somos chamados a fazer. Isto é exigente e pede para ser vivido com radicalismo e sinceridade. Não basta lê-lo (e no entanto a leitura e o estudo permanecem de extrema importância), nem basta meditá-lo (e fazemo-lo com alegria todos os dias); Jesus pede-nos para pô-lo em prática, para viver as suas palavras.

Jesus – devemos perguntar-nos ainda – é verdadeiramente o primeiro e o único amor, como nos propusemos quando professamos os nossos votos? Só em caso afirmativo, poderemos – como é nosso dever – amar verdadeira e misericordiosamente cada pessoa que encontramos no nosso caminho, porque teremos aprendido d'Ele o que é o amor e como amar: saberemos amar, porque teremos o seu próprio coração.

Os nossos Fundadores e Fundadoras sentiram em si mesmos a compaixão que se apoderava de Jesus quando via as multidões como ovelhas extraviadas sem pastor. Tal como Jesus, movido por tal compaixão, comunicou a sua palavra, curou os doentes, deu o pão para comer, ofereceu a sua própria vida, assim também os Fundadores se puseram ao serviço da humanidade, à qual eram enviados pelo Espírito servindo-a dos mais diversos modos: com a intercessão, a pregação do Evangelho, a catequese, a instrução, o serviço aos pobres, aos doentes... A inventiva da caridade não conheceu limites e soube abrir inúmeras estradas para levar o sopro da Evangelho às culturas e aos sectores sociais mais diversos.

O Ano da Vida Consagrada questiona-nos sobre a fidelidade à missão que nos foi confiada. Os nossos serviços, as nossas obras, a nossa presença correspondem àquilo que o Espírito pediu aos nossos Fundadores, sendo adequados para encalçar as suas finalidades na sociedade e na Igreja actual? Há algo que devemos mudar? Temos a mesma paixão pelo nosso povo, solidarizamo-nos com ele até ao ponto de partilhar as suas alegrias e sofrimentos, a fim de podermos compreender verdadeiramente as suas necessidades e contribuir com a nossa parte para lhes dar resposta? Como a seu tempo pedia São João Paulo II, «a mesma generosidade e abnegação que impeliram os Fundadores devem levar-vos a vós, seus filhos espirituais, a manter vivos os seus carismas, que continuam – com a mesma força do Espírito que os suscitou – a enriquecer-se e adaptar-se, sem perder o seu carácter genuíno, para se porem ao serviço da Igreja e levarem à plenitude a implantação do seu Reino»1.

Ao recordar as origens, há que evidenciar mais um componente do projecto de vida consagrada. Os Fundadores e as Fundadoras viviam fascinados pela unidade dos Doze ao redor de Jesus, pela comunhão que caracterizava a primeira comunidade de Jerusalém. Cada um deles, ao dar vida à sua comunidade, pretendeu reproduzir tais modelos evangélicos, formar um só coração e uma só alma, gozar da presença do Senhor (cf. Perfectae caritatis, 15).

Viver com paixão o presente significa tornar-se «peritos em comunhão», ou seja, «testemunhas e artífices daquele "projecto de comunhão" que está no vértice da história do homem segundo Deus»2. Numa sociedade marcada pelo conflito, a convivência difícil entre culturas diversas, a prepotência sobre os mais fracos, as desigualdades, somos chamados a oferecer um modelo concreto de comunidade que, mediante o reconhecimento da dignidade de cada pessoa e a partilha do dom que cada um é portador, permita viver relações fraternas.

Por isso, sede mulheres e homens de comunhão, marcai presença com coragem onde há disparidades e tensões, e sede sinal credível da presença do Espírito que infunde nos corações a paixão por todos serem um só (cf. Jo 17, 21). Vivei a mística do encontro: a capacidade de ouvir atentamente as outras pessoas; «a capacidade de procurar juntos o caminho, o método»3, deixando-vos iluminar pelo relacionamento de amor que se verifica entre as três Pessoas divinas (cf. 1 Jo 4, 8) e tomando-o como modelo de toda a relação interpessoal.

3. Abraçar com esperança o futuro é o terceiro objectivo que se pretende neste Ano. Conhecemos as dificuldades que enfrenta a vida consagrada nas suas diversas formas: a diminuição das vocações e o envelhecimento, especialmente no mundo ocidental, os problemas económicos na sequência da grave crise financeira mundial, os desafios da internacionalidade e da globalização, as insídias do relativismo, a marginalização e a irrelevância social... É precisamente nestas incertezas, que partilhamos com muitos dos nossos contemporâneos, que se actua a nossa esperança, fruto da fé no Senhor da história que continua a repetir-nos: «Não terás medo (...), pois Eu estou contigo» (Jr 1, 8).

A esperança de que falamos não se funda sobre números ou sobre as obras, mas sobre Aquele em quem pusemos a nossa confiança (cf. 2 Tm 1, 12) e para quem «nada é impossível» (Lc 1, 37). Esta é a esperança que não desilude e que permitirá à vida consagrada continuar a escrever uma grande história no futuro, para o qual se deve voltar o nosso olhar, cientes de que é para ele que nos impele o Espírito Santo a fim de continuar a fazer, connosco, grandes coisas.

Não cedais à tentação dos números e da eficiência, e menos ainda à tentação de confiar nas vossas próprias forças. Com atenta vigilância, perscrutai os horizontes da vossa vida e do momento actual. Repito-vos com Bento XVI: «Não vos unais aos profetas de desventura, que proclamam o fim ou a insensatez da vida consagrada na Igreja dos nossos dias; pelo contrário, revesti-vos de Jesus Cristo e muni-vos das armas da luz – como exorta São Paulo (cf. Rm 13, 11-14) –, permanecendo acordados e vigilantes»4. Prossigamos, retomando sempre o nosso caminho com confiança no Senhor.

Dirijo-me sobretudo a vós, jovens. Sois o presente, porque viveis já activamente dentro dos vossos Institutos, prestando uma decisiva contribuição com o frescor e a generosidade da vossa opção. Ao mesmo tempo sois o seu futuro, porque em breve sereis chamados a tomar nas vossas mãos a liderança da animação, da formação, do serviço, da missão. Este Ano há-de ver-vos protagonistas no diálogo com a geração que vai à vossa frente; podereis, em comunhão fraterna, enriquecer-vos com a sua experiência e sabedoria e, ao mesmo tempo, repropor-lhe o ideal que conheceu no seu início, oferecer o ímpeto e o frescor do vosso entusiasmo, a fim de elaborardes em conjunto novos modos de viver o

Evangelho e respostas cada vez mais adequadas às exigências de testemunho e de anúncio.
Fico feliz em saber que ides ter ocasiões para vos encontrardes entre vós, jovens dos diferentes Institutos. Que o encontro se torne caminho habitual de comunhão, de apoio mútuo, de unidade.

II. As expectativas para o Ano da Vida Consagrada
Que espero eu, em particular, deste Ano de graça da vida consagrada?

1. Que seja sempre verdade aquilo que eu disse uma vez: «Onde estão os religiosos, há alegria». Somos chamados a experimentar e mostrar que Deus é capaz de preencher o nosso coração e fazer-nos felizes sem necessidade de procurar noutro lugar a nossa felicidade, que a autêntica fraternidade vivida nas nossas comunidades alimenta a nossa alegria, que a nossa entrega total ao serviço da Igreja, das famílias, dos jovens, dos idosos, dos pobres nos realiza como pessoas e dá plenitude à nossa vida.

Que entre nós não se vejam rostos tristes, pessoas desgostosas e insatisfeitas, porque «um seguimento triste é um triste seguimento». Também nós, como todos os outros homens e mulheres, sentimos dificuldades, noites do espírito, desilusões, doenças, declínio das forças devido à velhice. Mas, nisto mesmo, deveremos encontrar a «perfeita alegria», aprender a reconhecer o rosto de Cristo, que em tudo Se fez semelhante a nós e, consequentemente, sentir a alegria de saber que somos semelhantes a Ele que, por nosso amor, não Se recusou a sofrer a cruz.

Numa sociedade que ostenta o culto da eficiência, da saúde, do sucesso e que marginaliza os pobres e exclui os «perdedores», podemos testemunhar, através da nossa vida, a verdade destas palavras da Escritura: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12, 10).

Bem podemos aplicar à vida consagrada aquilo que escrevi na Exortação apostólica Evangelii gaudium, citando uma homilia de Bento XVI: «A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atracção» (n. 14). É verdade! A vida consagrada não cresce, se organizarmos belas campanhas vocacionais, mas se as jovens e os jovens que nos encontram se sentirem atraídos por nós, se nos virem homens e mulheres felizes! De igual forma, a eficácia apostólica da vida consagrada não depende da eficiência e da força dos seus meios. É a vossa vida que deve falar, uma vida da qual transparece a alegria e a beleza de viver o Evangelho e seguir a Cristo.

O que disse aos Movimentos eclesiais, na passada Vigília de Pentecostes, repito-o aqui para vós também: «Fundamentalmente, o valor da Igreja é viver o Evangelho e dar testemunho da nossa fé. A Igreja é sal da terra, é luz do mundo; é chamada a tornar presente na sociedade o fermento do Reino de Deus; e fá-lo, antes de mais nada, por meio do seu testemunho: o testemunho do amor fraterno, da solidariedade, da partilha» (18 de Maio de 2013).

2. Espero que «desperteis o mundo», porque a nota característica da vida consagrada é a profecia. Como disse aos Superiores Gerais, «a radicalidade evangélica não é própria só dos religiosos: é pedida a todos. Mas os religiosos seguem o Senhor de uma maneira especial, de modo profético». Esta é a prioridade que agora se requer: «ser profetas que testemunham como viveu Jesus nesta terra (...). Um religioso não deve jamais renunciar à profecia» (29 de Novembro de 2013).

O profeta recebe de Deus a capacidade de perscrutar a história em que vive e interpretar os acontecimentos: é como uma sentinela que vigia durante a noite e sabe quando chega a aurora (cf. Is 21, 11-12). Conhece a Deus e conhece os homens e as mulheres, seus irmãos e irmãs. É capaz de discernimento e também de denunciar o mal do pecado e as injustiças, porque é livre, não deve responder a outros senhores que não seja a Deus, não tem outros interesses além dos de Deus. Habitualmente o profeta está da parte dos pobres e indefesos, porque sabe que o próprio Deus está da parte deles.

Deste modo espero que saibais, sem vos perder em vãs «utopias», criar «outros lugares» onde se viva a lógica evangélica do dom, da fraternidade, do acolhimento da diversidade, do amor recíproco. Mosteiros, comunidades, centros de espiritualidade, cidadelas, escolas, hospitais, casas-família e todos aqueles lugares que a caridade e a criatividade carismática fizeram nascer – e ainda farão nascer, com nova criatividade –, devem tornar-se cada vez mais o fermento para uma sociedade inspirada no Evangelho, a «cidade sobre o monte» que manifesta a verdade e a força das palavras de Jesus.

Às vezes, como aconteceu com Elias e Jonas, pode vir a tentação de fugir, de subtrair-se ao dever de profeta, porque é demasiado exigente, porque se está cansado, desiludido com os resultados. Mas o profeta sabe que nunca está sozinho. Também a nós, como fez a Jeremias, Deus assegura: «Não terás medo (...), pois Eu estou contigo para te livrar» (Jr 1, 8).

3. Os religiosos e as religiosas, como todas as outras pessoas consagradas, são chamados a ser «peritos em comunhão». Assim, espero que a «espiritualidade da comunhão», indicada por São João Paulo II, se torne realidade e que vós estejais na vanguarda abraçando «o grande desafio que nos espera» neste novo milénio: «fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão»5. Estou certo de que, neste Ano, trabalhareis a sério para que o ideal de fraternidade perseguido pelos Fundadores e pelas Fundadoras cresça, nos mais diversos níveis, como que em círculos concêntricos.
A comunhão é praticada, antes de mais nada, dentro das respectivas comunidades do Instituto. A este respeito, convido-vos a reler frequentes intervenções minhas onde não me canso de repetir que críticas, bisbilhotices, invejas, ciúmes, antagonismos são comportamentos que não têm direito de habitar nas nossas casas. Mas, posta esta premissa, o caminho da caridade que se abre diante de nós é quase infinito, porque se trata de buscar a aceitação e a solicitude recíprocas, praticar a comunhão dos bens materiais e espirituais, a correcção fraterna, o respeito pelas pessoas mais frágeis... É «a "mística" de viver juntos» que faz da nossa vida «uma peregrinação sagrada»6. Tendo em conta que as nossas comunidades se tornam cada vez mais internacionais, devemos questionar-nos também sobre o relacionamento entre as pessoas de culturas diferentes. Como consentir a cada um de se exprimir, ser acolhido com os seus dons específicos, tornar-se plenamente co-responsável?

Além disso, espero que cresça a comunhão entre os membros dos diferentes Institutos. Não poderia este Ano ser ocasião de sair, com maior coragem, das fronteiras do próprio Instituto para se elaborar em conjunto, a nível local e global, projectos comuns de formação, de evangelização, de intervenções sociais? Poder-se-á assim oferecer, de forma mais eficaz, um real testemunho profético. A comunhão e o encontro entre diferentes carismas e vocações é um caminho de esperança. Ninguém constrói o futuro isolando-se, nem contando apenas com as próprias forças, mas reconhecendo-se na verdade de uma comunhão que sempre se abre ao encontro, ao diálogo, à escuta, à ajuda mútua e nos preserva da doença da auto-referencialidade.

Ao mesmo tempo, a vida consagrada é chamada a procurar uma sinergia sincera entre todas as vocações na Igreja, a começar pelos presbíteros e os leigos, a fim de «fazer crescer a espiritualidade da comunhão, primeiro no seu seio e depois na própria comunidade eclesial e para além dos seus confins»7.

4. Espero ainda de vós o mesmo que peço a todos os membros da Igreja: sair de si mesmo para ir às periferias existenciais. «Ide pelo mundo inteiro» foi a última palavra que Jesus dirigiu aos seus e que continua hoje a dirigir a todos nós (cf. Mc 16, 15). A humanidade inteira aguarda: pessoas que perderam toda a esperança, famílias em dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado qualquer futuro, doentes e idosos abandonados, ricos saciados de bens mas com o vazio no coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino...
Não vos fecheis em vós mesmos, não vos deixeis asfixiar por pequenas brigas de casa, não fiqueis prisioneiros dos vossos problemas. Estes resolver-se-ão se sairdes para ajudar os outros a resolverem os seus problemas, anunciando-lhes a Boa Nova. Encontrareis a vida dando a vida, a esperança dando esperança, o amor amando.

De vós espero gestos concretos de acolhimento dos refugiados, de solidariedade com os pobres, de criatividade na catequese, no anúncio do Evangelho, na iniciação à vida de oração. Consequentemente almejo a racionalização das estruturas, a reutilização das grandes casas em favor de obras mais cônsonas às exigências actuais da evangelização e da caridade, a adaptação das obras às novas necessidades.

5. Espero que cada forma de vida consagrada se interrogue sobre o que pedem Deus e a humanidade de hoje.
Os mosteiros e os grupos de orientação contemplativa poderiam encontrar-se entre si ou conectar-se nos mais variados modos, para trocarem entre si as experiências sobre a vida de oração, o modo como crescer na comunhão com toda a Igreja, como apoiar os cristãos perseguidos, como acolher e acompanhar as pessoas que andam à procura duma vida espiritual mais intensa ou necessitam de um apoio moral ou material.

O mesmo poderão fazer os Institutos caritativos, dedicados ao ensino, à promoção da cultura, aqueles que estão lançados no anúncio do Evangelho ou desempenham particulares serviços pastorais, os Institutos Seculares com a sua presença capilar nas estruturas sociais. A inventiva do Espírito gerou modos de vida e obras tão diferentes que não podemos facilmente catalogá-los ou inseri-los em esquemas pré-fabricados. Por isso, não consigo referir cada uma das inúmeras formas carismáticas. Mas, neste Ano, ninguém deveria subtrair-se a um sério controle sobre a sua presença na vida da Igreja e sobre o seu modo de responder às incessantes e novas solicitações que se levantam ao nosso redor, ao clamor dos pobres.

Só com esta atenção às necessidades do mundo e na docilidade aos impulsos do Espírito é que este Ano da Vida Consagrada se tornará um autêntico kairòs, um tempo de Deus rico de graças e de transformação.

III. Os horizontes do Ano da Vida Consagrada

1. Com esta minha carta, além das pessoas consagradas, dirijo-me aos leigos que, com elas, partilham ideais, espírito, missão. Alguns Institutos religiosos possuem uma antiga tradição a tal respeito, outros uma experiência mais recente. Na realidade, à volta de cada família religiosa, bem como das Sociedades de Vida Apostólica e dos próprios Institutos Seculares, está presente uma família maior, a «família carismática», englobando os vários Institutos que se reconhecem no mesmo carisma e sobretudo os cristãos leigos que se sentem chamados, precisamente na sua condição laical, a participar da mesma realidade carismática.

Encorajo-vos também a vós, leigos, a viver este Ano da Vida Consagrada como uma graça que pode tornar-vos mais conscientes do dom recebido. Celebrai-o com toda a «família», para crescerdes e responderdes juntos aos apelos do Espírito na sociedade actual. Em determinadas ocasiões, quando os consagrados de vários Institutos se reunirem uns com os outros neste Ano, procurai estar presente também vós como expressão do único dom de Deus, a fim de conhecer as experiências das outras famílias carismáticas, dos outros grupos de leigos e assim vos enriquecerdes e sustentardes mutuamente.

2. O Ano da Vida Consagrada não diz respeito apenas às pessoas consagradas, mas à Igreja inteira. Assim dirijo-me a todo o povo cristão, para que tome cada vez maior consciência do dom que é a presença de tantas consagradas e consagrados, herdeiros de grandes Santos que fizeram a história do cristianismo. Que seria a Igreja sem São Bento e São Basílio, sem Santo Agostinho e São Bernardo, sem São Francisco e São Domingos, sem Santo Inácio de Loyola e Santa Teresa de Ávila, sem Santa Ângela Merícia e São Vicente de Paulo? E a lista tornar-se-ia quase infinita, até São João Bosco, a Beata Teresa de Calcutá. O Beato Paulo VI afirmava: «Sem este sinal concreto, a caridade que anima a Igreja inteira correria o risco de se resfriar, o paradoxo salvífico do Evangelho de se atenuar, o "sal" da fé de se diluir num mundo em fase de secularização» (Evangelica testificatio, 3).

Por isso, convido todas as comunidades cristãs a viverem este Ano, procurando antes de mais nada agradecer ao Senhor e, reconhecidas, recordar os dons que foram recebidos, e ainda recebemos, por meio da santidade dos Fundadores e das Fundadoras e da fidelidade de tantos consagrados ao seu próprio carisma. A todos vos convido a estreitar-vos ao redor das pessoas consagradas, rejubilar com elas, partilhar as suas dificuldades, colaborar com elas, na medida do possível, para a prossecução do seu serviço e da sua obra, que são aliás os da Igreja inteira. Fazei-lhes sentir o carinho e o encorajamento de todo o povo cristão.
Bendigo o Senhor pela feliz coincidência do Ano da Vida Consagrada com o Sínodo sobre a família. Família e vida consagrada são vocações portadoras de riqueza e graça para todos, espaços de humanização na construção de relações vitais, lugares de evangelização. Podem-se ajudar uma à outra.

3. Com esta minha carta, ouso dirigir-me também às pessoas consagradas e aos membros de fraternidades e comunidades pertencentes a Igrejas de tradição diversa da católica. O monaquismo é um património da Igreja indivisa, bem vivo até agora quer nas Igrejas ortodoxas quer na Igreja católica. Nele bem como nas sucessivas experiências do tempo em que a Igreja do Ocidente ainda estava unida, se inspiram iniciativas análogas surgidas no âmbito das Comunidades eclesiais da Reforma, tendo estas continuado a gerar no seu seio novas expressões de comunidades fraternas e de serviço.

A Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica tem em programa iniciativas para fazer encontrar os membros pertencentes a experiências de vida consagrada e fraterna das diversas Igrejas. Encorajo calorosamente estes encontros, para que cresça o conhecimento mútuo, a estima, a cooperação recíproca, de modo que o ecumenismo da vida consagrada sirva de ajuda para o caminho mais amplo rumo à unidade entre todas as Igrejas.

4. Não podemos esquecer também que o fenómeno do monaquismo e doutras expressões de fraternidade religiosa está presente em todas as grandes religiões. Não faltam experiências, mesmo consolidadas, de diálogo inter-monástico da Igreja católica com algumas das grandes tradições religiosas. Faço votos de que o Ano da Vida Consagrada seja ocasião para avaliar o caminho percorrido, sensibilizar as pessoas consagradas neste campo, questionar-nos sobre os novos passos a dar para um conhecimento recíproco cada vez mais profundo e uma colaboração crescente em muitos âmbitos comuns do serviço à vida humana.
Caminhar juntos é sempre um enriquecimento e pode abrir caminhos novos nas relações entre povos e culturas que, neste período, aparecem carregadas de dificuldades.

5. Por fim dirijo-me, de modo particular, aos meus irmãos no episcopado. Que este Ano seja uma oportunidade para acolher, cordial e jubilosamente, a vida consagrada como um capital espiritual que contribua para o bem de todo o corpo de Cristo (cf. Lumen gentium, 43) e não só das famílias religiosas. «A vida consagrada é dom feito à Igreja: nasce na Igreja, cresce na Igreja, está totalmente orientada para a Igreja»8. Por isso, enquanto dom à Igreja, não é uma realidade isolada ou marginal, mas pertence intimamente a ela, situa-se no próprio coração da Igreja, como elemento decisivo da sua missão, já que exprime a natureza íntima da vocação cristã e a tensão de toda a Igreja-Esposa para a união com o único Esposo; portanto «está inabalavelmente ligada à sua vida e santidade» (Ibid., 44).

Neste contexto, convido-vos, a vós Pastores das Igrejas particulares, a uma especial solicitude em promover nas vossas comunidades os diferentes carismas, tanto os históricos como os novos carismas, apoiando, animando, ajudando no discernimento, acompanhando com ternura e amor as situações de sofrimento e fraqueza em que se possam encontrar alguns consagrados, e sobretudo esclarecendo com o vosso ensino o povo de Deus sobre o valor da vida consagrada, de modo a fazer resplandecer a sua beleza e santidade na Igreja.

A Maria, Virgem da escuta e da contemplação, primeira discípula do seu amado Filho, confio este Ano da Vida Consagrada. Para Ela, filha predilecta do Pai e revestida de todos os dons da graça, olhamos como modelo insuperável de seguimento no amor a Deus e no serviço do próximo.
Agradecido desde já, com todos vós, pelos dons de graça e de luz com que o Senhor quiser enriquecer-nos, acompanho-vos a todos com a Bênção Apostólica.

Vaticano, 21 de Novembro – Festa da Apresentação de Maria – do ano 2014.

Papa Francisco


[1] Carta ap. Os caminhos do Evangelho, aos Religiosos e às Religiosas da América Latina, por ocasião do V centenário da Evangelização do Novo Mundo (29 de Junho de 1990), 26: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 29/VII /1990), 360.
[2]CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA, Doc. Religiosos e promoção humana (12 de Agosto de 1980), 24:L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 18/I/1981), 31.
[3]Discurso aos reitores e estudantes dos Pontifícios Colégios e Internatos de Roma (12 de Maio de 2014): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 22/V/2014), 11.
[4]Homilia na Festa da Apresentação de Jesus no Templo (2 de Fevereiro de 2013): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 10/II/2013), 11.
[5] Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 43: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 13/I/2001), 25.
[6] Carta ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 87.
[7]JOÃO PAULO II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Março de 1996), 51: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/III/1996), 149.
[8]D. JORGE MÁRIO BERGOGLIO, Intervenção no Sínodo sobre a vida consagrada e a sua missão na Igreja e no mundo (XVI congregação geral, 13 de Outubro de 1994).

Discurso do Papa ao Parlamento Europeu

Papa no PE1Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Vice-Presidentes,
Ilustres Eurodeputados,
Pessoas que a vário título trabalhais neste hemiciclo,
Queridos amigos!

Agradeço-vos o convite para falar perante esta instituição fundamental da vida da União Europeia e a oportunidade que me proporcionais de me dirigir, por vosso intermédio, a mais de quinhentos milhões de cidadãos por vós representados nos vinte e oito Estados membros. Desejo exprimir a minha gratidão de modo particular a Vossa Excelência, Senhor Presidente do Parlamento, pelas cordiais palavras de boas-vindas que me dirigiu em nome de todos os componentes da Assembleia.

A minha visita tem lugar passado mais de um quarto de século da realizada pelo Papa João Paulo II. Desde aqueles dias, muita coisa mudou na Europa e no mundo inteiro. Já não existem os blocos contrapostos que, então, dividiam em dois o Continente e, lentamente, está a realizar-se o desejo de que «a Europa, ao dotar-se soberanamente de instituições livres, possa um dia desenvolver-se em dimensões que lhe foram dadas pela geografia e, mais ainda, pela história»1.

A par duma União Europeia mais ampla, há também um mundo mais complexo e em intensa movimentação: um mundo cada vez mais interligado e global e, consequentemente, sempre menos «eurocêntrico». A uma União mais alargada, mais influente, parece contrapor-se a imagem duma Europa um pouco envelhecida e empachada, que tende a sentir-se menos protagonista num contexto que frequentemente a olha com indiferença, desconfiança e, por vezes, com suspeita.

Hoje, falando-vos a partir da minha vocação de pastor, desejo dirigir a todos os cidadãos europeus uma mensagem de esperança e encorajamento.

Uma mensagem de esperança assente na confiança de que as dificuldades podem revelar-se, fortemente, promotoras de unidade, para vencer todos os medos que a Europa – juntamente com o mundo inteiro – está a atravessar. Esperança no Senhor que transforma o mal em bem e a morte em vida.

Encorajamento a voltar à firme convicção dos Pais fundadores da União Europeia, que desejavam um futuro assente na capacidade de trabalhar juntos para superar as divisões e promover a paz e a comunhão entre todos os povos do Continente. No centro deste ambicioso projecto político, estava a confiança no homem, não tanto como cidadão ou como sujeito económico, mas no homem como pessoa dotada de uma dignidade transcendente.

Sinto obrigação, antes de mais nada, de sublinhar a ligação estreita que existe entre estas duas palavras: «dignidade» e «transcendente».
«Dignidade» é uma palavra-chave que caracterizou a recuperação após a Segunda Guerra Mundial. A nossa história recente caracteriza-se pela inegável centralidade da promoção da dignidade humana contra as múltiplas violências e discriminações que não faltaram, ao longo dos séculos, nem mesmo na Europa. A percepção da importância dos direitos humanos nasce precisamente como resultado de um longo caminho, feito também de muitos sofrimentos e sacrifícios, que contribuiu para formar a consciência da preciosidade, unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa humana. Esta tomada de consciência cultural tem o seu fundamento não só nos acontecimentos da história, mas sobretudo no pensamento europeu, caracterizado por um rico encontro cujas numerosas e distantes fontes provêm «da Grécia e de Roma, de substratos celtas, germânicos e eslavos, e do cristianismo que os plasmou profundamente»2, dando origem precisamente ao conceito de «pessoa».

Hoje, a promoção dos direitos humanos ocupa um papel central no empenho da União Europeia que visa promover a dignidade da pessoa, tanto no âmbito interno como nas relações com os outros países. Trata-se de um compromisso importante e admirável, porque persistem ainda muitas situações onde os seres humanos são tratados como objectos, dos quais se pode programar a concepção, a configuração e a utilidade, podendo depois ser jogados fora quando já não servem porque se tornaram frágeis, doentes ou velhos.

Realmente que dignidade existe quando falta a possibilidade de exprimir livremente o pensamento próprio ou professar sem coerção a própria fé religiosa? Que dignidade é possível sem um quadro jurídico claro, que limite o domínio da força e faça prevalecer a lei sobre a tirania do poder? Que dignidade poderá ter um homem ou uma mulher tornados objecto de todo o género de discriminação? Que dignidade poderá encontrar uma pessoa que não tem o alimento ou o mínimo essencial para viver e, pior ainda, que não tem o trabalho que o unge de dignidade?

Promover a dignidade da pessoa significa reconhecer que ela possui direitos inalienáveis, de que não pode ser privada por arbítrio de ninguém e, muito menos, para benefício de interesses económicos.

É preciso, porém, ter cuidado para não cair em alguns equívocos que podem surgir de um errado conceito de direitos humanos e de um abuso paradoxal dos mesmos. De facto, há hoje a tendência para uma reivindicação crescente de direitos individuais – sinto-me tentado a dizer individualistas –, que esconde uma concepção de pessoa humana separada de todo o contexto social e antropológico, quase como uma «mónada» (μονάς) cada vez mais insensível às outras «mónadas» ao seu redor. Ao conceito de direito já não se associa o conceito igualmente essencial e complementar de dever, acabando por afirmar-se os direitos do indivíduo sem ter em conta que cada ser humano está unido a um contexto social, onde os seus direitos e deveres estão ligados aos dos outros e ao bem comum da própria sociedade.

Por isso, considero que seja mais vital hoje do que nunca aprofundar uma cultura dos direitos humanos que possa sapientemente ligar a dimensão individual, ou melhor pessoal, à do bem comum, àquele «nós-todos» formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social3. Na realidade, se o direito de cada um não está harmoniosamente ordenado para o bem maior, acaba por conceber-se sem limitações e, por conseguinte, tornar-se fonte de conflitos e violências.

Assim, falar da dignidade transcendente do homem significa apelar para a sua natureza, a sua capacidade inata de distinguir o bem do mal, para aquela «bússola» inscrita nos nossos corações e que Deus imprimiu no universo criado4; sobretudo significa olhar para o homem, não como um absoluto, mas como um ser relacional. Uma das doenças que, hoje, vejo mais difusa na Europa é a solidão, típica de quem está privado de vínculos. Vemo-la particularmente nos idosos, muitas vezes abandonados à sua sorte, bem como nos jovens privados de pontos de referência e de oportunidades para o futuro; vemo-la nos numerosos pobres que povoam as nossas cidades; vemo-la no olhar perdido dos imigrantes que vieram para cá à procura de um futuro melhor.

Uma tal solidão foi, depois, agravada pela crise económica, cujos efeitos persistem ainda com consequências dramáticas do ponto de vista social. Pode-se também constatar que, no decurso dos últimos anos, a par do processo de alargamento da União Europeia, tem vindo a crescer a desconfiança dos cidadãos relativamente às instituições consideradas distantes, ocupadas a estabelecer regras vistas como distantes da sensibilidade dos diversos povos, se não mesmo prejudiciais. De vários lados se colhe uma impressão geral de cansaço, de envelhecimento, de uma Europa avó que já não é fecunda nem vivaz. Daí que os grandes ideais que inspiraram a Europa pareçam ter perdido a sua força de atracção, em favor do tecnicismo burocrático das suas instituições.

A isto vêm juntar-se alguns estilos de vida um pouco egoístas, caracterizados por uma opulência actualmente insustentável e muitas vezes indiferente ao mundo circundante, sobretudo dos mais pobres. No centro do debate político, constata-se lamentavelmente a preponderância das questões técnicas e económicas em detrimento de uma autêntica orientação antropológica5. O ser humano corre o risco de ser reduzido a mera engrenagem dum mecanismo que o trata como se fosse um bem de consumo a ser utilizado, de modo que a vida – como vemos, infelizmente, com muita frequência –, quando deixa de ser funcional para esse mecanismo, é descartada sem muitas delongas, como no caso dos doentes, dos doentes terminais, dos idosos abandonados e sem cuidados, ou das crianças mortas antes de nascer.

É o grande equívoco que se verifica «quando prevalece a absolutização da técnica»6, acabando por gerar «uma confusão entre fins e meios»7, que é o resultado inevitável da «cultura do descarte» e do «consumismo exacerbado». Pelo contrário, afirmar a dignidade da pessoa significa reconhecer a preciosidade da vida humana, que nos é dada gratuitamente não podendo, por conseguinte, ser objecto de troca ou de comércio. Na vossa vocação de parlamentares, sois chamados também a uma grande missão, ainda que possa parecer não lucrativa: cuidar da fragilidade, da fragilidade dos povos e das pessoas. Cuidar da fragilidade quer dizer força e ternura, luta e fecundidade no meio dum modelo funcionalista e individualista que conduz inexoravelmente à «cultura do descarte». Cuidar da fragilidade das pessoas e dos povos significa guardar a memória e a esperança; significa assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo de dignidade8.

Mas, então, como fazer para se devolver esperança ao futuro, de modo que, a partir das jovens gerações, se reencontre a confiança para perseguir o grande ideal de uma Europa unida e em paz, criativa e empreendedora, respeitadora dos direitos e consciente dos próprios deveres?

Para responder a esta pergunta, permiti-me lançar mão de uma imagem. Rafaello Vaticano2Um dos mais famosos afrescos de Rafael que se encontram no Vaticano representa a chamada Escola de Atenas. No centro, estão Platão e Aristóteles. O primeiro com o dedo apontando para o alto, para o mundo das ideias, poderíamos dizer para o céu; o segundo estende a mão para a frente, para o espectador, para a terra, a realidade concreta. Parece-me uma imagem que descreve bem a Europa e a sua história, feita de encontro permanente entre céu e terra, onde o céu indica a abertura ao transcendente, a Deus, que desde sempre caracterizou o homem europeu, e a terra representa a sua capacidade prática e concreta de enfrentar as situações e os problemas.

O futuro da Europa depende da redescoberta do nexo vital e inseparável entre estes dois elementos. Uma Europa que já não seja capaz de se abrir à dimensão transcendente da vida é uma Europa que lentamente corre o risco de perder a sua própria alma e também aquele «espírito humanista» que naturalmente ama e defende.

É precisamente a partir da necessidade de uma abertura ao transcendente que pretendo afirmar a centralidade da pessoa humana; caso contrário, fica à mercê das modas e dos poderes do momento. Neste sentido, considero fundamental não apenas o património que o cristianismo deixou no passado para a formação sociocultural do Continente, mas também e sobretudo a contribuição que pretende dar hoje e no futuro para o seu crescimento. Esta contribuição não constitui um perigo para a laicidade dos Estados e para a independência das instituições da União, mas um enriquecimento. Assim no-lo indicam os ideais que a formaram desde o início, tais como a paz, a subsidiariedade e a solidariedade mútua, um humanismo centrado no respeito pela dignidade da pessoa.

Por isso, desejo renovar a disponibilidade da Santa Sé e da Igreja Católica, através da Comissão das Conferências Episcopais da Europa (COMECE), a manter um diálogo profícuo, aberto e transparente com as instituições da União Europeia. De igual modo, estou convencido de que uma Europa que seja capaz de conservar as suas raízes religiosas, sabendo apreender a sua riqueza e potencialidades, pode mais facilmente também permanecer imune a tantos extremismos que campeiam no mundo actual – o que se fica a dever também ao grande vazio de ideais a que assistimos no chamado Ocidente –, pois «o que gera a violência não é a glorificação de Deus, mas o seu esquecimento»9.
Não podemos deixar de recordar aqui as numerosas injustiças e perseguições que se abatem diariamente sobre as minorias religiosas, especialmente cristãs, em várias partes do mundo. Comunidades e pessoas estão a ser objecto de bárbaras violências: expulsas de suas casas e pátrias; vendidas como escravas; mortas, decapitadas, crucificadas e queimadas vivas, sob o silêncio vergonhoso e cúmplice de muitos.

O lema da União Europeia é Unidade na diversidade, mas a unidade não significa uniformidade política, económica, cultural ou de pensamento. Na realidade, toda a unidade autêntica vive da riqueza das diversidades que a compõem: como uma família, que é tanto mais unida quanto mais cada um dos seus componentes pode ser ele próprio profundamente e sem medo. Neste sentido, considero que a Europa seja uma família de povos, os quais poderão sentir próximas as instituições da União se estas souberem conjugar sapientemente o ideal da unidade, por que se anseia, com a diversidade própria de cada um, valorizando as tradições individuais; tomando consciência da sua história e das suas raízes; libertando-se de tantas manipulações e fobias. Colocar no centro a pessoa humana significa, antes de mais nada, deixar que a mesma exprima livremente o próprio rosto e a própria criatividade tanto de indivíduo como de povo.

Por outro lado, as peculiaridades de cada um constituem uma autêntica riqueza na medida em que são colocadas ao serviço de todos. É preciso ter sempre em mente a arquitectura própria da União Europeia, assente sobre os princípios de solidariedade e subsidiariedade, de tal modo que prevaleça a ajuda recíproca e seja possível caminhar animados por mútua confiança.

Nesta dinâmica de unidade-particularidade, coloca-se também diante de vós, Senhores e Senhoras Eurodeputados, a exigência de cuidardes de manter viva a democracia, a democracia dos povos da Europa. Não escapa a ninguém que uma concepção homologante da globalidade afecta a vitalidade do sistema democrático, depauperando do que tem de fecundo e construtivo o rico contraste das organizações e dos partidos políticos entre si. Deste modo, corre-se o risco de viver no reino da ideia, da mera palavra, da imagem, do sofisma... acabando por confundir a realidade da democracia com um novo nominalismo político. Manter viva a democracia na Europa exige que se evitem muitas «maneiras globalizantes» de diluir a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os fundamentalismos a-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria10.

Manter viva a realidade das democracias é um desafio deste momento histórico, evitando que a sua força real – força política expressiva dos povos – seja removida face à pressão de interesses multinacionais não universais, que as enfraquecem e transformam em sistemas uniformizadores de poder financeiro ao serviço de impérios desconhecidos. Este é um desafio que hoje vos coloca a história.

Dar esperança à Europa não significa apenas reconhecer a centralidade da pessoa humana, mas implica também promover os seus dotes. Trata-se, portanto, de investir nela e nos âmbitos onde os seus talentos são formados e dão fruto. O primeiro âmbito é seguramente o da educação, a começar pela família, célula fundamental e elemento precioso de toda a sociedade. A família unida, fecunda e indissolúvel traz consigo os elementos fundamentais para dar esperança ao futuro. Sem uma tal solidez, acaba-se por construir sobre a areia, com graves consequências sociais. Aliás, sublinhar a importância da família não só ajuda a dar perspectivas e esperança às novas gerações, mas também a muitos idosos, frequentemente constrangidos a viver em condições de solidão e abandono, porque já não há o calor dum lar doméstico capaz de os acompanhar e apoiar.

Ao lado da família, temos as instituições educativas: escolas e universidades. A educação não se pode limitar a fornecer um conjunto de conhecimentos técnicos, mas deve favorecer o processo mais complexo do crescimento da pessoa humana na sua totalidade. Os jovens de hoje pedem para ter uma formação adequada e completa, a fim de olharem o futuro com esperança e não com desilusão. Aliás são numerosas as potencialidades criativas da Europa em vários campos da pesquisa científica, alguns dos quais ainda não totalmente explorados. Basta pensar, por exemplo, nas fontes alternativas de energia, cujo desenvolvimento muito beneficiaria a defesa do meio ambiente.

A Europa sempre esteve na vanguarda dum louvável empenho a favor da ecologia. De facto, esta nossa terra tem necessidade de cuidados e atenções contínuos e é responsabilidade de cada um preservar a criação, dom precioso que Deus colocou nas mãos dos homens. Isto significa, por um lado, que a natureza está à nossa disposição, podemos gozar e fazer bom uso dela; mas, por outro, significa que não somos os seus senhores. Guardiões, mas não senhores. Por isso, devemos amá-la e respeitá-la; mas, «ao contrário, somos frequentemente levados pela soberba do domínio, da posse, da manipulação, da exploração; não a "guardamos", não a respeitamos, não a consideramos como um dom gratuito do qual cuidar»11. Mas, respeitar o ambiente não significa apenas limitar-se a evitar deturpá-lo, mas também utilizá-lo para o bem. Penso sobretudo no sector agrícola, chamado a dar apoio e alimento ao homem. Não se pode tolerar que milhões de pessoas no mundo morram de fome, enquanto toneladas de produtos alimentares são descartadas diariamente das nossas mesas. Além disso, respeitar a natureza lembra-nos que o próprio homem é parte fundamental dela. Por isso, a par duma ecologia ambiental, é preciso a ecologia humana, feita daquele respeito pela pessoa que hoje vos pretendi recordar com as minhas palavras.

O segundo âmbito em que florescem os talentos da pessoa humana é o trabalho. É tempo de promover as políticas de emprego, mas acima de tudo é necessário devolver dignidade ao trabalho, garantindo também condições adequadas para a sua realização. Isto implica, por um lado, encontrar novas maneiras para combinar a flexibilidade do mercado com as necessidades de estabilidade e certeza das perspectivas de emprego, indispensáveis para o desenvolvimento humano dos trabalhadores; por outro, significa fomentar um contexto social adequado, que não vise explorar as pessoas, mas garantir, através do trabalho, a possibilidade de construir uma família e educar os filhos.

De igual forma, é necessário enfrentar juntos a questão migratória. Não se pode tolerar que o Mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério! Nos barcos que chegam diariamente às costas europeias, há homens e mulheres que precisam de acolhimento e ajuda. A falta de um apoio mútuo no seio da União Europeia arrisca-se a incentivar soluções particularistas para o problema, que não têm em conta a dignidade humana dos migrantes, promovendo o trabalho servil e contínuas tensões sociais. A Europa será capaz de enfrentar as problemáticas relacionadas com a imigração, se souber propor com clareza a sua identidade cultural e implementar legislações adequadas capazes de tutelar os direitos dos cidadãos europeus e, ao mesmo tempo, garantir o acolhimento dos imigrantes; se souber adoptar políticas justas, corajosas e concretas que ajudem os seus países de origem no desenvolvimento sociopolítico e na superação dos conflitos internos – a principal causa deste fenómeno – em vez das políticas interesseiras que aumentam e nutrem tais conflitos. É necessário agir sobre as causas e não apenas sobre os efeitos.

Senhor Presidente, Excelências, Senhoras e Senhores Deputados!
A consciência da própria identidade é necessária também para dialogar de forma propositiva com os Estados que se candidataram à adesão à União Europeia no futuro. Penso sobretudo nos Estados da área balcânica, para os quais a entrada na União Europeia poderá dar resposta ao ideal da paz numa região que tem sofrido enormemente por causa dos conflitos do passado. Por fim, a consciência da própria identidade é indispensável nas relações com os outros países vizinhos, particularmente os que assomam ao Mediterrâneo, muitos dos quais sofrem por causa de conflitos internos e pela pressão do fundamentalismo religioso e do terrorismo internacional.

A vós, legisladores, compete a tarefa de preservar e fazer crescer a identidade europeia, para que os cidadãos reencontrem confiança nas instituições da União e no projecto de paz e amizade que é o seu fundamento. Sabendo que, «quanto mais aumenta o poder dos homens, tanto mais cresce a sua responsabilidade, pessoal e comunitária»12, exorto-vos a trabalhar para que a Europa redescubra a sua alma boa.

Um autor anónimo do século II escreveu que «os cristãos são no mundo o que a alma é para o corpo»13. A tarefa da alma é sustentar o corpo, ser a sua consciência e memória histórica. E uma história bimilenária liga a Europa e o cristianismo. Uma história não livre de conflitos e erros, e também de pecados, mas sempre animada pelo desejo de construir o bem. Vemo-lo na beleza das nossas cidades e, mais ainda, na beleza das múltiplas obras de caridade e de construção humana comum que constelam o Continente. Esta história ainda está, em grande parte, por escrever. Ela é o nosso presente e também o nosso futuro. É a nossa identidade. E a Europa tem uma necessidade imensa de redescobrir o seu rosto para crescer, segundo o espírito dos seus Pais fundadores, na paz e na concórdia, já que ela mesma não está ainda isenta dos conflitos.

Queridos Eurodeputados, chegou a hora de construir juntos a Europa que gira, não em torno da economia, mas da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis; a Europa que abraça com coragem o seu passado e olha com confiança o seu futuro, para viver plenamente e com esperança o seu presente. Chegou o momento de abandonar a ideia de uma Europa temerosa e fechada sobre si mesma para suscitar e promover a Europa protagonista, portadora de ciência, de arte, de música, de valores humanos e também de fé. A Europa que contempla o céu e persegue ideais; a Europa que assiste, defende e tutela o homem; a Europa que caminha na terra segura e firme, precioso ponto de referência para toda a humanidade!
Obrigado!

Papa Francisco
Estrasburgo, 25 de Novembro de 2014


 

[1] Discurso ao Parlamento Europeu (11 de Outubro de 1988), 5.
[2] JOÃO PAULO II, Discurso à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (8 de Outubro de 1988), 2.
[3] Cf. BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 7; CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, 26.
[4] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 37.
[5] Cf. Carta ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 55.
[6] BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 71.
[7] Ibid., 71.
[8] Cf. Carta ap. Evangelii gaudium, 209.
[9] BENTO XVI, Discurso aos Membros do Corpo Diplomático (7 de Janeiro de 2013).
[10] Cf. Carta enc. Evangelii gaudium, 231.
[11] FRANCISCO, Audiência Geral (5 de Junho de 2013).
[12] CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, 34.
[13] Carta a Diogneto, 6.

Discurso do Papa ao Conselho da Europa

Papa no PESenhor Secretário-Geral, Senhora Presidente,
Excelências, Senhoras e Senhores!

Sinto-me feliz por poder tomar a palavra nesta Sessão que vê reunida uma representação significativa da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, os representantes dos países membros, os juízes do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, bem como as diferentes instituições que compõem o Conselho da Europa. De facto, quase toda a Europa está aqui presente, com os seus povos, as suas línguas, as suas expressões culturais e religiosas, que constituem a riqueza deste Continente. De modo particular agradeço ao Senhor Secretário-Geral do Conselho da Europa, Senhor Thorbjørn Jagland, o convite gentil e as amáveis palavras de boas-vindas que me dirigiu. Saúdo também a Senhora Anne Brasseur, Presidente da Assembleia Parlamentar. De coração agradeço a todos o empenhamento profuso e a contribuição prestada à paz na Europa através da promoção da democracia, dos direitos humanos e do estado de direito.

Na intenção de seus Pais fundadores, o Conselho da Europa –que celebra este ano o seu sexagésimo quinto aniversário – dava resposta àquela tensão ideal para a unidade que tem animado, repetidamente, a vida do Continente desde a antiguidade. Ao longo dos séculos, porém, muitas vezes prevaleceram ímpetos particularistas conotados com as diversas vontades hegemónicas que se iam sucedendo. Basta pensar que dez anos antes daquele 5 de Maio de 1949, quando se assinou em Londres o Tratado que instituía o Conselho da Europa, tivera início o mais sangrento e dilacerante conflito que estas terras recordam e cujas divisões perduraram por muitos anos sucessivos com a chamada cortina de ferro que dividia em dois o Continente desde o Mar Báltico até ao Golfo de Trieste. O projecto dos Pais fundadores era reconstruir a Europa num espírito de mútuo serviço, que ainda hoje, num mundo mais inclinado a reivindicar do que a servir, deve constituir o fecho da abóbada da missão do Conselho da Europa em favor da paz, da liberdade e da dignidade humana.

Aliás o caminho privilegiado para a paz – para evitar que volte a acontecer o que sucedeu nas duas guerras mundiais do século passado – é reconhecer no outro, não um inimigo a combater, mas um irmão a acolher. Trata-se de um processo contínuo, que não se pode jamais dar como plenamente alcançado. Isto mesmo intuíram os Pais fundadores quando compreenderam que a paz era um bem que se devia conquistar continuamente e exigia uma vigilância absoluta. Estavam cientes de que as guerras se alimentam da vontade de apoderar-se dos espaços, cristalizar os processos que avançam e procurar detê-los; eles, ao invés, procuravam a paz, que se pode realizar apenas com a constante disposição de iniciar processos e levá-los por diante.

Afirmavam, assim, a vontade de caminhar maturando no tempo, porque é precisamente o tempo que governa os espaços, iluminando-os e transformando-os numa cadeia de crescimento contínuo que não volta atrás. Por isso, a construção da paz exige privilegiar as acções que geram novos dinamismos na sociedade e envolvem outras pessoas e grupos que hão-de desenvolvê-los até frutificar em importantes acontecimentos históricos1.

Foi por esta razão que eles deram vida a este Organismo estável. Como recordava alguns anos depois o Beato Paulo VI, «as próprias instituições que, na ordem jurídica e no concerto internacional, têm a função e o mérito de proclamar e de conservar a paz, alcançam o seu próvido objectivo se estiverem a operar continuamente, se souberem a cada momento gerar a paz, fazer a paz»2. É preciso um caminho constante de humanização, pelo que «não basta conter a guerra, suspender as lutas, (...) não basta uma Paz imposta, uma Paz utilitária e provisória. É necessário tender para uma Paz amada, livre e fraterna, isto é, fundada sobre a reconciliação dos espíritos»3. Por outras palavras, é preciso levar por diante os processos sem ansiedade, mas certamente com convicções claras e tenacidade.

Para conquistar o bem da paz é preciso, antes de mais nada, educar para ela, desterrando uma cultura do conflito que visa amedrontar o outro, marginalizar quem pensa ou vive de forma diferente. É verdade que o conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas, se ficamos bloqueados nele, perde-se perspectiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada. Quando estagnamos na situação de conflito, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade4, paramos a história e caímos no desgaste interior de contradições estéreis.

Infelizmente, a paz é ferida ainda muitas vezes. Isto é verdade em muitas partes do mundo, onde enfurecem conflitos de diverso género. É verdade também aqui na Europa, onde não cessam as tensões. Quanto sofrimento e quantos mortos há ainda neste Continente, que anseia pela paz e contudo volta facilmente a cair nas tentações de outrora! Por isso, é importante e encorajador o trabalho do Conselho da Europa na busca de uma solução política para as crises em acto.

Mas a paz é posta à prova também por outras formas de conflito, como o terrorismo religioso e internacional que nutre profundo desprezo pela vida humana e ceifa, de forma indiscriminada, vítimas inocentes. Infelizmente este fenómeno é alimentado por um tráfico de armas, muitas vezes sem qualquer entrave. A Igreja considera que «a corrida aos armamentos é um terrível flagelo para a humanidade e prejudica os pobres de uma forma intolerável»5. A paz é violada também pelo tráfico de seres humanos, a nova escravatura do nosso tempo que transforma as pessoas em mercadoria de troca, privando as vítimas de toda a dignidade. Depois, não raro damo-nos conta de como estão interligados estes fenómenos. O Conselho da Europa, através das suas Comissões e grupos de peritos, desempenha um papel importante e significativo no combate a tais formas de desumanidade.

A paz, porém, não é a simples ausência de guerras, conflitos e tensões. Na óptica cristã, é simultaneamente dom de Deus e fruto da acção livre e racional do homem, que se propõe perseguir o bem comum na verdade e no amor. «Esta ordem racional e moral assenta precisamente na decisão da consciência dos seres humanos de buscar a harmonia nas suas relações recíprocas sobre a base do respeito da justiça para todos»6.

Então como perseguir este ambicioso objectivo da paz?
A estrada escolhida pelo Conselho da Europa é, antes de mais nada, a promoção dos direitos humanos, a que se liga o desenvolvimento da democracia e do estado de direito. É um trabalho particularmente precioso, com notáveis implicações éticas e sociais, já que, de um recto entendimento destes termos e de uma reflexão constante sobre eles, depende o desenvolvimento das nossas sociedades, a sua pacífica convivência e o seu futuro. Este estudo é uma das grandes contribuições que a Europa ofereceu e continua a oferecer ao mundo inteiro.

Por isso, nesta sede, sinto o dever de lembrar a importância da contribuição e responsabilidade europeias para o desenvolvimento cultural da humanidade. E gostaria de o fazer partindo de uma imagem que tomo dum poeta italiano do século XX, Clemente Rebora, que, numa das suas poesias7, descreve um álamo com os seus ramos erguidos para o céu e movidos pelo vento, o seu tronco sólido e firme e as raízes profundas que penetram na terra. Em certo sentido podemos, à luz desta imagem, imaginar a Europa.

Ao longo da sua história, sempre se ergueu para o alto, para metas novas e ambiciosas, animada por um desejo insaciável de conhecimento, desenvolvimento, progresso, paz e unidade. Mas a elevação do pensamento, da cultura, das descobertas científicas só é possível graças à solidez do tronco e à profundidade das raízes que o alimentam. Se se perdem as raízes, o tronco lentamente se esvai e morre, e os ramos – antes vigorosos e direitos – dobram-se para a terra e caem. Aqui está talvez um dos paradoxos mais incompreensíveis para uma mentalidae científica isolada: para caminhar para o futuro serve o passado, são necessárias raízes profundas e serve também a coragem de não se esconder face ao presente e seus desafios. Servem memória, coragem e utopia sadia e humana.

Entretanto – observa Rebora - «o tronco penetra onde é mais verdadeiro»8. As raízes nutrem-se da verdade, que constitui o alimento, a seiva vital de toda e qualquer sociedade que queira ser verdadeiramente livre, humana e solidária. Por outro lado, a verdade faz apelo à consciência, que é irredutível aos condicionamentos e, por isso, é capaz de conhecer a sua própria dignidade e de se abrir ao absoluto, tornando-se fonte das opções fundamentais guiadas pela procura do bem para os outros e para si mesma e lugar duma liberdade responsável9.

Além disso, é preciso ter presente que, sem esta busca da verdade, cada um torna-se medida de si mesmo e do seu próprio agir, abrindo a estrada à afirmação subjectivista dos direitos, de tal modo que o conceito de direito humano, que de per si tem valência universal, é substituído pela ideia de direito individualista. Isto leva a ser substancialmente descuidado para com os outros e favorecer a globalização da indiferença, que nasce do egoísmo, fruto duma concepção do homem incapaz de acolher a verdade e viver uma autêntica dimensão social.
Um tal individualismo torna-nos humanamente pobres e culturalmente estéreis, porque corta realmente aquelas raízes fecundas sobre as quais se enxerta a árvore. Do individualismo indiferente nasce o culto da opulência, a que corresponde a cultura do descarte onde estamos imersos. Na realidade, temos demasiadas coisas, muitas vezes desnecessárias, mas já não somos capazes de construir relações humanas autênticas, caracterizadas pela verdade e o respeito mútuo. E assim temos hoje diante dos olhos a imagem duma Europa ferida pelas inúmeras provações do passado, mas também pelas crises do presente que parece incapaz de enfrentar com a vitalidade e energia de outrora; uma Europa um pouco cansada, pessimista, que se sente assediada pelas novidades provenientes dos outros Continentes.

À Europa, podemos perguntar: Onde está o teu vigor? Onde está aquela tensão ideal que animou e fez grande a tua história? Onde está o teu espírito de curiosidade e empreendimento? Onde está a tua sede de verdade, que comunicaste com paixão ao mundo até agora?

Da resposta a estas perguntas dependerá o futuro do Continente. Aliás, voltando à imagem de Rebora, um tronco sem raízes pode continuar a ter aparência de vida, mas por dentro esvai-se e morre. A Europa deve reflectir se o seu imenso património humano, artístico, técnico, social, político, económico e religioso é um simples legado de museu do passado, ou se ainda é capaz de inspirar a cultura e descerrar os seus tesouros à humanidade inteira. Na resposta a esta questão, tem um papel de primária importância o Conselho da Europa, com as suas instituições.

Penso particularmente no papel do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que constitui de certo modo a «consciência» da Europa no respeito dos direitos humanos. A minha esperança é que esta consciência mature cada vez mais, não por um mero consenso entre as partes, mas como fruto da tensão para aquelas raízes profundas que constituem os alicerces sobre os quais escolheram edificar os Pais fundadores da Europa contemporânea.

Juntamente com as raízes – que é preciso procurar, encontrar e manter vivas com o exercício diário da memória, pois constituem o património genético da Europa –, existem os actuais desafios do Continente que nos obrigam a uma criatividade contínua, para que estas raízes sejam fecundas nos dias de hoje e se projectem para as utopias do futuro. Permitam-me mencionar dois apenas: o desafio da multipolaridade e o da transversalidade.

A história da Europa pode levar-nos a concebê-la ingenuamente como uma bipolaridade ou, no máximo, um tripolaridade (pensemos na antiga concepção: Roma - Bizâncio - Moscovo) e, dentro deste esquema fruto de reducionismos geopolíticos hegemónicos, movermo-nos na interpretação do presente e na projecção para a utopia do futuro.

Hoje as coisas não estão assim e podemos, legitimamente, falar de uma Europa multipolar. As tensões – tanto aquelas que constroem como as que desagregam – verificam-se entre múltiplos pólos culturais, religiosos e políticos. Hoje, a Europa enfrenta o desafio de «globalizar» mas de forma original esta multipolaridade. As culturas não se identificam necessariamente com os países: alguns deles têm várias culturas, e algumas culturas exprimem-se em vários países. E o mesmo acontece com as expressões políticas, religiosas e associativas.

Globalizar de forma original – e sublinho isto: de forma original – a multipolaridade implica o desafio de uma harmonia construtiva, livre de hegemonias que, embora pragmaticamente pareçam facilitar o caminho, acabam por destruir a originalidade cultural e religiosa dos povos.

Falar da multipolaridade europeia significa falar de povos que nascem, crescem e se projectam para o futuro. A tarefa de globalizar a multipolaridade da Europa não a podemos imaginar com a figura da esfera – onde tudo é igual e ordenado, mas redutora porque cada ponto é equidistante do centro –, mas sim com a do poliedro, onde a unidade harmoniosa do todo conserva a singularidade de cada uma das partes. Hoje, a Europa é multipolar nas suas relações e tensões; não se pode pensar nem construir a Europa sem assumir profundamente esta realidade multipolar.

O outro desafio que gostaria de mencionar é a transversalidade. Parto duma experiência pessoal: nos encontros com os políticos de vários países da Europa, pude notar que os políticos jovens encaram a realidade duma perspectiva diferente da dos seus colegas mais idosos. Talvez digam coisas aparentemente semelhantes, mas a abordagem é diferente. As palavras são semelhantes, mas a música é diferente. Isto verifica-se nos jovens políticos dos diferentes partidos. Este dado empírico indica uma realidade da Europa actual, de que não se pode prescindir no caminho da consolidação do Continente e da sua projecção futura: ter em conta esta transversalidade que se observa em todas as áreas. Isto não se pode conseguir sem recorrer ao diálogo, nomeadamente intergeracional. Se hoje quiséssemos definir o Continente, deveríamos falar duma Europa dialogante que faz com que a transversalidade de opiniões e reflexões esteja ao serviço dos povos harmoniosamente unidos.

Assumir este caminho de comunicação transversal implica não só empatia geracional, mas também metodologia histórica de crescimento. No mundo político actual da Europa, resulta estéril o diálogo circunscrito apenas aos organismos (políticos, religiosos, culturais) a que se pertence. Hoje, a história pede a capacidade de sair para o encontro a partir das estruturas que «contêm» a própria identidade a fim de a tornar mais forte e mais fecunda no confronto fraterno da transversalidade. Uma Europa que dialogue apenas dentro dos grupos fechados a que se pertence fica a meia estrada; há necessidade do espírito juvenil que aceite o desafio da transversalidade.

Nesta perspectiva, congratulo-me com a vontade do Conselho da Europa de investir no diálogo intercultural, incluindo a sua dimensão religiosa, através dos Encontros sobre a dimensão religiosa do diálogo intercultural. Trata-se de uma ocasião profícua para um intercâmbio aberto, respeitoso e enriquecedor entre pessoas e grupos de diferente origem, tradição étnica, linguística e religiosa, num espírito de compreensão e respeito mútuo.

Tais encontros parecem ser particularmente importantes no actual ambiente multicultural, multipolar, em busca de um rosto próprio para conjugar, sapientemente, a identidade europeia formada ao longo dos séculos com as solicitações que chegam dos outros povos que agora assomam ao Continente.

Nesta lógica, se deve entender a contribuição que o cristianismo pode proporcionar, actualmente, ao desenvolvimento cultural e social europeu no âmbito duma correcta relação entre religião e sociedade. Na óptica cristã, razão e fé, religião e sociedade são chamadas a iluminar-se reciprocamente, apoiando-se uma à outra e, se necessário, purificando-se mutuamente dos extremismos ideológicos em que podem cair. A sociedade europeia inteira só pode beneficiar de uma revitalizada conexão entre os dois âmbitos, tanto para enfrentar um fundamentalismo religioso que é inimigo sobretudo de Deus, como para obstar a uma razão «reduzida» que não honra o homem.

Estou convencido de que pode haver mútuo enriquecimento num grande número de temas actuais, em que a Igreja Católica – especialmente através do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE) – pode colaborar com o Conselho da Europa e prestar uma contribuição fundamental. Em primeiro lugar, à luz do que disse anteriormente, temos o âmbito duma reflexão ética sobre os direitos humanos, acerca dos quais muitas vezes a vossa Organização é chamada a reflectir. Penso, em particular, nos temas relacionados com a protecção da vida humana, questões sensíveis que precisam de ser submetidas a um exame cuidadoso que tenha em conta a verdade do ser humano integral, sem se limitar a específicos âmbitos médicos, científicos ou jurídicos.

De igual modo são numerosos os desafios do mundo contemporâneo que necessitam de estudo e de um empenhamento comum, a começar pelo acolhimento dos imigrantes, que precisam primariamente do essencial para viver, mas sobretudo que lhes seja reconhecida a sua dignidade de pessoas. Temos depois o grave problema do trabalho em toda a sua amplitude, especialmente pelos altos níveis de desemprego juvenil que se registam em muitos países – uma real hipoteca que grava sobre o futuro – mas também pela questão da dignidade do trabalho.
Espero vivamente que se instaure uma nova cooperação social e económica, livre de condicionalismos ideológicos, que saiba encarar o mundo globalizado, mantendo vivo o sentimento de solidariedade e caridade mútua que tanto caracterizou o rosto da Europa, graças à obra generosa de centenas de homens e mulheres – alguns considerados Santos pela Igreja Católica – que, ao longo dos séculos, se esforçaram por desenvolver o Continente seja através da actividade empresarial seja com obras de educação, de assistência e de promoção humana. Especialmente estas últimas constituem um importante ponto de referência para os numerosos pobres que vivem na Europa. E há tantos nas nossas estradas! Pedem não só o pão para se sustentarem, que é o mais elementar dos direitos, mas também para se redescobrir o valor da sua vida, que a pobreza tende a fazer esquecer, e reencontrar a dignidade conferida pelo trabalho.

Por fim, entre os temas que requerem a nossa reflexão e a nossa colaboração, temos a defesa do meio ambiente, desta nossa amada Terra, o grande recurso que Deus nos deu e está à nossa disposição, não para ser deturpada, explorada e vilipendiada, mas para que, gozando da sua beleza imensa, possamos viver com dignidade.

Senhor Secretário, Senhora Presidente, Excelências, Senhoras e Senhores!
O Beato Paulo VI definiu a Igreja «perita em humanidade»10. No mundo, à imitação de Cristo, ela – apesar dos pecados dos seus filhos – nada mais procura que servir e dar testemunho da verdade11. Nada mais, à excepção deste espírito, nos guia no apoio dado ao caminho da humanidade.

Com esta disposição de espírito, a Santa Sé pretende continuar a colaborar com o Conselho da Europa, que desempenha actualmente um papel fundamental para forjar a mentalidade das futuras gerações de europeus. Trata-se de realizar, juntos, uma reflexão a todo o campo, para que se estabeleça uma espécie de «nova ágora», na qual cada instância civil e religiosa possa livremente confrontar-se com as outras, naturalmente na separação dos âmbitos e na diversidade das posições, animada exclusivamente pelo desejo de verdade e de construir o bem comum. De facto, a cultura nasce sempre do encontro mútuo, tendente a estimular a riqueza intelectual e a criatividade de quantos nele participam; além de ser a actuação do bem, isto é beleza. Os meus votos à Europa são de que, redescobrindo o seu património histórico e a profundidade das suas raízes, assumindo a sua viva multipolaridade e o fenómeno da transversalidade dialogante, encontre novamente aquela juventude de espírito que a tornou fecunda e grande.
Obrigado!

Papa Francisco

Estrasburgo, 25 de Novembro de 2014


[1] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 223.
[2] Mensagem para o VIII Dia Mundial da Paz (8 de Dezembro de 1974).
[3] Ibidem.
[4] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium , 226.
[5] Catecismo da Igreja Católica, 2329. Cf. CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, 81.
[6] JOÃO PAULO II, Mensagem para o XV Dia Mundial da Paz (8 de Dezembro de 1981), 4.
[7] «Vibra nel vento con tutte le sue foglie / il pioppo severo; / spasima l'aria in tutte le sue doglie / nell'ansia del pensiero: / dal tronco in rami per fronde si esprime/ tutte al ciel tese con raccolte cime: / fermo rimane il tronco del mistero, / e il tronco s'inabissa ov'è più vero»: «Il pioppo» in Canti dell'Infermità (ed. Vanni Scheiwiller, Milão 1957), 32.
[8] Ibidem.
[9] Cf. JOÃO PAULO II, Discurso à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (Estrasburgo, 8 de Outubro de 1988), 4.
[10] Carta enc. Populorum progressio, 13.
[11] Cf. Ibid., 13.

Papa Francisco e a complementaridade entre homem e mulher

familia 2Estimados irmãos e irmãs!

Dou-vos cordiais boas-vindas e agradeço ao Cardeal Müller as palavras com as quais introduziu este nosso encontro.
Antes de tudo, gostaria de compartilhar convosco uma reflexão a propósito do título do vosso Diálogo. «Complementaridade»: trata-se de uma palavra preciosa, com múltiplos valores. É possível referir-se a diversas situações, nas quais um elemento completa o outro ou supre a uma sua carência. No entanto, complementaridade é muito mais que isto. Os cristãos encontram o seu significado já na primeira Carta de são Paulo aos Coríntios, onde o apóstolo afirma que o Espírito conferiu a cada um diferentes dons, de tal forma que, assim como os membros do corpo humano se completam para o bem do organismo inteiro, também os dons de cada um podem contribuir para o bem de todos (cf. 1 Cor 12). Ponderar acerca da complementaridade significa simplesmente meditar sobre as formas de harmonia dinâmica que se encontram no cerne de toda a Criação. Eis a palavra-chave: harmonia. O Criador fez todas as formas de complementaridade para que o Espírito Santo, que é o Autor da harmonia, realize esta harmonia.

Oportunamente, congregastes-vos para este Diálogo internacional a fim de aprofundar o tema da complementaridade entre homem e mulher. Com efeito, esta complementaridade encontra-se no fundamento do matrimónio e da família, que constitui a primeira escola onde aprendemos a valorizar os nossos dons e dos outros, e onde começamos a descobrir a arte de viver juntos. Para a maioria de nós, a família constitui o lugar principal onde começar a «respirar» valores e ideais, assim como a realizar a nossa potencialidade de virtude e de caridade. Ao mesmo tempo, como sabemos, as famílias são um lugar de tensões: entre egoísmo e altruísmo, entre razão e paixão, entre desejos imediatos e finalidades a longo prazo, etc. Contudo, as famílias proporcionam inclusive o âmbito onde resolver tais tensões: e isto é importante! Quando falamos de complementaridade entre homem e mulher neste contexto, não podemos confundir tal termo com a ideia simplista segundo a qual todas as funções e relacionamentos de ambos os sexos estão fechados num modelo único e estático. A complementaridade adquire numerosas formas, porque cada homem, cada mulher, oferece a contribuição pessoal que lhe é própria para o matrimónio e para a educação dos filhos. A sua riqueza pessoal, o seu carisma pessoal, e desta maneira a complementaridade adquire uma grande riqueza. E não é apenas um bem, mas também uma beleza.

Na nossa época, o matrimónio e a família estão em crise. Vivemos numa cultura do provisório, na qual cada vez mais pessoas renunciam ao matrimónio como compromisso público. Esta revolução nos costumes e na moral agitou com frequência a «bandeira da liberdade», mas na realidade trouxe devastação espiritual e material a numerosos seres humanos, de maneira especial aos mais vulneráveis. É cada vez mais evidente que o declínio da cultura do matrimónio está associado a um aumento de pobreza e a uma série de numerosos outros problemas sociais que atingem em medida desproporcional as mulheres, as crianças e os idosos. E são sempre eles quem mais sofre nesta crise.

A crise da família deu origem a uma crise da ecologia humana, porque os ambientes sociais, do mesmo modo como os naturais, devem ser salvaguardados. Não obstante hoje a humanidade tenha compreendido a necessidade de enfrentar aquela que constitui uma ameaça para os nossos ambientes naturais, somos lentos — somos vagarosos na nossa cultura, inclusive na nossa cultura católica — somos lentos a reconhecer que também os nossos ambientes sociais estão em perigo. Por conseguinte, é indispensável promover uma renovada ecologia humana, fazendo-a progredir.

É preciso insistir sobre os pilares fundamentais que sustentam uma nação: os seus bens imateriais. A família permanece na base da convivência, como garantia contra a desintegração social. As crianças têm o direito de crescer numa família, com um pai e uma mãe, capazes de criar um ambiente apropriado para o seu desenvolvimento e para a sua maturação afectiva. Por este motivo, na Exortação Apostólica Evangelii gaudium, salientei a contribuição «indispensável» do matrimónio para a sociedade, contributo que «supera o nível da afectividade e das necessidades contingentes do casal» (n. 66). É por isso que vos agradeço a ênfase conferida pelo vosso Diálogo aos benefícios que o matrimónio pode proporcionar aos filhos, aos próprios cônjuges e à sociedade.

Durante estes dias, enquanto meditais acerca da complementaridade entre homem e mulher, exorto-vos a dar evidência a mais uma verdade, relativa ao matrimónio: ou seja, que o compromisso definitivo em relação à solidariedade, à fidelidade e ao amor fecundo corresponde às aspirações mais profundas do coração humano. Pensemos, acima de tudo, nos jovens que representam o futuro: é importante que eles não se deixem seduzir pela mentalidade prejudicial do provisório, sejam revolucionários e tenham a coragem de procurar um amor vigoroso e duradouro, isto é, de ir contra a corrente: é necessário agir assim! A este propósito, gostaria de vos dizer algo: não podemos cair na armadilha de ser qualificados com conceitos ideológicos. A família é uma realidade antropológica e, consequentemente, social, cultural, etc. Não a podemos qualificar com conceitos de natureza ideológica, que só são válidos num determinado momento da história, e depois caducam. Hoje em dia não se pode falar de família conservadora, nem de família progressista: a família é família! Não vos deixeis qualificar por este ou por outros conceitos de natureza ideológica. A família possui uma força em si mesma.

Possa este Diálogo ser um manancial de inspiração para todos aqueles que procuram sustentar e fortalecer a união entre o homem e a mulher no matrimónio como um bem único, natural, fundamental e maravilhoso para as pessoas, as famílias, as comunidades e as sociedades.

Em tal contexto, apraz-me confirmar que, se Deus quiser, em Setembro de 2015 irei a Filadélfia, para o oitavo Encontro Mundial das Famílias.
Agradeço-vos as orações com as quais vós acompanhais o meu serviço à Igreja. Também eu rezo por vós, e abençoo-vos de coração. Muito obrigado!

Papa Francisco,
Discurso aos participantes no Encontro Internacional sobre a complementaridade entre Homem e Mulher,
Vaticano, 17 de Novembro de 2014

Relação Final do Sínodo dos Bispos 2014

familia14"Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização"  (Roma, 5/19 Out 2014)
Relação final da III Assembleia geral extraordinária do Sínodo dos Bispos

INTRODUÇÃO

1. O Sínodo dos Bispos reunido com o Papa dirige o seu pensamento a todas as famílias do mundo com as suas alegrias, as suas canseiras, as suas esperanças. De modo especial, sente o dever de agradecer ao Senhor pela generosa fidelidade com que tantas famílias cristãs respondem à sua vocação e missão. E respondem com alegria e com fé, também quando o caminho familiar as põe diante de obstáculos, incompreensões e sofrimentos. A essas famílias vai o apreço, o agradecimento e o encorajamento de toda a Igreja e deste Sínodo. Na vigília de oração celebrada na Praça de São Pedro, sábado, 4 de outubro de 2014, em preparação do Sínodo sobre a família, o Papa Francisco evocou de maneira simples e concreta a centralidade da experiência familiar na vida de todos, exprimindo-se assim: «Já desce a noite sobre a nossa assembleia. É a hora em que de bom grado se regressa a casa para se reunir à mesma mesa na consistência dos afetos, do bem que se fez e se recebeu, dos encontros que aquecem o coração e o fazem dilatar, vinho bom que antecipa, nos dias do homem, a festa sem ocaso. Mas é também a hora mais pesada para quem se vê cara a cara com a própria solidão, no crepúsculo amargo de sonhos e projetos desfeitos. Quantas pessoas arrastam os seus dias no beco sem saída da resignação, do abandono, se não mesmo do rancor! Em quantas casas falta o vinho da alegria e, consequentemente, o sabor – a própria sabedoria – da vida! Nesta noite, com a nossa oração, fazemo-nos voz de uns e de outros: uma oração por todos».

2. Seio de alegrias e de provações, de afetos profundos e de relações por vezes feridas, a família é verdadeiramente "escola de humanidade" (cf. Gaudium et spes, 52), de que se sente uma forte necessidade. Não obstante os muitos sinais de crise da instituição familiar nos vários contextos da "aldeia global", o desejo de família continua vivo, sobretudo entre os jovens, e encoraja a Igreja, perita em humanidade e fiel à sua missão, a anunciar sem cessar e com profunda convicção o "Evangelho da família", que lhe foi confiado com uma revelação do amor de Deus em Jesus Cristo e ininterruptamente ensinado pelos Padres, os Mestres da espiritualidade e o Magistério da Igreja. A família tem para a Igreja uma importância muito especial e, quando todos os crentes são convidados a sair de si mesmos, é necessário que a família se redescubra como sujeito imprescindível para a evangelização. O pensamento vai para o testemunho missionário de tantas famílias.

3. O Bispo de Roma convocou para refletir sobre a realidade da família, decisiva e preciosa, o Sínodo dos Bispos, na sua Assembleia geral extraordinária de outubro de 2014, reflexão a aprofundar, depois, na Assembleia geral ordinária, que terá lugar em outubro de 2015, bem como ao longo do ano inteiro que medeia os dois eventos sinodais. «Já o reunir in unum à volta do Bispo de Roma é evento de graça, onde a colegialidade se manifesta num caminho de discernimento espiritual e pastoral»: foi como o Papa Francisco descreveu a experiência sinodal, indicando as suas tarefas na dúplice escuta dos sinais de Deus e da história dos homens e na dúplice e única fidelidade que daí deriva.

4. À luz do mesmo discurso, recolhemos os resultados das nossas reflexões e dos nossos diálogos nas três partes seguintes: a escuta, para olhar para a realidade da família hoje, na complexidade das suas luzes e das suas sombras; o olhar fixo em Cristo, para repensar com renovada frescura e entusiasmo o que a revelação, transmitida na fé da Igreja, nos diz sobre a beleza, a função e a dignidade da família; o confronto à luz do Senhor Jesus, para discernir os caminhos com que renovar a Igreja e a sociedade no seu empenho em favor da família, fundada sobre o matrimónio entre homem e mulher.


PRIMEIRA PARTE
A escuta: o contexto e os desafios sobre a família

O contexto sociocultural

5. Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos para a realidade da família hoje em toda a sua complexidade, nas suas luzes e nas suas sombras. Pensamos nos pais, nos avós, nos irmãos e irmãs, nos parentes próximos e distantes, e na relação entre duas famílias que cada matrimónio cria. A mudança antropológico-cultural influencia hoje todos os aspetos da vida e exige uma abordagem analítica e diversificada. Sublinham-se em primeiro lugar os aspetos positivos: a maior liberdade de expressão e o melhor reconhecimento dos direitos da mulher e das crianças, ao menos nalgumas regiões. Mas, por outro lado, há também a considerar o crescente perigo, representado por um individualismo exasperado, que desnatura os laços familiares e acaba por considerar cada componente da família como uma ilha, fazendo prevalecer, em certos casos, a ideia de um sujeito que se constrói segundo os próprios desejos, tomados como um absoluto. A isso acrescente-se também a crise de fé, que atingiu tantos católicos e que muitas vezes está na origem das crises do matrimónio e da família.

6. Uma das maiores pobrezas da cultura atual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações. Existe também uma sensação geral de impotência em relação à realidade socioeconómica que, muitas vezes, acaba por esmagar as famílias. Isso sucede pela crescente pobreza e precariedade do trabalho, por vezes vivida como um verdadeiro pesadelo, ou por uma fiscalidade demasiado pesada, que certamente não encoraja os jovens ao matrimónio. Não raramente, as famílias sentem-se abandonadas pelo desinteresse e pouca atenção por parte das instituições. As consequências negativas do ponto de vista da organização social são evidentes: da crise demográfica às dificuldades educativas, da fadiga de acolher a vida nascente ao sentir a presença dos anciãos como um peso, até à difusão de um mal-estar afetivo, que, por vezes, termina em violência. É responsabilidade do Estado criar as condições legislativas e de trabalho, para garantir o futuro dos jovens e ajudá-los a realizar o seu projeto de fundar uma família.

7. Há contextos culturais e religiosos que lançam particulares desafios. Nalgumas sociedades, ainda está em vigor a prática da poligamia e, nalguns contextos tradicionais, o costume do "matrimónio por etapas". Noutros contextos, mantém-se a prática dos matrimónios combinados. Nos Países onde a presença da Igreja Católica é minoritária, são numerosos os matrimónios mistos e com disparidade de culto, com todas as dificuldades que comportam, em termos de configuração jurídica, de batismo e de educação dos filhos e no recíproco respeito do ponto de vista da diversidade da fé. Nestes matrimónios, pode correr-se o perigo do relativismo ou da indiferença, mas também pode existir a possibilidade de favorecer o espírito ecuménico e o diálogo inter-religioso, numa harmoniosa convivência de comunidades que vivem no mesmo lugar. Em muitos contextos, não só ocidentais, vai-se difundindo amplamente a prática da convivência antes do matrimónio ou mesmo de convivências não orientadas para assumir a forma de um vínculo institucional. A isso junta- se frequentemente uma legislação civil que compromete o matrimónio e a família. Devido à secularização, em muitas partes do mundo a referência a Deus enfraqueceu enormemente e a fé deixou de ser socialmente partilhada.

8. São muitas as crianças que nascem fora do matrimónio, sobretudo nalguns Países, e muitas as que, depois, crescem só com um dos pais ou num contexto familiar alargado ou reconstituído. O número dos divórcios cresce e não é raro o caso de escolhas feitas unicamente por fatores de ordem económica. As crianças são muitas vezes objeto de disputa entre os pais e os filhos são as verdadeiras vítimas das lacerações familiares. Os pais estão muitas vezes ausentes, não só por razões económicas, onde, ao invés, é sentida a necessidade que eles assumam mais claramente a responsabilidade dos filhos e da família. A dignidade da mulher precisa ainda de ser defendida e promovida. De facto, hoje, em muitos contextos, o ser mulher é alvo de discriminação, e até o dom da maternidade é muitas vezes penalizado, em vez de ser apresentado como um valor. Não se devem esquecer também os crescentes fenómenos de violência, de que as mulheres são vítimas, muitas vezes e, infelizmente, também no seio das famílias, e a grave e difusa mutilação genital da mulher nalgumas culturas. A exploração sexual da infância constitui, outrossim, uma das realidades mais escandalosas e perversas da sociedade atual. Também as sociedades atravessadas pela violência resultante da guerra, do terrorismo ou da presença da criminalidade organizada conhecem situações familiares deterioradas e, sobretudo nas grandes metrópoles e suas periferias, cresce o chamado fenómeno dos meninos da rua. E as migrações são outro sinal dos tempos, que se deve enfrentar e compreender, com todo o peso de consequências sobre a vida familiar.

A importância da vida afetiva

9. Neste quadro social que foi delineado, encontra-se em muitas partes do mundo, nos indivíduos, uma maior necessidade de cuidar da própria pessoa, de se conhecer interiormente, de viver melhor em sintonia com as próprias emoções e os próprios sentimentos, de procurar relações afetivas de qualidade; essa justa aspiração pode abrir ao desejo de se empenhar na construção de relações de doação e reciprocidade criativas, responsabilizantes e solidárias como as familiares. O perigo individualista e o risco de viver em chave egoística são relevantes. O desafio que se põe à Igreja é ajudar os casais na maturação da dimensão emocional e no desenvolvimento afetivo, através da promoção do diálogo, da virtude e da confiança no amor misericordioso de Deus. O empenho total, que o matrimónio cristão exige, pode ser um forte antídoto à tentação de um individualismo egoístico.

10. No mundo atual, não faltam tendências culturais que parecem impor uma afetividade sem limites, de que se querem explorar todos os meandros, mesmo os mais complexos. De facto, a questão da fragilidade afetiva é de grande atualidade: uma afetividade narcisista, instável e mutável, que nem sempre ajuda os sujeitos a alcançar uma maior maturidade. É preocupante uma certa difusão da pornografia e da comercialização do corpo, favorecida por um uso distorcido da internet, e há que denunciar a situação das pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição. Neste contexto, os casais ficam, por vezes, incertos, hesitantes, e a custo encontram os modos para crescer. São muitos os que tendem a ficar nas fases primárias da vida emocional e sexual. A crise do casal destabiliza a família e pode acarretar, através das separações e dos divórcios, sérias consequências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais. Também a quebra demográfica, resultante de uma mentalidade antinatalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva, não só determina uma situação, em que o revezar das gerações já não é assegurado, mas corre o risco de levar, com o tempo, a um empobrecimento económico e a uma perda de esperança no futuro. O progresso das biotecnologias teve também ele um forte impacto sobre a natalidade.

O desafio para a pastoral

11. Neste contexto, a Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. Há que partir da convicção de que o homem vem de Deus e que, portanto, uma reflexão capaz de repropor as grandes perguntas sobre o ser homens pode encontrar um terreno fértil nas expetativas mais profundas da humanidade. Os grandes valores do matrimónio e da família cristã correspondem à procura que atravessa a existência humana, mesmo num tempo marcado pelo individualismo e pelo hedonismo. Há que acolher as pessoas com a sua existência concreta, saber apoiar essa procura, encorajar o desejo de Deus e a vontade de sentir-se plenamente parte da Igreja, também em quem fez experiência do fracasso ou se encontra nas situações mais diversificadas. A mensagem cristã traz sempre em si a realidade e a dinâmica da misericórdia e da verdade, que em Cristo convergem.


II PARTE
O olhar para Cristo: o Evangelho da família

O olhar para Jesus e a pedagogia divina na história da salvação

12. Para «verificar o nosso passo no terreno dos desafios contemporâneos, a condição decisiva é manter o olhar fixo em Jesus Cristo, deter-se na contemplação e adoração do seu rosto [...]. Na verdade, todas as vezes que voltamos à fonte da experiência cristã, abrem-se novas estradas e possibilidades inimagináveis» (Papa Francisco, Discurso de 4 de outubro de 2014). Jesus olhou com amor e ternura para os homens e mulheres que encontrou, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e misericórdia, ao anunciar as exigências do Reino de Deus.

13. Dado que a ordem da criação é determinada pela orientação a Cristo, é necessário distinguir, sem os separar, os diversos gaus através dos quais Deus comunica à humanidade a graça da aliança. Em razão da pedagogia divina, segundo a qual a ordem da criação evolui para a da redenção por etapas sucessivas, há que compreender a novidade do sacramento nupcial cristão em continuidade com o matrimónio natural das origens. Entende-se, portanto, aqui o modo de agir salvífico de Deus, tanto na criação como na vida cristã. Na criação: porque tudo foi feito por meio de Cristo e em vista d'Ele (cf. Col 1,16), os cristãos têm «a alegria de descobrir e estão prontos a respeitar as sementes do Verbo que aí se encontram escondidas; devem seguir atentamente a transformação profunda que se verifica entre os povos» (Ad gentes, 11). Na vida cristã: enquanto, com o batismo, o crente é inserido na Igreja mediante a Igreja doméstica, que é a sua família, realiza o «processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus» (Familiaris consortio, 9), mediante a constante conversão ao amor, que salva do pecado e dá plenitude de vida.

14. O próprio Jesus, referindo-se ao plano primigénio sobre o casal humano, reafirma a união indissolúvel entre o homem e a mulher, embora dizendo que «pela dureza do vosso coração Moisés permitiu-vos repudiar as vossas mulheres, mas no princípio não era assim» (Mt 19,8). A indissolubilidade do matrimónio ("não separe, portanto, o homem o que Deus uniu" Mt 19,6) não deve ser entendida antes de mais como "jugo" imposto aos homens, mas como um "dom" feito às pessoas unidas em matrimónio. Dessa maneira, Jesus mostra como a condescendência divina acompanha sempre o caminho humano, cura e transforma o coração endurecido com a sua graça, orientando-o para o seu princípio, através do caminho da cruz. Dos Evangelhos emerge claramente o exemplo de Jesus, que é paradigmático para a Igreja. Jesus, de facto, assumiu uma família, deu início aos sinais na festa nupcial de Caná, anunciou a mensagem sobre o significado do matrimónio como plenitude da revelação que recupera o projeto originário de Deus (Mt 19,3). Mas, ao mesmo tempo, pôs em prática a doutrina ensinada, manifestando assim o verdadeiro significado da misericórdia. É o que aparece claramente nos encontros com a samaritana (Jo 4,1-30) e com a adúltera (Jo 8,1-11), em que Jesus, com uma atitude de amor para com a pessoa pecadora, leva ao arrependimento e à conversão ("vai e não voltes a pecar"), condição para o perdão.

A família no plano salvífico de Deus

15. As palavras de vida eterna que Jesus deixou aos seus discípulos incluíam o ensinamento sobre o matrimónio e a família. Esse ensinamento de Jesus permite distinguir, em três etapas fundamentais, o projeto de Deus sobre o matrimónio e a família. No início, há a família das origens, quando Deus criador instituiu o matrimónio primordial entre Adão e Eva, como sólido fundamento da família. Deus não só criou o ser humano homem e mulher (Gen 1,27), mas também os abençoou para que fossem fecundos e se multiplicassem (Gen 1,28). Por isso, «o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne» (Gen 2,24). Esta união foi danificada pelo pecado e tornou-se a forma histórica de matrimónio no Povo de Deus, a quem Moisés concedeu a possibilidade de passar um atestado de divórcio (cf. Dt 24,1ss). Era a forma que prevalecia nos tempos de Jesus. Com a sua vinda e a reconciliação do mundo caído graças à redenção por Ele operada, terminou a era inaugurada com Moisés.

16. Jesus, que reconciliou todas as coisas em Si, elevou o matrimónio e a família à sua forma original (cf. Mc 10,1-12). A família e o matrimónio foram remidos por Cristo (cf. Ef 5,21-32), restaurados à imagem da Santíssima Trindade, mistério donde provém todo o verdadeiro amor. A aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na história da salvação, recebe a plena revelação do seu significado em Cristo e na sua Igreja. De Cristo, através da Igreja, o matrimónio e a família recebem a graça necessária para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O Evangelho da família atravessa a história do mundo, desde a criação do homem à imagem e semelhança de Deus (cf. Gen 1,26-27) até à realização do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19,9; João Paulo II, Catequeses sobre o amor humano).

A família nos documentos da Igreja

17. «Com o decorrer dos séculos, a Igreja não deixou faltar o seu constante ensinamento sobre matrimónio e família. Uma das expressões mais altas deste Magistério foi proposta pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, na Constituição pastoral Gaudium et spes, que dedica um capítulo inteiro à promoção da dignidade do matrimónio e da família (cf. GS 47-52). Ele definiu o matrimónio como comunidade de vida e de amor (cf. GS 48), colocando o amor no centro da família, mostrando, ao mesmo tempo, a verdade deste amor face às diversas formas de reducionismo presentes na cultura contemporânea. O "verdadeiro amor entre marido e esposa" (GS 49) implica a doação recíproca de si, inclui e integra a dimensão sexual e a afetividade, correspondendo ao desígnio divino (cf. GS 48-49). Além disso, a Gaudium et spes, no número 48, frisa a radicação dos esposos em Cristo: Cristo Senhor "vem ao encontro dos cônjuges cristãos no sacramento do matrimónio", e com eles permanece. Na encarnação, Ele assume o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e doa aos esposos, com o seu Espírito, a capacidade de o viver, permeando toda a sua vida de fé, esperança e caridade. Deste modo os esposos são como que consagrados e, mediante uma graça própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem uma Igreja doméstica (cf. LG 11), de modo que a Igreja, para compreender plenamente o seu mistério, olha para a família cristã, que o manifesta de modo genuíno» (Instrumentum laboris, n. 4).

18. «Em continuidade com o Concílio Vaticano II, o Magistério pontifício aprofundou a doutrina sobre o matrimónio e sobre a família. Em particular Paulo VI, com a Encíclica Humanae vitae, evidenciou o vínculo íntimo entre amor conjugal e geração da vida. São João Paulo II dedicou à família uma atenção especial através das suas catequeses sobre o amor humano, da Carta às famílias (Gratissimam sane) e sobretudo com a Exortação Apostólica Familiaris consortio. Nestes documentos, o Pontífice definiu a família "caminho da Igreja"; ofereceu uma visão de conjunto sobre a vocação do homem e da mulher para o amor; propôs as linhas fundamentais para a pastoral da família e para a presença da família na sociedade. Em particular, ao tratar a caridade conjugal (cf. FC 13), descreveu o modo como os cônjuges, no seu amor recíproco, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua chamada à santidade» (Instrumentum laboris, n. 5).

19. «Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est, retomou o tema da verdade do amor entre homem e mulher, que só se ilumina plenamente à luz do amor de Cristo crucificado (cf. DCE 2). Ele reafirma como: "O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna- se a medida do amor humano" (DCE 11). Além disso, na Encíclica Caritas in veritate, ele evidencia a importância do amor como princípio de vida na sociedade (cf. CV 44), lugar no qual se aprende a experiência do bem comum» (Instrumentum laboris, n. 6).

20. «O Papa Francisco, na Encíclica Lumen fidei, ao tratar o vínculo entre a família e a fé, escreve: "o encontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seu amor alarga o horizonte da existência, dá-lhe uma esperança firme que não desilude. A fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir um grande chamamento – a vocação ao amor – e assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade" (LF 53)» (Instrumentum laboris, 7).

A indissolubilidade do matrimónio e a alegria do viver juntos

21. O dom recíproco, constitutivo do matrimónio sacramental, está radicado na graça do batismo, que estabelece a aliança fundamental de cada pessoa com Cristo na Igreja. No recíproco acolhimento e com a graça de Cristo, os nubentes prometem um ao outro dom total, fidelidade e abertura à vida, reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons que Deus lhes oferece, levam a sério o seu mútuo empenho, no seu nome e perante a Igreja. Assim, na fé é possível assumir os bens do matrimónio como empenhos reforçados pela ajuda da graça do sacramento. Deus consagra o amor dos esposos e confirma a sua indissolubilidade, dando-lhes ajuda para viverem a fidelidade, a integração recíproca e a abertura à vida. Portanto, o olhar da Igreja dirige-se aos esposos como ao coração da família inteira, que dirige, também ela, o olhar para Jesus.

22. Na mesma perspetiva, fazendo nosso o ensinamento do Apóstolo, segundo o qual toda a criação foi pensada em Cristo e em vista d'Ele (cf. Col 1,16), o Concílio Vaticano II quis exprimir apreço pelo matrimónio natural e pelos elementos válidos presentes nas outras religiões (cf. Nostra aetate, 2) e nas culturas não obstante os seus limites e carências (cf. Redemptoris missio, 55). A presença dos semina Verbi nas culturas (cf. Ad gentes, 11) poderia ser aplicada, de certa maneira, também à realidade matrimonial e familiar de tantas culturas e pessoas não cristãs. Há, portanto, elementos válidos também nalgumas formas fora do matrimónio cristão – sempre fundado sobre a relação estável e verdadeira de um homem e uma mulher –, que, em todo o caso, consideramos estarem a ele orientadas. Com o olhar posto na sabedoria humana dos povos e das culturas, a Igreja reconhece também essa família como a célula basilar necessária e fecunda da convivência humana.

Verdade e beleza da família e misericórdia para com as famílias feridas e frágeis

23. Com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha para as famílias que se mantêm fiéis aos ensinamentos do Evangelho, agradecendo e encorajando o testemunho que dão. Pois é graças a elas que se torna credível a beleza do matrimónio indissolúvel e fiel para sempre. Na família, «que poderia chamar-se Igreja doméstica» (Lumen gentium, 11), amadurece a primeira experiência eclesial da comunhão entre pessoas, em que se reflete, pela graça, o mistério da Santíssima Trindade. «É aqui que se aprende a fadiga e a alegria do trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre renovado e, sobretudo, o culto divino, pela oração e o oferecimento da própria vida» (Catecismo da Igreja Católica, 1657). A Sagrada Família de Nazaré é o seu admirável modelo, em cuja escola «se compreende a necessidade de ter uma disciplina espiritual, se queremos seguir os ensinamentos do Evangelho e sermos discípulos de Cristo» (Paolo VI, Alocução em Nazaré, 5 de janeiro de 1964). O Evangelho da família nutre também as sementes que ainda esperam para amadurecer, e deve cuidar das árvores que secaram e precisam que não sejam negligenciadas.

24. A Igreja, como mestra segura e mãe solícita, embora admita que para os batizados não há outro vínculo nupcial além do sacramental, e que toda a rutura deste é contra a vontade de Deus, também é consciente da fragilidade de muitos dos seus filhos, que sentem dificuldade no caminho da fé. «Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. [...] Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar grandes dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas» (Evangelii gaudium, 44).

25. Para uma abordagem pastoral às pessoas que contraíram um matrimónio civil, que estão divorciadas e voltaram a casar ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes a divina pedagogia da graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do plano de Deus nelas. Seguindo o olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o homem (cf. Jo 1,9; Gaudium et spes, 22), a Igreja dirige-se com amor aos que participam na sua vida de forma incompleta, reconhecendo que a graça de Deus opera também nas suas vidas, encorajando- as a praticar o bem, a cuidarem um do outro com amor e a estarem ao serviço da comunidade em que vivem e trabalham.

26. A Igreja olha com apreensão para a desconfiança que tantos jovens têm no empenho conjugal, sofre pela precipitação com que tantos fiéis decidem pôr fim ao vínculo assumido, criando um outro. Estes fiéis, que fazem parte da Igreja, precisam de uma atenção pastoral misericordiosa e encorajadora, distinguindo de forma adequada as situações. Os jovens batizados devem ser encorajados a não hesitar perante a riqueza que o sacramento do matrimónio dá aos seus projetos de amor, fortes do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamente na vida da Igreja.

27. Nesse sentido, uma dimensão nova da pastoral familiar hodierna consiste em prestar atenção à realidade dos matrimónios civis entre homem e mulher, aos matrimónios tradicionais e, com as devidas diferenças, também às convivências. Quando a união atinge uma notável estabilidade através de um vínculo público e é caraterizada por um afeto profundo, pela responsabilidade para com a prole e pela capacidade de superar as dificuldades, pode ser vista como uma ocasião a acompanhar em ordem ao sacramento do matrimónio. Muitas vezes, porém, a convivência estabelece-se sem ter em vista um possível futuro matrimónio e sem intenção alguma de estabelecer uma relação institucional.

28. Imitando o olhar misericordioso de Jesus, a Igreja deve acompanhar com atenção e solicitude os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e perdido, restituindo-lhes confiança e esperança, como a luz do farol de um porto ou de um archote trazido para o meio das pessoas, para iluminar os que perderam a rota ou se encontram no meio da tempestade. Conscientes de que a maior misericórdia é dizer a verdade com amor, temos que ir além da compaixão. O amor misericordioso, como atrai e une, também transforma e eleva; convida à conversão. É assim que entendemos a atitude do Senhor, que não condena a mulher adúltera, mas pede-lhe para não voltar a pecar (cf. Jo 8,1-11).


III PARTE
O confronto: perspetivas pastorais

Anunciar o Evangelho da família hoje, nos vários contextos

29. O diálogo sinodal deteve-se sobre algumas instâncias pastorais mais urgentes, cuja concretização confia a cada Igreja local, em comunhão "cum Petro et sub Petro". O anúncio do Evangelho da família é uma urgência para a nova evangelização. A Igreja é chamada a fazê-lo com ternura de mãe e clareza de mestra (cf. Ef 4,15), na fidelidade à kénose misericordiosa de Cristo. A verdade encarna-se na fragilidade humana, não para a condenar, mas para salvá-la (cf. Jo 3,16-17).

30. Evangelizar é uma responsabilidade de todo o povo de Deus, cada um segundo o seu ministério e carisma. Sem o testemunho alegre dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas, o anúncio, mesmo se correto, corre o risco de não ser compreendido ou de se afogar no mar de palavras que carateriza a nossa sociedade (cf. Novo millennio ineunte, 50). Os Padres sinodais sublinharam repetidas vezes que as famílias católicas, em força da graça do sacramento nupcial, são chamadas a ser, elas mesmas, sujeitos ativos da pastoral familiar.

31. Será decisivo realçar o primado da graça e, portanto, as possibilidades que o Espírito dá no sacramento. Trata-se de fazer experimentar que o Evangelho da família é alegria que «enche o coração e a vida inteira», porque em Cristo somos «libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento» (Evangelii gaudium, 1). À luz da parábola do semeador (cf. Mt 13,3), a nossa função é cooperar no semear: o resto é obra de Deus. Não se esqueça, por outro lado, que a Igreja, que prega sobre a família, é sinal de contradição.

32. Por isso, pede-se a toda a Igreja uma conversão missionária: é necessário não ficar num anúncio meramente teórico e desligado dos problemas reais das pessoas. Nunca se deve esquecer que a crise da fé trouxe uma crise do matrimónio e da família e, como consequência, interrompeu-se a transmissão da mesma fé de pais para filhos. Perante uma fé forte, a imposição de certas perspetivas culturais que enfraquecem a família e o matrimónio não tem incidência.

33. A conversão deve fazer-se também na linguagem, para que esta seja efetivamente significativa. O anúncio deve levar à experiência de que o Evangelho da família é uma resposta às expetativas mais profundas da pessoa humana: à sua dignidade e à realização plena na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar uma normativa, mas de propor valores, respondendo à necessidade que se sente deles, hoje constatada também nos Países mais secularizados.

34. A Palavra de Deus é fonte de vida e espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar deverá deixar-se modelar interiormente e formar os membros da Igreja doméstica através da leitura orante e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus não é só uma boa nova para a vida privada das pessoas, mas é também um critério de juízo e uma luz para o discernimento dos diversos desafios com que se confrontam os cônjuges e as famílias.

35. Ao mesmo tempo, muitos Padres sinodais insistiram sobre uma atitude mais positiva em relação às diversas experiências religiosas, sem omitir as suas dificuldades. Nestas diversas realidades religiosas e na grande diversidade cultural que carateriza as Nações, é oportuno começar por apreciar as suas possibilidades positivas e, à luz das mesmas, avaliar limites e carências.

36. O matrimónio cristão é uma vocação que se acolhe com uma adequada preparação num itinerário de fé, com um discernimento maduro, não se devendo considerá-lo apenas como uma tradição cultural ou uma exigência social ou jurídica. Por isso, é necessário realizar percursos que acompanhem a pessoa e o casal, de modo que à comunicação dos conteúdos da fé se una a experiência de vida oferecida por toda a comunidade eclesial.

37. Foi repetidamente lembrada a necessidade de uma radical renovação da prática pastoral à luz do Evangelho da família, superando as óticas individualistas que ainda a caracterizam. Para isso, várias vezes se insistiu sobre a renovação da formação dos presbíteros, dos diáconos, dos catequistas e dos outros agentes pastorais, mediante um maior envolvimento das próprias famílias.

38. Foi igualmente sublinhada a necessidade de uma evangelização que denuncie com franqueza os condicionamentos culturais, sociais, políticos e económicos, como o excessivo espaço dado à lógica do mercado, que impedem uma autêntica vida familiar, criando discriminações, pobreza, exclusões, violência. Daí que se desenvolva um diálogo e uma cooperação com as estruturas sociais, e se encorajem e se apoiem os leigos a se empenharem, como cristãos, no âmbito cultural e sociopolítico.

Guiar os nubentes no caminho de preparação para o matrimónio

39. A complexa realidade social e os desafios que a família hoje é chamada a enfrentar exigem um maior empenho de toda a comunidade cristã na preparação dos nubentes para o matrimónio. Há que recordar a importância das virtudes. Entre elas, a castidade é condição preciosa para o crescimento genuíno do amor interpessoal. Sobre esta necessidade, os Padres sinodais são unânimes em sublinhar a exigência de um maior envolvimento de toda a comunidade, privilegiando o testemunho das próprias famílias, além de uma inserção da preparação ao matrimónio no caminho de iniciação cristã, sublinhando a ligação do matrimónio com o batismo e os outros sacramentos. Foi, ao mesmo tempo, posta em evidência a necessidade de programas específicos para a preparação próxima ao matrimónio, que sejam uma verdadeira experiência de participação na vida eclesial e aprofundam os diversos aspetos da vida familiar.

Acompanhar os primeiros anos da vida matrimonial

40. Os primeiros anos de matrimónio são um período vital e delicado, no qual os casais crescem conscientes dos desafios e do significado do matrimónio. Daí a exigência de um acompanhamento pastoral que continue depois da celebração do sacramento (cf. Familiaris consortio, parte III). É de grande importância nesta pastoral a presença de casais de esposos com experiência. A paróquia é considerada o lugar onde casais experientes podem ser postos à disposição dos mais jovens, com o eventual contributo de associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. Há que encorajar os esposos a uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos. Deve sublinhar-se a importância da espiritualidade familiar, da oração e da participação na Eucaristia dominical, encorajando os casais a se reunirem regularmente para promover o crescimento da vida espiritual e a solidariedade nas exigências concretas da vida. Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias celebradas para as famílias, sobretudo no aniversário do matrimónio, foram indicadas como sendo vitais para favorecer a evangelização através da família.

Cuidado pastoral dos que vivem no matrimónio civil ou em convivências

41. Continuando a anunciar e a promover o matrimónio cristão, o Sínodo encoraja também o discernimento pastoral das situações de tantos que já não vivem esta realidade. É importante entrar em diálogo pastoral com essas pessoas, a fim de evidenciar os elementos da sua vida, que possam levar a uma maior abertura ao Evangelho do matrimónio na sua plenitude. Os pastores devem identificar elementos que possam favorecer a evangelização e o crescimento humano e espiritual. Uma sensibilidade nova da pastoral atual consiste em colher os elementos positivos presentes nos matrimónios civis e, com as devidas diferenças, nas convivências. É necessário que, na proposta eclesial, embora afirmando com clareza a mensagem cristã, se indiquem também elementos construtivos nas situações que a ela não correspondem ou já não correspondem.

42. Notou-se também que, em muitos Países, um «número crescente de casais convive ad experimentum, sem um matrimónio nem canónico nem civil» (Instrumentum laboris, 81). Nalguns Países, isso verifica-se sobretudo no matrimónio tradicional, concertado entre famílias e, muitas vezes, celebrado em várias etapas. Noutros Países, porém, cresce o número dos que, depois de terem vivido juntos por um longo período de tempo, pedem a celebração do matrimónio na Igreja. A simples convivência é, muitas vezes, preferida por causa da mentalidade geral contrária às instituições e aos empenhos definitivos, mas também pela espera de uma segurança existencial (trabalho e salário fixo). Noutros Países, por fim, as uniões de facto são muito numerosas, não só pela recusa dos valores da família e do matrimónio, mas sobretudo pelo facto de que casar-se é considerado um luxo, pelas condições sociais, levando a miséria material a viver em união de facto.

43. Todas estas situações devem ser enfrentadas de forma construtiva, procurando transformá-las em oportunidades de caminho para a plenitude do matrimónio e da família à luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza. Para esse fim, é importante o testemunho atraente de autênticas famílias cristãs, quais sujeitos da evangelização da família.

Cuidar das famílias feridas (separados, divorciados não recasados, divorciados recasados, famílias monoparentais)

44. Quando os esposos têm problemas nas suas relações, devem poder contar com a ajuda e o acompanhamento da Igreja. A pastoral da caridade e a misericórdia tendem a recuperar as pessoas e as relações. A experiência mostra que, com uma ajuda adequada e com a ação de reconciliação da graça, uma grande percentagem de crises matrimoniais é superada de forma satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoados é uma experiência fundamental na vida familiar. O perdão entre os esposos permite viver um amor, que é para sempre e nunca passa (cf. 1 Cor 13,8). Por vezes, porém, torna-se difícil para quem recebeu o perdão de Deus ter a força de dar um perdão autêntico que regenere a pessoa.

45. No Sínodo ecoou com clareza a necessidade de escolhas pastorais corajosas. Reconfirmando com vigor a fidelidade ao Evangelho da família e reconhecendo que a separação e o divórcio são sempre feridas, que provocam profundos sofrimentos nos cônjuges que os vivem e nos filhos, os Padres sinodais aperceberam-se da urgência de caminhos pastorais novos, que partam da efetiva realidade das fragilidades familiares, sabendo que estas, muitas vezes, são mais "recebidas" com sofrimento do que escolhidas em plena liberdade. Trata-se de situações diversas por fatores tanto pessoais como culturais e socioeconómicos. É necessário um olhar diferenciado, como São João Paulo II sugeria (cf. Familiaris consortio, 84).

46. Cada família deve ser, antes de mais, escutada com respeito e amor, tornando-se companheiros de viagem como Cristo com os discípulos no caminho de Emaús. Aplicam-se de modo especial a estas situações as palavras do Papa Francisco: «A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta "arte do acompanhamento", para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3,5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã» (Evangelii gaudium, 169).

47. Um especial discernimento é indispensável para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os que foram abandonados. Há que acolher e valorizar, sobretudo, o sofrimento dos que sofreram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou que foram obrigados pelos maus tratos do cônjuge a romper a convivência. O perdão pela injustiça sofrida não é fácil, mas é um caminho que a graça torna possível. Daí a necessidade de uma pastoral da reconciliação e da mediação através também de centros de escuta especializados a instituir nas dioceses. Do mesmo modo, deve sempre sublinhar-se que é indispensável assumir de forma leal e construtiva as consequências que a separação ou o divórcio têm sobre os filhos, sempre vítimas inocentes da situação. Eles não podem ser um "objeto" a disputar, e devem procurar-se as melhores formas para que possam superar o trauma da separação familiar e crescer o mais serenamente possível. Em todo o caso, a Igreja deverá sempre pôr em relevo a injustiça que deriva, muitas vezes, da situação de divórcio. Deve dar-se especial atenção ao acompanhamento das famílias monoparentais e, sobretudo, há que ajudar as mulheres que tenham de arcar sozinhas com a responsabilidade da casa e a educação dos filhos.

48. Um grande número de Padres sublinhou a necessidade de tornar mais acessíveis e ágeis, se possível totalmente gratuitos, os processos para o reconhecimento dos casos de nulidade. Entre as propostas foram indicadas: a superação da necessidade da dupla sentença conforme; a possibilidade de estabelecer uma via administrativa, sob a responsabilidade do bispo diocesano; um processo sumário, a realizar nos casos de nulidade notória. Alguns Padres, porém, mostram-se contrários a essas propostas, porque não garantiriam um juízo confiável. Há que insistir que, em todos estes casos, trata-se do apuramento da verdade sobre a validade do vínculo. Segundo outras propostas, deveria também considerar-se a possibilidade de dar relevo ao papel da fé dos nubentes em ordem à validade do sacramento do matrimónio, tendo como ponto firme que, entre batizados, todos os matrimónios válidos são sacramento.

49. Sobre as causas matrimoniais, a simplificação do procedimento, pedida por muitos, para além da preparação de suficientes agentes, clérigos e leigos com dedicação prioritária, exige que se sublinhe a responsabilidade do bispo diocesano, que na sua diocese poderia encarregar consultores, devidamente preparados, que pudessem gratuitamente aconselhar as partes sobre a validade do seu matrimónio. Essa função poderia ser desempenhada por um secretariado ou por pessoas qualificadas (cf. Dignitas connubii, art. 113, 1).

50. As pessoas divorciadas, mas que não voltaram a casar, e que muitas vezes são testemunhos de fidelidade matrimonial, devem ser encorajadas a encontrar na Eucaristia o alimento que as sustente no seu estado. A comunidade local e os Pastores devem acompanhar essas pessoas com solicitude, sobretudo quando há filhos ou é grave a sua situação de pobreza.

51. Também as situações dos divorciados que voltaram a casar exigem um atento discernimento e um acompanhamento de grande respeito, evitando toda a linguagem e atitude que os faça sentir discriminados, e promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar deles não é para a comunidade cristã um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade matrimonial, mas, ao contrário, precisamente nessa atenção, se exprime a sua caridade.

52. Refletiu-se sobre a possibilidade de os divorciados e recasados terem acesso aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Diversos Padres sinodais insistiram em favor da disciplina atual, pela relação constitutiva entre a participação na Eucaristia e a comunhão com a Igreja e com o seu ensinamento sobre o matrimónio indissolúvel. Outros exprimiram- se em favor de um acolhimento não generalizado à mesa eucarística, nalgumas situações particulares e com condições bem definidas, sobretudo tratando-se de casos irreversíveis e ligados a obrigações morais para com os filhos, que viriam a sofrer injustamente. O eventual acesso aos sacramentos deveria ser precedido de um caminho penitencial, sob a responsabilidade do bispo diocesano. A questão precisa de ser aprofundada, tendo bem presente a distinção entre situação objetiva de pecado e circunstâncias atenuantes, dado que «a imputabilidade e a responsabilidade de um ato podem ser diminuídas ou anuladas» por diversos «fatores psíquicos ou de carácter social» (Catecismo da Igreja Católica, 1735).

53. Alguns Padres defenderam que as pessoas divorciadas e recasadas ou conviventes possam recorrer frutuosamente à comunhão espiritual. Outros Padres perguntaram porque não podem então aceder à sacramental. Pede-se, portanto, um aprofundamento da temática capaz de fazer emergir a peculiaridade das duas formas e a sua relação com a teologia do matrimónio.

54. As problemáticas relativas aos matrimónios mistos reapareceram com frequência nas intervenções dos Padres sinodais. A diversidade da disciplina matrimonial das Igrejas ortodoxas põe, nalguns contextos, problemas, sobre o que se impõe uma reflexão no âmbito ecuménico. Analogamente, para os matrimónios inter-religiosos será importante o contributo do diálogo com as religiões.

A atenção pastoral para com as pessoas com orientação homossexual

55. Algumas famílias vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com orientação homossexual. A tal propósito, interrogámo-nos sobre qual devia ser a atenção pastoral oportuna perante essa situação, tendo presente o que a Igreja ensina: «Não existe nenhum fundamento para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família». E, do mesmo modo, os homens e as mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos com respeito e delicadeza. «Deve evitar-se para com eles qualquer atitude de injusta discriminação» (Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, 4).

56. É absolutamente inaceitável que os Pastores da Igreja recebam pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem as ajudas financeiras aos Países pobres à introdução de leis que instituam o "matrimónio" entre pessoas do mesmo sexo.

A transmissão da vida e o desafio da quebra da natalidade

57. Não é difícil constatar o difundir-se de uma mentalidade, que reduz a geração da vida a uma variável da projetação individual ou de casal. Os fatores de ordem económica têm um peso, por vezes, determinante, contribuindo para a forte quebra da natalidade, que enfraquece o tecido social, compromete a relação entre as gerações e torna mais incerto o olhar para o futuro. A abertura à vida é exigência intrínseca do amor conjugal. Nesta luz, a Igreja apoia as famílias que acolhem, educam e circundam de afeto os filhos diversamente hábeis.

58. Também neste âmbito, é necessário partir da escuta das pessoas e dar razão da beleza e da verdade de uma abertura incondicional à vida como algo de que o amor humano precisa, para vivê-lo em plenitude. É sobre esta base que pode assentar um adequado ensinamento sobre os métodos naturais para a procriação responsável. Isso ajuda a viver de forma harmoniosa e consciente a comunhão entre os cônjuges, em todas as suas dimensões, inclusive na responsabilidade geradora. Há que redescobrir a mensagem da Encíclica Humanae vitae de Paulo VI, que sublinha a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa, na avaliação moral dos métodos de regulação da natalidade. A adoção de crianças, órfãs e abandonadas, acolhidas como próprios filhos, é uma forma específica de apostolado familiar (cf. Apostolicam actuositatem, III,11), várias vezes lembrada e encorajada pelo magistério (cf. Familiaris consortio, III,II; Evangelium vitae, IV,93). A escolha da adoção e da entrega exprime uma especial fecundidade da experiência conjugal, não só quando esta é marcada pela esterilidade. Essa escolha é sinal eloquente do amor familiar, ocasião para testemunhar a própria fé e restituir dignidade filial a quem dela foi privado.

59. Deve-se ajudar a viver a afetividade, inclusive na ligação conjugal, como um caminho de maturação, no cada vez mais profundo acolhimento do outro e numa doação cada vez mais plena. Nesse sentido, há que insistir sobre a necessidade de oferecer caminhos formativos, que alimentem a vida conjugal, e sobre a importância de um laicado, que ofereça um acompanhamento, feito de testemunho vivo. É de grande ajuda o exemplo de um amor fiel e profundo, feito de ternura e respeito, capaz de crescer no tempo e que, no seu concreto abrir-se à geração da vida, faz a experiência de um mistério que nos transcende.

O desafio da educação e o papel da família na evangelização

60. Um dos desafios fundamentais, que hoje se põe às famílias, é certamente o da educação, que se torna mais exigente e complexa pela realidade cultural atual e pela grande influência dos média. Devem ser tidas na devida conta as exigências e as expetativas das famílias, que são capazes de ser, na vida quotidiana, lugares de crescimento, de concreta e essencial transmissão das virtudes, que dão forma à existência. Isso significa que os pais podem escolher livremente o tipo de educação a dar aos filhos, segundo as suas convicções.

61. A Igreja desempenha um papel precioso de apoio às famílias, partindo da iniciação cristã, através de comunidades acolhedoras. Pede-se-lhe, hoje mais do que ontem, tanto nas situações complexas como nas ordinárias, que apoie os pais no seu empenho educativo, acompanhando as crianças, os adolescentes e os jovens no seu crescimento, através de caminhos personalizados, capazes de os introduzir no sentido pleno da vida e de provocar escolhas e responsabilidades vividas à luz do Evangelho. Maria, na sua ternura, misericórdia e sensibilidade materna, pode saciar a fome de humanidade e de vida, para o que a invocam as famílias e o povo cristão. A pastoral e uma devoção mariana são um ponto de partida oportuno para anunciar o Evangelho da família.


CONCLUSÃO

62. As reflexões propostas, fruto do trabalho sinodal realizado com grande liberdade e num estilo de recíproca escuta, procuram lançar questões e indicar perspetivas, que deverão ser amadurecidas e definidas na reflexão das Igrejas locais, no ano que nos separa da Assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, prevista para outubro de 2015 e dedicada à vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo. Não se trata de decisões tomadas nem de perspetivas fáceis. Todavia, o caminho colegial dos Bispos e o envolvimento de todo o povo de Deus sob a ação do Espírito Santo, olhando para o modelo da Sagrada Família, poderão guiar-nos para encontrar caminhos de verdade e de misericórdia para todos. Foram os votos que, desde o início dos nossos trabalhos, nos fez o Papa Francisco, convidando-nos à coragem da fé e ao acolhimento humilde e honesto da verdade na caridade.

[tradução a cargo do Secretariado Geral da CEP]

 

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