PARÓQUIA S. MIGUEL DE QUEIJAS

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Papa entoa hino de louvor às mães

papa maes«Obrigado por aquilo que sois na família e por aquilo que dais à Igreja e ao mundo», afirmou o Papa Francisco na Audiência de quarta-feira, 7 de Janeiro, dirigindo-se às mães sublinhando a capital importância elas têm na nossa sociedade. Aqui fica o texto na íntegra:

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje continuamos com as catequeses sobre a Igreja e faremos uma reflexão sobre a Igreja mãe. A Igreja é mãe. A nossa Santa mãe Igreja.

Nestes dias a liturgia da Igreja colocou diante dos nossos olhos o ícone da Virgem Maria Mãe de Deus. O primeiro dia do ano é a festa da Mãe de Deus, à qual se segue a Epifania, com a recordação da visita dos Magos. Escreve o evangelista Mateus: «Entrando na casa, acharam o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se diante dele, adoraram-no» (Mt 2, 11). É a Mãe que, depois de o ter gerado, apresenta o Filho ao mundo. Ela dá-nos Jesus, ela mostra-nos Jesus, ela faz-nos ver Jesus.

Continuamos com as catequeses sobre a família e na família há a mãe. Cada pessoa humana deve a vida a uma mãe, e quase sempre lhe deve muito da própria existência sucessiva, da formação humana e espiritual. Contudo, a mãe, embora seja muito exaltada sob o ponto de vista simbólico — muitas poesias, muitas coisas bonitas se dizem poeticamente sobre a mãe — é pouco escutada e pouco ajudada no dia-a-dia, pouco considerada no seu papel central na sociedade. Aliás, muitas vezes aproveita-se da disponibilidade das mães a sacrificar-se pelos filhos para «economizar» nas despesas sociais.

Acontece também que na comunidade cristã a mãe nem sempre é valorizada, é pouco ouvida. Todavia, no centro da vida da Igreja está a Mãe de Jesus. Talvez as mães, prontas para muitos sacrifícios pelos filhos, e frequentemente também pelos dos outros, deveriam ser escutadas. Seria necessário compreender melhor a sua luta quotidiana para serem eficientes no trabalho e diligentes e afectuosas em família; seria necessário compreender melhor quais são as suas aspirações a fim de expressar os frutos melhores e autênticos da sua emancipação. Uma mãe com os filhos tem sempre problemas, trabalhos. Lembro-me que em casa, éramos cinco filhos e enquanto um fazia uma travessura, o outro fazia outra, e a minha pobre mãe corria de um lado para o outro, mas era feliz. Deu-nos tanto.

As mães são o antídoto mais forte contra o propagar-se do individualismo egoísta. «Indivíduo» quer dizer «que não se pode dividir». As mães, ao contrário, «dividem-se», a partir do momento que hospedam um filho para o dar à luz e fazer crescer. São elas, as mães, que mais odeiam a guerra, que mata os seus filhos. Muitas vezes pensei naquelas mães quando receberam uma carta: «Digo-lhe que o seu filho morreu em defesa da pátria...». Pobres mulheres! Como sofre uma mãe! São elas que testemunham a beleza da vida. O arcebispo Oscar Arnulfo Romero dizia que as mães vivem um «martírio materno». Na homilia para o funeral de um sacerdote assassinado pelos esquadrões da morte, ele disse, fazendo eco ao Concílio Vaticano II: «Todos devemos estar dispostos a morrer pela nossa fé, ainda que o Senhor não nos conceda esta honra... Dar a vida não significa somente ser assassinado; dar a vida, ter espírito de martírio, é dar no dever, no silêncio, na oração, no cumprimento honesto do dever; naquele silêncio da vida quotidiana; dar a vida pouco a pouco? Sim, como a dá uma mãe que, sem temor, com a simplicidade do martírio materno, concebe no seu seio um filho, dando-o à luz, amamentando-o, fazendo-o crescer e cuidando dele com carinho. É dar a vida. É martírio». Termino aqui a citação. Sim, ser mãe não significa somente colocar um filho no mundo, mas é também uma escolha de vida. O que escolhe uma mãe, qual é a escolha de vida de uma mãe? A escolha de vida de uma mãe é a escolha de dar a vida. E isto é grande, é bonito.

Uma sociedade sem mães seria uma sociedade desumana, porque as mães sabem testemunhar sempre, mesmo nos piores momentos, a ternura, a dedicação, a força moral. As mães transmitem, muitas vezes, também o sentido mais profundo da prática religiosa: nas primeiras orações, nos primeiros gestos de devoção que uma criança aprende, está inscrito o valor da fé na vida de um ser humano. É uma mensagem que as mães que acreditam sabem transmitir sem tantas explicações: estas chegarão depois, mas a semente da fé está naqueles primeiros, preciosíssimos momentos. Sem as mães, não somente não haveria novos fiéis, mas a fé perderia boa parte do seu calor simples e profundo. E a Igreja é mãe, com tudo isso, é nossa mãe! Nós não somos órfãos, temos uma mãe! Nossa Senhora, a mãe Igreja e a nossa mãe. Não somos órfãos, somos filhos da Igreja, somos filhos de Nossa Senhora e somos filhos das nossas mães.

Queridas mães, obrigado, obrigado por aquilo que sois na família e por que o dais à Igreja e ao mundo. E a ti, amada Igreja, obrigado por ser mãe. E a ti, Maria, mãe de Deus, obrigado por nos fazer ver Jesus. E obrigado a todas as mães aqui presentes: saudemo-las com um aplauso!

Papa Francisco
Vaticano, 7 de Janeiro de 2015

Sete imagens de evangelização no papa Francisco

Franc116O impacto eclesial e mundial do papa Francisco não se deve fundamentalmente aos seus discursos e aos seus escritos, que muitos não leram na totalidade, mas aos seus gestos simbólicos (abraçar crianças, beijar pessoas com deficiência, comer com os trabalhadores do Vaticano na cantina, alojar-se fora do palácio apostólico, viajar numa pequena viatura utilitária...) e a algumas das suas imagens e expressões visuais, captadas e compreendidas por todos com grande facilidade. Estas frases, acrescentadas no meio de uma homilia ou de um discurso, têm um grande poder evocativo e mediático; são como a versão moderna das parábolas e imagens que Jesus empregava no seu tempo.

Por isso, em lugar de oferecer uma exposição sistemática e académica do pensamento de Francisco sobre a evangelização, limitar-me-ei a apresentar sete imagens expressivas que, de alguma forma, sintetizam de forma simbólica o mais essencial e novo da sua proposta de evangelização.

1. Portas abertas
A Igreja não é uma prisão, nem um museu, nem uma fortaleza medieval com muralhas, fossos e ponte levadiça.
A Igreja é um lar de portas abertas e flores nas janelas, que acolhe a todos, venham de onde vierem, e a todos oferece uma mesa com pão e vinho. É um lugar de misericórdia, não um lugar de torturas nem uma alfândega que controla tudo. É uma casa paterna, materna, cujo ícone eclesial é Maria, que nos introduz a Jesus e este nos leva ao Pai. A Igreja reproduz na história o coração da misericórdia do Pai que Jesus, com a sua vida e ensinamento, nos revelou. Uma misericórdia que se comove perante o sofrimento e o pecado dos seus filhos.

Se João XXIII disse que com o Concílio Vaticano II a Igreja abria a sua janela para que entrasse um pouco de ar fresco na Igreja, agora Francisco abriu totalmente as portas da Igreja a todos, a cristãos e não cristãos, a matrimónios rompidos, a homossexuais, a agnósticos e não crentes. Todos são bem-vindos.

2. Sair para a rua
As portas abertas indicam acolhimento aos que chegam de fora. Mas a Igreja não deve esperar que cheguem de fora às suas portas; tem de sair para a rua, ir às periferias, às fronteiras geográficas e existenciais, ainda que com o risco de ter acidentes.

Não é uma Igreja encerrada em si mesma, autorreferencial, preocupada somente com os seus escândalos ou os seus problemas clericais, mas ma Igreja que procura o que está perdido, que sai ao encontro do necessitado, que atravessa os caminhos empoeirados do mundo e escuta o clamor do povo, as suas dificuldades e anseios, como fazia Jesus de Nazaré ao percorrer os caminhos da Galileia ou da Judeia.

É uma Igreja em estado de missão – missionária – que calcorreia a fé e quer estar nas encruzilhadas da história e dialogar com a ciência, com as culturas, com as religiões, sem medo, porque sabe que o Espírito de Deus enche o universo e é a causa de toda a novidade.

Isto faz com que a Igreja não tenha nostalgia do passado, mas que se abra ao futuro e aos sinais dos tempos, aos novos areópagos. É uma Igreja em saída.

3. Hospital de campanha
Em momentos críticos, de guerras, acidentes, epidemias..., os hospitais não se dedicam a fazer análises complicadas nem tratamentos de longa duração, mas a socorrer situações de emergência, em que a vida está em perigo.
Também a Igreja tem de socorrer as emergências pessoais e sociais, salvar, curar, suturar, fechar feridas do sofrimento humano, salvar vidas ameaçadas de crianças, mulheres, indígenas, idosos, deficientes, sarar cicatrizes de pessoas que sofrem no seu corpo e no seu espírito.

Não era isto que Jesus fazia pelos caminhos da Palestina? Não curava doentes, inclusive ao sábado, dado que a pessoa está acima da lei? Não foi o que fez o bom samaritano?

4. Igreja dos pobres
O sonho de João XXIII ao começar o Concílio Vaticano II, a opção pelos pobres da Igreja latino-americana em Medellín e Puebla, a afirmação de Bento XVI de que «a opção pelos pobres» está implícita na nossa fé, as afirmações do Documento de Aparecida de que não se pode falar de Deus sem falar dos pobres (n. 393)..., prolongam-se no desejo de Francisco de uma Igreja pobre e para os pobres.

A evangelização tem uma dimensão social: evangelizar é fazer presente o Reino de Deus, começando pelos prediletos do Senhor, os pobres, hoje reduzidos a seres descartáveis, a multidões consideradas restos.

A opção pelos pobres que estamos a referir não é cultural, nem sociológica, nem política, mas evangélica, bíblica, teológica. Os pobres, a sua piedade religiosa, são um verdadeiro lugar teológico, um lugar onde somos evangelizados.

A Igreja não pode ficar à margem da luta pela justiça; por isso denuncia o atual sistema económico injusto que discrimina e mata o povo pobre. A Igreja não pode permanecer impassível diante de tanta injustiça e sofrimento humano.

O sorriso constante do papa, os seus gestos de ternura, os seus escritos sobre "a alegria do Evangelho" podem parecer-nos uma falsa imagem do bispo de Roma. Mas Francisco denuncia profeticamente os aspetos da nossa sociedade que são contrários ao Evangelho do Reino.

Proclamou um contundente "não " à economia da exclusão e iniquidade que gera violência; um "não" à economia que se cristaliza em estruturas injustas e que mata; um "não" à globalização da indiferença; um "não " à idolatria do dinheiro; um "não" a escudar-se em Deus para justificar a violência; um "não" à insensibilidade social que nos anestesia perante o sofrimento; um "não" ao armamentismo. Francisco atualiza o mandamento de não matar e de defender o valor da vida humana, desde o começo até ao fim.

Por trás destes "não" de Francisco desenha-se uma imagem realmente evangélica da Igreja e do mundo; um mundo mais próximo do Reino de Deus. A alegria de Francisco não é uma alegria mundana nem fruto de um temperamento otimista, mas a alegria que brota do Evangelho de Jesus e da força do seu Espirito, a alegria da Igreja dos pobres.

5. Difundir o odor do Evangelho
Frente a posturas tradicionais, obcecadas pela ortodoxia doutrinal e pelo moralismo da casuística – sobretudo em temas sexuais –, a Igreja deve difundir, antes de tudo, o perfume do Evangelho de Jesus, a alegria da salvação em Cristo, o "kerigma", isto é, o anúncio da Boa Nova de Jesus, passando pela experiência espiritual do encontro com o Senhor, até à mistagogia.

É preciso concentrar-se no essencial do Evangelho, que é o mais belo e atrativo. Falar mais da graça do que da lei, falar mais de Cristo do que da Igreja, mais da Palavra de Deus que do papa. Manter a hierarquia de verdades, a novidade do Evangelho, a alegria da Páscoa.

6. Cheirar a ovelha
Diante de posturas clericais de pastores encerrados nos seus despachos, alienados das pessoas do povo, funcionários que procuram carreirismo ou que estão sempre nos aeroportos, é preciso aproximar-se do povo, «tocar a carne de Cristo» nos pobres, superar todo o clericalismo, mundanismo e patriarcalismo, reformar o próprio papado, recuperar as atitudes de Jesus bom pastor, que procura a ovelha perdida e a carrega sobre os seus ombros. Há que «cheirar a ovelha», a povo, a suor, a pó, a dor e angústia.

7. Evangelizar com Espírito
Evangelizar não é uma obrigação pesada, nem algo que devamos realizar de maneira triste ou com ansiedade; também não é uma atividade que se deve realizar com desalento ou impaciência, mas é fruto da alegria do Evangelho que nos impele para uma missão alegre e que conforta. Mas isto supõe uma evangelização com Espírito, o mesmo Espírito que impeliu os apóstolos no Pentecostes, e que alenta e move a Igreja de hoje a prosseguir a missão de Jesus.

A evangelização supõe o encontro com o Senhor ressuscitado, Ele que dá o seu Espírito aos discípulos e converte uma comunidade de apóstolos covardes e tímidos em testemunhas do Evangelho, capazes de dar a vida pelo Senhor Jesus e o Reino.
Trata-se de anunciar a Boa Nova não só com palavras, mas com a vida, de confiar na força do Espírito que semeia sementes do Reino onde quer e é fonte de novidade e de vida dentro e fora da Igreja.

O Espírito faz-nos conhecer Jesus, constitui-nos como povo de Deus; o Espírito torna presente o Reino, converte-se para os cristãos em alegria no meio do cansaço e do desânimo; é a raiz da nossa esperança pascal. «Não tenhamos caras tristes nem de funeral», mas transmitamos a alegria do Evangelho. Não deixemos que nos roubem a esperança.

Conclusão: Lampedusa
Lampedusa é uma pequena ilha italiana de 20 km2 e com apenas cinco mil habitantes, situada no Mediterrâneo. Está a 205 km da Sicília e a 111 km de Tunes. Esta ilha árida, que só tem a água da chuva, vive da pesca, agricultura e turismo.
Tornou-se conhecida por ser o porto de entrada na Europa de milhares de imigrantes sem documentos procedentes da África e também do Médio Oriente e Ásia. Nas últimas duas décadas, cerca de 20 mil pessoas que, à procura de melhores condições de vida se dirigiam a Lampedusa em barcaças e jangadas, perderam a vida na travessia.

A esta ilha viajou o papa Francisco no dia 8 de julho de 2013. Para a sua primeira viagem fora de Roma não escolheu nem Nova Iorque nem Bruxelas, nem tampouco quis ir a Buenos Aires, mas a Lampedusa, para lançar um grito de alerta mundial diante da tragédia dos imigrantes.

Em Lampedusa, o papa não rezou só pelos mortos, não lançou só ao mar uma coroa de flores amarelas e brancas em memória das vítimas, não só abraçou migrantes africanos recém-chegados, mas quis despertar a consciência de uma humanidade que permanece envolvida – como numa bolha de sabão – na cultura do bem-estar, de uma humanidade que perdeu o sentido da responsabilidade fraterna e se tornou incapaz de proteger as pessoas mais desprotegidas ou, inclusive, a própria natureza.

Na sua mensagem, Francisco afirma que estamos submergidos na globalização da indiferença, que temos o coração anestesiado e somos incapazes de chorar pelas mortes dos nossos irmãos. Ninguém se sente responsável por estas mortes. Francisco repete as palavras bíblicas: «Caim, onde está o teu irmão?».

Esta viagem de Francisco a Lampedusa, os seus gestos e palavras, não poderão resumir e simbolizar o estilo de evangelização de uma igreja que, movida pelo Espírito, sai para fora, se dirige preferencialmente aos pobres e a quantos sofrem, lhes abre as portas de mãe, enquanto apela a todos que deixem o egoísmo e vivam como irmãos?

Não resume o episódio de Lampedusa um forte cheiro a Evangelho? Não atualiza esta viagem de Francisco a imagem do Bom Pastor que vai à procura da ovelha perdida? A viagem a Lampedusa é como uma parábola viva da evangelização segundo o papa Francisco. Se evangelizar é fazer o que fez Jesus, evangelizar hoje é fazer o que fez Francisco em Lampedusa. Este é o nosso mapa de viagem.

P. Víctor Codina, S.J., in "Vida Pastoral"

Novos cardeais nomeados pelo papa Francisco

ManuelClemente2Periferia e imprevisibilidade

Antes das estatísticas e das análises sobre as percentagens, o sinal de mudança que se verificará no próximo consistório foi claríssimo durante a leitura dos nomes dos novos cardeais, a maior parte absolutamente imprevistos e imprevisíveis. Pastores das periferias do mundo, em muitos casos bispos de dioceses que nunca tinham tido um cardeal.

É o sinal de que o papa Francisco pretende prosseguir o caminho iniciado há um ano: diminuir os purpurados da Cúria do Vaticano (descerão de 30 para 27% a 14 de fevereiro, dia em que serão criados os novos cardeais), pôr fim aos automatismos no que diz respeito às sedes ditas "cardinalícias", cujo titular receberia o barrete, por tradição não escrita. E sobretudo dar espaço ao Sul do planeta, manifestando cada vez mais a universalidade da Igreja.

A lista surge como uma escolha pessoalíssima do papa: novos cardeais souberam da sua designação pela televisão; o italiano Edoardo Menichelli foi avisado por um amigo e pensou que era uma partida. O antigo arcebispo Luigi de Magistris estava na catedral de Cagliari a confessar os fiéis. Outros só acreditaram, a custo, quando os jornalistas lhes pediam um comentário. Não houve fugas de informação.

É evidente que Francisco deseja redesenhar o futuro conclave, assembleia para a eleição do próximo papa, associando ao colégio cardinalício eleitores que sejam pastores na primeira linha de situações difíceis, em terras de fronteira como Tonga e Myanmar, em regiões atingidas pela violência, como Morelia, no México, em Igrejas pequenas ou que vivem em situação de minoria.

Em Itália, mais uma vez, foram preferidos aos bispos das maiores dioceses, como Turim ou Veneza, os pastores de Igrejas mais periféricas: Menichelli, de Ancona, e Francesco Montenegro, de Agrigento. O primeiro percorreu a diocese ao volante de um velho Fiat Panda e começou, há anos, caminhos de proximidade com situações de fragilidade matrimonial; o segundo é o bispo de Lampedusa, destino da primeira visita do papa Francisco, ilha que se confronta com o drama das imigrações.
Há pouco mais de um ano, Francisco disse a superiores de congregações religiosas: «Estou convencido de uma coisa: as grandes mudanças da história realizaram-se quando a realidade foi vista não do centro, mas da periferia». As novas criações cardinalícias parecem dar corpo a essa convicção.

Os novos 15 cardeais eleitores, com menos de 80 anos, são provenientes de 14 países, que se tornam 18 se se acrescentarem os cinco que, por causa da idade, não têm direito a entrar no conclave. Em caso de eleição de um novo papa, o colégio eleitoral terá menos membros da Cúria do Vaticano e será menos europeu.

A maior parte das novas nomeações pertencem ao hemisfério Sul. Duas em África (Etiópia e Cabo Verde), três na Ásia (Vietname, Myanmar e Tailândia), três na América Latina (México, Uruguai e Panamá) e duas na Oceânia (Nova Zelândia e Tonga). Três destes países terão um cardeal pela primeira vez na história: Cabo Verde, Myanmar e Tonga. O bispo destas ilhas, com 53 anos, será o mais jovem do colégio.

Os Estados Unidos e o Canadá estão fora do elenco, mas a América do Norte já está bem representada e o número dos seus eleitores permanece estável. Permanecem à margem do cardinalato os arcebispos de Chicago e de Madrid, ambos recentemente nomeados pelo papa e considerados próximos da sua sensibilidade. Francisco quis fazer valer para todos, novamente, a regra não escrita de fazer esperar aqueles que têm o predecessor emérito com menos de 80 anos, e portanto ainda votante em caso de conclave.

No conjunto das nomeações, apenas duas emergem em linha com a tradição: a do patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, e Dominique Mamberti, que recentemente ocupou o cargo de prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, órgão da Cúria da Santa Sé. Esta foi, aliás, a única novidade curial. Os prelados que dentro da estrutura do Vaticano têm direito ao cardinalato obtiveram-no até agora. Todavia, ficaram de fora os titulares dos conselhos pontifícios, que serão objeto de reforma. De fora, contrariamente a uma prática multissecular, ficou o arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana.
No que diz respeito à presença de congregações religiosas, há um lazarista, um agostiniano e dois salesianos, que passam a ser cinco no colégio cardinalício com direito a voto no conclave.

Seis dos 15 novos cardeais eleitores – Lisboa, Wellington, Ancona, Adis Abeba, Valladolid e Tonga – participaram em outubro no sínodo extraordinário sobre a família. Entre estes, o neozelandês Dew e o italiano Menichelli manifestaram apoio à comunhão das pessoas divorciadas recasadas e ao reconhecimento das uniões homossexuais.

Com estas nomeações, o número de eleitores passa a 125, mais cinco do que o número máximo estabelecido até agora. Mas até fevereiro de 2016 haverá cinco cardeais a completarem 80 anos. Em todo o caso, o papa Francisco pode sempre alterar a norma que impõe o limite de 120 cardeais eleitores de um novo papa.

Os cardeais eleitores criados pelo papa Francisco passarão, a 14 de fevereiro, a ser 31, menos três do que os 34 nomeados por S. João Paulo II, e menos 29 do que as seis dezenas que entraram no colégio cardinalício com Bento XVI.

Andrea Tornielli (in "Vatican Insider"), Sandro Magister (in "L'Espresso")

Já não escravos, mas irmãos

2015cMensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz

1. No início dum novo ano, que acolhemos como uma graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes votos de paz, que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não digna da nossa humanidade.

Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio duma vida plena (...) contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar».1 Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade. Tal fenómeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus, possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».

À escuta do projecto de Deus para a humanidade
2. O tema, que escolhi para esta mensagem, inspira-se na Carta de São Paulo a Filémon; nela, o Apóstolo pede ao seu colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filémon mas agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16). Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filémon. Deste modo, a conversão a Cristo, o início duma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da vida familiar e alicerce da vida social.

Lemos, no livro do Génesis (cf. 1, 27-28), que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus.

Mas, apesar de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus.

Infelizmente, entre a primeira criação narrada no livro do Génesis e o novo nascimento em Cristo – que torna, os crentes, irmãos e irmãs do «primogénito de muitos irmãos» (Rom 8, 29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros».2
Também na história da família de Noé e seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Cam para com seu pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos nascidos do mesmo ventre.

Na narração das origens da família humana, o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9, 25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a necessidade duma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça (...) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho adoptivo de seu Pai (cf. Ef 1, 5).

No entanto, os seres humanos não se tornam cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um o baptismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Todos aqueles que responderam com a fé e a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; Act 1, 15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1 Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13, 1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).
Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)3 – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos têm em comum: a filiação adoptiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).

As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje
3. Desde tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o fenómeno da sujeição do homem pelo homem. Houve períodos na história da humanidade em que a instituição da escravatura era geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas; o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.

Hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa humanidade4 – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável.

Mas, apesar de a comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Penso em tantos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufactureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.

Penso também nas condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! Penso no «trabalho escravo».

Penso nas pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento.

Não posso deixar de pensar a quantos, menores e adultos, são objecto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional.

Penso, enfim, em todos aqueles que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.

Algumas causas profundas da escravatura
4. Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objecto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objectos. Com a força, o engano, a coacção física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim.

Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se explicar as formas actuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo.

Entre as causas da escravatura, deve ser incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das pessoas humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros actores do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando, no centro de um sistema económico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou económico, deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».5

Outras causas da escravidão são os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.

Um compromisso comum para vencer a escravatura
5. Quando se observa o fenómeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.

Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais institutos actuam em contextos difíceis, por vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a violência física. A actividade das congregações religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.

Este trabalho imenso, que requer coragem, paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade. Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível institucional: prevenção, protecção das vítimas e acção judicial contra os responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objectivos, assim também a acção para vencer este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes actores que compõem a sociedade.

Os Estados deveriam vigiar por que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as adopções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efectivamente respeitadoras da dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana, que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são necessários também mecanismos eficazes de controle da correcta aplicação de tais normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.

As organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários níveis, que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade civil e do mundo empresarial.

Com efeito, as empresas6 têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é sempre um acto moral, para além de económico».7

As organizações da sociedade civil, por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.

Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos actores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.8 Além disso, foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade ao fenómeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes actores, incluindo peritos do mundo académico e das organizações internacionais, forças da polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.

Globalizar a fraternidade, não a escravidão nem a indiferença
6. Na sua actividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade»,9 a Igreja não cessa de se empenhar em acções de carácter caritativo guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro – seja ele quem for – um irmão e uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança10 para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».11

Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que tacteia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade.

Temos de reconhecer que estamos perante um fenómeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação. Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenómeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo,12 o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45).

Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.

Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.
Papa Francisco


[1] N. 1.
[2] Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, 2.
[3] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 11.
[4] Cf. Discurso à Delegação internacional da Associação de Direito Penal (23 de Outubro de 2014): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/X/2014), 9.
[5] Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de Outubro de 2014): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 06/XI/2014), 9.
[6] Cf. Pontifício Conselho «Justiça e Paz», La vocazione del leader d'impresa. Una riflessione (Milão e Roma, 2013).
[7] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 66.
[8] Cf. Mensagem ao Senhor Guy Rydes, Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho, por ocasião da 103ª sessão da Conferência da O.I.T. (22 de Maio de 2014): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 05/VI/2014), 7.
[9] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 5.
[10] «Mediante o conhecimento desta esperança, ela estava "redimida", já não se sentia escrava, mas uma livre filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos Efésios que, antes, estavam sem esperança e sem Deus no mundo: sem esperança porque sem Deus» ( Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 3).
[11] Discurso aos participantes na II Conferência Internacional « Combating Human Trafficking: Church and Law Enforcement in partnership» (10 de Abril de 2014): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 17/IV/2014), 8; cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 270.
[12] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 24; 270.

A Cúria Romana e o Corpo de Cristo

Francisco natal«Vós, que estais sobre os Querubins, mudastes a miserável condição do mundo, quando Vos fizestes como nós» (Santo Atanásio)
Encontro do Papa Francisco com os Cardeais e Colaboradores da Cúria Romana para a troca de bons votos de Natal (22 de Dezembro de 2014)

Queridos irmãos,
No final do Advento, encontramo-nos para as tradicionais saudações de Boas Festas. Dentro de alguns dias, teremos a alegria de celebrar o Natal do Senhor; o acontecimento de Deus que Se fez homem, para salvar os homens; a manifestação do amor de Deus que não Se limita a dar-nos alguma coisa nem a enviar-nos qualquer mensagem ou determinados mensageiros, mas dá-Se Ele mesmo a nós; o mistério de Deus que toma sobre Si a nossa condição humana e os nossos pecados para nos revelar a sua Vida divina, a sua graça imensa e o seu perdão gratuito. É o encontro com Deus, que nasce na pobreza da gruta de Belém, para nos ensinar a força da humildade. Na verdade, o Natal é também a festa da luz que não é aceite pelo povo «eleito», mas foi-o pelas pessoas pobres e simples que esperavam a salvação do Senhor.

Antes de mais nada, quero desejar a todos vós – colaboradores, irmãos e irmãs, Representantes Pontifícios espalhados pelo mundo – e a todos os vossos queridos um Santo Natal e um Ano Novo feliz. Desejo agradecer-vos cordialmente pelo vosso empenho diário ao serviço da Santa Sé, da Igreja Católica, das Igrejas Particulares e do Sucessor de Pedro.
Uma vez que somos pessoas e não números ou meros nomes, recordo de maneira particular quantos, durante este ano, terminaram o seu serviço por razões de idade, por ter assumido outras funções, ou porque foram chamados para a Casa do Pai. Penso também em todos eles e nos seus familiares e exprimo-lhes a minha gratidão.
Desejo, juntamente convosco, elevar ao Senhor um vivo e sentido agradecimento pelo ano que está para nos deixar, pelos acontecimentos vividos e por todo o bem que Ele quis generosamente realizar através do serviço da Santa Sé, pedindo-Lhe humildemente perdão pelas falhas cometidas «por pensamentos e palavras, actos e omissões».

E, partindo precisamente deste pedido de perdão, queria que este nosso encontro e as reflexões que partilharei convosco se tornassem, para todos nós, apoio e estímulo para um verdadeiro exame de consciência que prepare o nosso coração para o Santo Natal.
Quando pensava neste nosso encontro, veio-me à ideia a imagem da Igreja como o Corpo Místico de Jesus Cristo. É uma expressão que, como explicou o Papa Pio XII, «deriva e quase brota daquilo que aparece com frequência exposto na Sagrada Escritura e nos Santos Padres».[1] A propósito, São Paulo deixou escrito: «Pois, como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem um só corpo, assim também Cristo» (1 Cor 12, 12).[2]

Neste sentido, o Concílio Vaticano II lembra-nos que, «na edificação do Corpo de Cristo, existe diversidade de membros e de funções. É um mesmo Espírito que distribui os seus vários dons segundo a sua riqueza e as necessidades dos ministérios para utilidade da Igreja (cf. 1 Cor 12, 1-11).[3] Por isso, «Cristo e a Igreja são o "Cristo total" (Christus totus). A Igreja é una com Cristo».[4]
Faz-nos bem pensar na Cúria Romana como um pequeno modelo da Igreja, isto é, como um «corpo» que procura, séria e diariamente, ser mais vivo, mais saudável, mais harmonioso e mais unido em si mesmo e com Cristo.
Na realidade, a Cúria Romana é um corpo complexo, formado por muitos Dicastérios, Conselhos, Departamentos, Tribunais, Comissões e por numerosos elementos que não têm todos a mesma tarefa, mas estão coordenados em ordem a um funcionamento eficaz, edificante, disciplinado e exemplar, não obstante as diferenças culturais, linguísticas e nacionais dos seus membros.[5]

Entretanto, sendo a Cúria um corpo dinâmico, não pode viver sem se alimentar e tratar. Com efeito, a Cúria – tal como a Igreja – não pode viver sem manter uma relação vital, pessoal, autêntica e sólida com Cristo.[6] Um membro da Cúria que não se alimente diariamente com semelhante Alimento tornar-se-á um burocrata (um formalista, um funcionalista, um mero funcionário): um ramo que pouco a pouco seca e morre e é lançado fora. A oração diária, a participação assídua nos sacramentos, especialmente na Eucaristia e na Reconciliação, o contacto diário com a Palavra de Deus e a espiritualidade traduzida em caridade vivida são o alimento vital para cada um de nós. Seja claro para todos nós que, sem Ele, nada poderemos fazer (cf. Jo 15, 5).

Em consequência, o relacionamento vivo com Deus alimenta e fortalece também a comunhão com os outros, isto é, quanto mais estivermos intimamente unidos a Deus, tanto mais estaremos unidos entre nós, porque o Espírito de Deus une e o espírito do maligno divide.

A Cúria é chamada a melhorar, a melhorar sempre, crescendo em comunhão, santidade e sabedoria para realizar plenamente a sua missão.[7] No entanto ela, como qualquer corpo, como todo o corpo humano, está sujeita também às doenças, ao mau funcionamento, à enfermidade. E aqui gostava de mencionar algumas destas prováveis doenças, doenças curiais: as doenças mais habituais na nossa vida de Cúria. São doenças e tentações que enfraquecem o nosso serviço ao Senhor. Creio que nos ajudará ter o «catálogo» das doenças – na esteira dos Padres do deserto, que faziam tais catálogos – de que falamos hoje: ajudar-nos-á a preparar-nos para o sacramento da Reconciliação, que constituirá, para todos nós, um bom passo a fim de nos prepararmos para o Natal.

1. A doença de sentir-se «imortal», «imune» ou mesmo «indispensável», descuidando os controles habitualmente necessários. Uma Cúria que não se auto-critica, não se actualiza, nem procura melhorar é um corpo enfermo. Uma normal visita ao cemitério poder-nos-ia ajudar a ver os nomes de tantas pessoas, algumas das quais talvez pensassem que eram imortais, imunes e indispensáveis! É a doença do rico insensato do Evangelho, que pensava viver eternamente (cf. Lc 12, 13-21), e também daqueles que se transformam em patrões, sentindo-se superiores a todos e não ao serviço de todos. Tal doença deriva muitas vezes da patologia do poder, do «complexo dos Eleitos», do narcisismo que se apaixona pela própria imagem e não vê a imagem de Deus gravada no rosto dos outros, especialmente dos mais frágeis e necessitados.[8] O antídoto para esta epidemia é a graça de nos sentirmos pecadores e dizer com todo o coração: «Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer» (Lc 17, 10).

2. A doença do «martismo» (que vem de Marta), da actividade excessiva, ou seja, daqueles que mergulham no trabalho, negligenciando inevitavelmente «a melhor parte»: sentar-se aos pés de Jesus (cf. Lc 10, 38-42). Por isso, Jesus convidou os seus discípulos a «descansar um pouco» (cf. Mc 6, 31), porque descuidar o descanso necessário leva ao stresse e à agitação. O tempo do repouso, para quem levou a cabo a sua missão, é necessário, obrigatório e deve ser vivido seriamente: passar algum tempo com os familiares e respeitar as férias como momentos de recarga espiritual e física; é preciso aprender o que ensina Coélet: «Para tudo há um momento e um tempo par cada coisa» (3,1).

3. Há também a doença do «empedernimento» mental e espiritual, ou seja, daqueles que possuem um coração de pedra e uma «cerviz dura» (Act 7, 51); daqueles que, à medida que vão caminhando, perdem a serenidade interior, a vivacidade e a ousadia e escondem-se sob os papéis, tornando-se «máquinas de práticas» e não «homens de Deus» (cf. Heb 3, 12). É perigoso perder a sensibilidade humana, necessária para nos fazer chorar com os que choram e alegrar-nos com os que estão alegres! É a doença daqueles que perdem «os sentimentos de Jesus» (cf. Flp 2, 5-11), porque o seu coração, com o passar do tempo, se endurece tornando-se incapaz de amar incondicionalmente o Pai e o próximo (cf. Mt 22, 34-40). De facto, ser cristão significa «ter os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus» (Flp 2, 5), sentimentos de humildade e doação, desprendimento e generosidade.[9]

4. A doença da planificação excessiva e do funcionalismo. Quando o apóstolo planifica tudo minuciosamente e julga que, se fizer uma planificação perfeita, as coisas avançam efectivamente, torna-se um contabilista ou comercialista. É necessário preparar tudo bem, mas sem nunca cair na tentação de querer conter e pilotar a liberdade do Espírito Santo, que sempre permanece maior e mais generosa do que toda a planificação humana (cf. Jo 3, 8). Cai-se nesta doença, porque «é sempre mais fácil e confortável acomodar-se nas próprias posições estáticas e inalteradas. Na realidade, a Igreja mostra-se fiel ao Espírito Santo na medida em que põe de lado a pretensão de O regular e domesticar – domesticar o Espírito Santo! – (...) Ele é frescor, criatividade, novidade».[10]

5. A doença da má coordenação. Quando os membros perdem a sincronização entre eles e o corpo perde o seu harmonioso funcionamento e a sua temperança, tornando-se uma orquestra que produz ruído, porque os seus membros não colaboram e não vivem o espírito de comunhão e de equipe. Quando o pé diz ao braço: «Não preciso de ti»; ou a mão à cabeça: «Mando eu», causando assim mal-estar e escândalo.

6. Há também a doença do «alzheimer espiritual», ou seja, o esquecimento da «história da salvação», da história pessoal com o Senhor, do «primitivo amor» (Ap 2, 4). Trata-se de um progressivo declínio das faculdades espirituais, que, num período mais ou menos longo de tempo, causa grave deficiência à pessoa, tornando-a incapaz de exercer qualquer actividade autónoma, vivendo num estado de absoluta dependência dos seus pontos de vista frequentemente imaginários. Vemo-lo naqueles que perderam a memória do seu encontro com o Senhor; naqueles que não fazem o sentido deuteronómico da vida; naqueles que dependem completamente do seu presente, das suas paixões, caprichos e manias; naqueles que constroem em torno de si muros e costumes, tornando-se cada vez mais escravos dos ídolos que esculpiram com as suas próprias mãos.

7. A doença da rivalidade e da vanglória.[11] Quando a aparência, as cores das vestes e as insígnias de honra se tornam o objectivo primário da vida, esquecendo as palavras de São Paulo: «Nada façais por ambição, nem por vaidade; mas, com humildade, considerai os outros superiores a vós próprios, não tendo cada um em vista os próprios interesses, mas todos e cada um exactamente os interesses dos outros» (Flp 2, 3-4). É a doença que nos leva a ser homens e mulheres falsos e a viver um falso «misticismo» e um falso «quietismo». O próprio São Paulo define-os «inimigos da cruz de Cristo», porque «gloriam-se da sua vergonha, esses que estão presos às coisas da terra» (Flp 3, 18.19).

8. A doença da esquizofrenia existencial. É a doença daqueles que vivem uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre e do progressivo vazio espiritual que nem doutoramentos nem títulos académicos podem preencher. Uma doença que acomete frequentemente aqueles que, abandonando o serviço pastoral, se limitam às questões burocráticas, perdendo assim o contacto com a realidade, com as pessoas concretas. Deste modo criam um mundo paralelo seu, onde põem de lado tudo o que ensinam severamente aos outros e começam a viver uma vida escondida e muitas vezes dissoluta. A conversão é muito urgente e indispensável para esta gravíssima doença (cf. Lc 15, 11-32).

9. A doença das bisbilhotices, das murmurações e das críticas. Desta doença, já falei muitas vezes, mas nunca é demais. Trata-se de uma doença grave, que começa de forma simples, talvez por duas bisbilhotices apenas, e acaba por se apoderar da pessoa fazendo dela uma «semeadora de cizânia» (como satanás) e, em muitos casos, «homicida a sangue frio» da fama dos próprios colegas e confrades. É a doença das pessoas velhacas que, não tendo a coragem de dizer directamente, falam pelas costas. São Paulo adverte-nos: «Fazei tudo sem murmurações nem discussões, para serdes irrepreensíveis e íntegros» (Flp 2, 14-15). Irmãos, livremo-nos do terrorismo das bisbilhotices!

10. A doença de divinizar os líderes: é a doença daqueles que fazem a corte aos Superiores, na esperança de obter a sua benevolência. São vítimas do carreirismo e do oportunismo, honram as pessoas e não Deus (cf. Mt 23, 8-12). São pessoas que vivem o serviço, pensando unicamente no que devem obter e não no que devem dar. Pessoas mesquinhas, infelizes e movidas apenas pelo seu egoísmo fatal (cf. Gal 5, 16-25). Esta doença poderia atingir também os Superiores, quando fazem a corte a algum dos seus colaboradores para obter a sua submissão, lealdade e dependência psicológica, mas o resultado final é uma verdadeira cumplicidade.

11. A doença da indiferença para com os outros. Quando cada um só pensa em si mesmo e perde a sinceridade e o calor das relações humanas. Quando o mais experiente não coloca o seu conhecimento ao serviço dos colegas menos experientes. Quando se teve conhecimento de alguma coisa e guarda-se para si mesmo em vez de a compartilhar positivamente com os outros. Quando, por ciúmes ou por astúcia, se sente alegria ao ver o outro cair, em vez de o levantar e encorajar.

12. A doença da cara fúnebre, ou seja, das pessoas rudes e amargas que consideram que, para se ser sério, é preciso pintar o rosto de melancolia, de severidade e tratar os outros – sobretudo aqueles considerados inferiores – com rigidez, dureza e arrogância. Na realidade, muita vezes, a severidade teatral e o pessimismo estéril[12] são sintomas de medo e insegurança de si mesmo. O apóstolo deve esforçar-se por ser uma pessoa gentil, serena, entusiasta e alegre, que transmite alegria onde quer que esteja. Um coração cheio de Deus é um coração feliz que irradia e contagia com a alegria todos aqueles que estão ao seu redor: disso nos damos conta imediatamente! Assim, não percamos aquele espírito jubiloso, bem-humorado e até auto-irónico, que faz de nós pessoas amáveis, mesmo nas situações difíceis.[13] Quanto bem nos faz uma boa dose de são humorismo! Far-nos-á muito bem recitar frequentemente a oração de São Tomás More.[14] Eu rezo-a todos os dias; faz-me bem!

13. A doença do acumular, ou seja, quando o apóstolo procura preencher um vazio existencial no seu coração acumulando bens materiais, não por necessidade, mas apenas para se sentir seguro. Na realidade, nada de material poderemos levar connosco, porque «a mortalha não tem bolsos» e todos os nossos tesouros terrenos – mesmo que sejam presentes – não poderão jamais preencher aquele vazio, antes torná-lo-ão cada vez mais exigente e profundo. A estas pessoas, o Senhor repete: «Dizes: "Sou rico, enriqueci e nada me falta" – e não te dás conta de que és um infeliz, um miserável, um pobre, um cego, um nu (...). Sê, pois, zeloso e arrepende-te» (Ap 3, 17.19). A acumulação apenas torna pesado e retarda inexoravelmente o caminho! Vem-me ao pensamento uma anedota: Outrora os jesuítas espanhóis descreviam a Companhia de Jesus como a «cavalaria ligeira da Igreja». Lembro-me de um jovem jesuíta que mudava de casa e, ao carregar num camião os seus muitos haveres: malas, livros, objectos e presentes, ouviu um velho jesuíta, que o estava a observar, dizer para ele, com um sorriso sábio: E esta seria a «cavalaria ligeira da Igreja»? As coisas que transportamos são um sinal desta doença.

14. A doença dos círculos fechados, onde a pertença ao grupo se torna mais forte que a pertença ao Corpo e, nalgumas situações, ao próprio Cristo. Também esta doença começa sempre com boas intenções, mas, com o passar do tempo, escraviza os membros tornando-se um cancro que ameaça a harmonia do Corpo e causa um mal imenso – escândalos – especialmente aos nossos irmãos mais pequeninos. A auto-destruição ou o «fogo amigo» dos companheiros de armas é o perigo mais insidioso.[15] É o mal que fere a partir de dentro;[16] e, como diz Cristo, «todo o reino dividido contra si mesmo será devastado» (Lc 11, 17).

15. E a última: a doença do lucro mundano, dos exibicionismos,[17] quando o apóstolo transforma o seu serviço em poder, e o seu poder em mercadoria para obter lucros mundanos ou mais poder. É a doença das pessoas que procuram insaciavelmente multiplicar o seu poder e, para isso, são capazes de caluniar, difamar e desacreditar os outros, inclusive nos jornais e revistas; naturalmente para se exibir e demonstrar-se mais capazes do que os outros. Também esta doença faz muito mal ao Corpo, porque leva as pessoas a justificar o uso de todo e qualquer meio contanto que alcancem tal fim, muitas vezes em nome da justiça e da transparência! Isto faz-me recordar um sacerdote que chamava os jornalistas para lhes contar – e inventar – coisas privadas e confidenciais dos seus confrades e paroquianos. Para ele, contava apenas aparecer nas primeiras páginas, porque deste modo sentia-se «forte e fascinante», causando tanto mal aos outros e à Igreja. Coitado!

Irmãos, naturalmente todas estas doenças e tentações são um perigo para todo o cristão e para cada cúria, comunidade, congregação, paróquia, movimento eclesial, e podem atingir seja a nível individual seja comunitário.
É preciso deixar claro que o único que pode curar qualquer uma destas doenças é o Espírito Santo, a alma do Corpo Místico de Cristo, como afirma o Credo Niceno-Constantinopolitano: «Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida». É o Espírito Santo que sustenta todo o esforço sincero de purificação e toda a boa vontade de conversão. É Ele que nos faz compreender que cada membro toma parte na santificação do Corpo e no seu enfraquecimento. É Ele o promotor da harmonia.[18] «Ipse harmonia est»: diz São Basílio. E Santo Agostinho observa: «Enquanto uma parte adere ao corpo, a sua cura não é impossível; pelo contrário, o que foi cortado, não pode ser tratado nem curado».[19]
A cura é fruto também da consciencialização da doença e da decisão pessoal e comunitária de se curar suportando, com paciência e perseverança, o tratamento.[20]

Portanto, chamados – neste período de Natal e durante todo o tempo do nosso serviço e da nossa existência – a viver segundo «a verdade no amor, cresceremos em tudo para Aquele que é a cabeça, Cristo. É a partir d'Ele que o Corpo inteiro, bem ajustado e unido, por meio de toda a espécie de articulações que o sustentam, segundo uma força à medida de cada uma das partes, realiza o seu crescimento como Corpo, para se construir a si próprio no amor» (Ef 4, 15-16).

Queridos irmãos!
Li uma vez que os sacerdotes são como os aviões: são notícia apenas quando caem, mas há tantos que voam. Muitos criticam e poucos rezam por eles. É uma frase simpática mas também muito verdadeira, porque esboça a importância e a delicadeza do nosso serviço sacerdotal e o grande mal que um só sacerdote que «cai» pode causar a todo o corpo da Igreja.

Assim, para não cair nestes dias em que nos preparamos para a Confissão, peçamos à Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, que cure as feridas do pecado que cada um de nós traz no seu coração e que sustente a Igreja e a Cúria a fim de serem sãs e sanadoras, santas e santificadoras, para glória do seu Filho e para a salvação nossa e do mundo inteiro. Peçamos-Lhe que nos faça amar a Igreja como Cristo, seu Filho e nosso Senhor, a amou e que tenhamos a coragem de nos reconhecer pecadores e necessitados da sua Misericórdia e que não tenhamos medo de deixar a nossa mão entre as suas mãos maternas.

Formulo os melhores votos de um Santo Natal para todos vós, vossas famílias e vossos colaboradores. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim! Do fundo do coração, obrigado!

Papa Francisco
Encontro do Papa com os Cardeais e Colaboradores da Cúria Romana
para a troca de bons votos de Natal
22 de Dezembro de 2014


1] Pio XII diz que a Igreja, sendo mysticum Corpus Christi, «exige também uma multidão de membros, de tal maneira unidos entre si que se ajudem mutuamente. E, como no nosso organismo mortal, quando um membro sofre, os outros sentem a sua dor e acorrem em seu auxílio, assim também na Igreja os vários membros não vivem cada um para si mesmo, mas dão ajuda também aos outros, prestando colaboração recíproca quer para mútuo conforto quer para um desenvolvimento cada vez maior de todo o Corpo (...) um Corpo constituído não por um aglomerado qualquer de membros, mas deve estar fornecido de órgãos, ou seja, de membros que não tenham todos a mesma tarefa, mas estejam devidamente coordenados; assim, devido a isso mesmo, a Igreja, deve chamar.se corpo, porque resulta de uma recta disposição e coerente união de membros diferentes entre si» [Enc. Mystici Corporis, I parte: AAS 35 (1943), 200].

[2] Cf. Rm 12, 5: «Assim acontece connosco: os muitos que somos formamos um só corpo em Cristo, mas, individualmente, somos membros que pertencem uns aos outros».

[3] Const. dogm. Lumen gentium, 7.

[4] Catecismo da Igreja Católica, n. 795. Devemos ter presente que «a comparação da Igreja com um corpo lança uma luz particular sobre a ligação íntima existente entre a Igreja e Cristo. Ela não está somente reunida à volta d'Ele: está unificada n'Ele, no seu corpo. Na Igreja, Corpo de Cristo, são de salientar mais especificamente três aspectos: a unidade de todos os membros entre si, pela união a Cristo; Cristo, Cabeça do Corpo; a Igreja, Esposa de Cristo» (Catecismo da Igreja Católica, n. 789).

[5]Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 130-131.

[6] Várias vezes Jesus deu a conhecer a união que os fiéis devem manter com Ele: «Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes em Mim. Eu sou a videira; vós, os ramos» (Jo 15, 4-5).

[7] Cf. Const. ap. Pastor Bonus, art. 1; Código de Direito Canónico, cân. 360.

[8] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 197-201.

[9] BENTO XVI, Catequese, na Audiência Geral de 1 de Junho de 2005.

[10] Homilia na Santa Missa (Turquia, 30 de Novembro de 2014).

[11] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 95-96.

[12] Cf. Ibid., 84-86.

[13] Cf. Ibid., 2.

[14] Senhor, dai-me uma boa digestão e qualquer coisa também para digerir. Dai-me a saúde do corpo e o bom humor necessário para a manter. Dai-me, Senhor, uma alma simples que saiba aprender com tudo o que é bom e não se assuste à vista do mal, antes encontre sempre o modo de colocar cada coisa no seu lugar. Dai-me uma alma que não conheça o tédio, os resmungos, os suspiros, os lamentos, e não permitais que me preocupe excessivamente com esta coisa demasiado embaraçante que se chama «eu». Dai-me, Senhor, o sentido do bom humor. Concedei-me a graça de compreender uma brincadeira para descobrir na vida um pouco de alegria e partilhá-la também com os outros. Amen.

[15] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 88.

[16] Um dia, referindo-se à situação da Igreja, o Beato Paulo VI afirmou ter a sensação de que, «por alguma frincha, entrara o fumo de satanás no templo de Deus»: Homilia na solenidade dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (29 de Junho de 1972). Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 98-101.

[17] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 93-97 (Não ao mundanismo espiritual).

[18] «O Espírito Santo é a alma da Igreja. Ele dá a vida, suscita os diversos carismas que enriquecem o povo de Deus e sobretudo cria a unidade entre os crentes: de muitos faz um único corpo, o corpo de Cristo. (...) O Espírito Santo faz a unidade da Igreja: unidade na fé, unidade na caridade, unidade na coesão interior» (Homilia na Santa Missa, Turquia, 30 de Novembro de 2014).

[19] Sermão 137, 1: Migne P. L., 38, 754.

[20] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 25-33 (Pastoral em conversão).

 

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