Relação Final do Sínodo dos Bispos 2014
"Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização" (Roma, 5/19 Out 2014)
Relação final da III Assembleia geral extraordinária do Sínodo dos Bispos
INTRODUÇÃO
1. O Sínodo dos Bispos reunido com o Papa dirige o seu pensamento a todas as famílias do mundo com as suas alegrias, as suas canseiras, as suas esperanças. De modo especial, sente o dever de agradecer ao Senhor pela generosa fidelidade com que tantas famílias cristãs respondem à sua vocação e missão. E respondem com alegria e com fé, também quando o caminho familiar as põe diante de obstáculos, incompreensões e sofrimentos. A essas famílias vai o apreço, o agradecimento e o encorajamento de toda a Igreja e deste Sínodo. Na vigília de oração celebrada na Praça de São Pedro, sábado, 4 de outubro de 2014, em preparação do Sínodo sobre a família, o Papa Francisco evocou de maneira simples e concreta a centralidade da experiência familiar na vida de todos, exprimindo-se assim: «Já desce a noite sobre a nossa assembleia. É a hora em que de bom grado se regressa a casa para se reunir à mesma mesa na consistência dos afetos, do bem que se fez e se recebeu, dos encontros que aquecem o coração e o fazem dilatar, vinho bom que antecipa, nos dias do homem, a festa sem ocaso. Mas é também a hora mais pesada para quem se vê cara a cara com a própria solidão, no crepúsculo amargo de sonhos e projetos desfeitos. Quantas pessoas arrastam os seus dias no beco sem saída da resignação, do abandono, se não mesmo do rancor! Em quantas casas falta o vinho da alegria e, consequentemente, o sabor – a própria sabedoria – da vida! Nesta noite, com a nossa oração, fazemo-nos voz de uns e de outros: uma oração por todos».
2. Seio de alegrias e de provações, de afetos profundos e de relações por vezes feridas, a família é verdadeiramente "escola de humanidade" (cf. Gaudium et spes, 52), de que se sente uma forte necessidade. Não obstante os muitos sinais de crise da instituição familiar nos vários contextos da "aldeia global", o desejo de família continua vivo, sobretudo entre os jovens, e encoraja a Igreja, perita em humanidade e fiel à sua missão, a anunciar sem cessar e com profunda convicção o "Evangelho da família", que lhe foi confiado com uma revelação do amor de Deus em Jesus Cristo e ininterruptamente ensinado pelos Padres, os Mestres da espiritualidade e o Magistério da Igreja. A família tem para a Igreja uma importância muito especial e, quando todos os crentes são convidados a sair de si mesmos, é necessário que a família se redescubra como sujeito imprescindível para a evangelização. O pensamento vai para o testemunho missionário de tantas famílias.
3. O Bispo de Roma convocou para refletir sobre a realidade da família, decisiva e preciosa, o Sínodo dos Bispos, na sua Assembleia geral extraordinária de outubro de 2014, reflexão a aprofundar, depois, na Assembleia geral ordinária, que terá lugar em outubro de 2015, bem como ao longo do ano inteiro que medeia os dois eventos sinodais. «Já o reunir in unum à volta do Bispo de Roma é evento de graça, onde a colegialidade se manifesta num caminho de discernimento espiritual e pastoral»: foi como o Papa Francisco descreveu a experiência sinodal, indicando as suas tarefas na dúplice escuta dos sinais de Deus e da história dos homens e na dúplice e única fidelidade que daí deriva.
4. À luz do mesmo discurso, recolhemos os resultados das nossas reflexões e dos nossos diálogos nas três partes seguintes: a escuta, para olhar para a realidade da família hoje, na complexidade das suas luzes e das suas sombras; o olhar fixo em Cristo, para repensar com renovada frescura e entusiasmo o que a revelação, transmitida na fé da Igreja, nos diz sobre a beleza, a função e a dignidade da família; o confronto à luz do Senhor Jesus, para discernir os caminhos com que renovar a Igreja e a sociedade no seu empenho em favor da família, fundada sobre o matrimónio entre homem e mulher.
PRIMEIRA PARTE
A escuta: o contexto e os desafios sobre a família
O contexto sociocultural
5. Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos para a realidade da família hoje em toda a sua complexidade, nas suas luzes e nas suas sombras. Pensamos nos pais, nos avós, nos irmãos e irmãs, nos parentes próximos e distantes, e na relação entre duas famílias que cada matrimónio cria. A mudança antropológico-cultural influencia hoje todos os aspetos da vida e exige uma abordagem analítica e diversificada. Sublinham-se em primeiro lugar os aspetos positivos: a maior liberdade de expressão e o melhor reconhecimento dos direitos da mulher e das crianças, ao menos nalgumas regiões. Mas, por outro lado, há também a considerar o crescente perigo, representado por um individualismo exasperado, que desnatura os laços familiares e acaba por considerar cada componente da família como uma ilha, fazendo prevalecer, em certos casos, a ideia de um sujeito que se constrói segundo os próprios desejos, tomados como um absoluto. A isso acrescente-se também a crise de fé, que atingiu tantos católicos e que muitas vezes está na origem das crises do matrimónio e da família.
6. Uma das maiores pobrezas da cultura atual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações. Existe também uma sensação geral de impotência em relação à realidade socioeconómica que, muitas vezes, acaba por esmagar as famílias. Isso sucede pela crescente pobreza e precariedade do trabalho, por vezes vivida como um verdadeiro pesadelo, ou por uma fiscalidade demasiado pesada, que certamente não encoraja os jovens ao matrimónio. Não raramente, as famílias sentem-se abandonadas pelo desinteresse e pouca atenção por parte das instituições. As consequências negativas do ponto de vista da organização social são evidentes: da crise demográfica às dificuldades educativas, da fadiga de acolher a vida nascente ao sentir a presença dos anciãos como um peso, até à difusão de um mal-estar afetivo, que, por vezes, termina em violência. É responsabilidade do Estado criar as condições legislativas e de trabalho, para garantir o futuro dos jovens e ajudá-los a realizar o seu projeto de fundar uma família.
7. Há contextos culturais e religiosos que lançam particulares desafios. Nalgumas sociedades, ainda está em vigor a prática da poligamia e, nalguns contextos tradicionais, o costume do "matrimónio por etapas". Noutros contextos, mantém-se a prática dos matrimónios combinados. Nos Países onde a presença da Igreja Católica é minoritária, são numerosos os matrimónios mistos e com disparidade de culto, com todas as dificuldades que comportam, em termos de configuração jurídica, de batismo e de educação dos filhos e no recíproco respeito do ponto de vista da diversidade da fé. Nestes matrimónios, pode correr-se o perigo do relativismo ou da indiferença, mas também pode existir a possibilidade de favorecer o espírito ecuménico e o diálogo inter-religioso, numa harmoniosa convivência de comunidades que vivem no mesmo lugar. Em muitos contextos, não só ocidentais, vai-se difundindo amplamente a prática da convivência antes do matrimónio ou mesmo de convivências não orientadas para assumir a forma de um vínculo institucional. A isso junta- se frequentemente uma legislação civil que compromete o matrimónio e a família. Devido à secularização, em muitas partes do mundo a referência a Deus enfraqueceu enormemente e a fé deixou de ser socialmente partilhada.
8. São muitas as crianças que nascem fora do matrimónio, sobretudo nalguns Países, e muitas as que, depois, crescem só com um dos pais ou num contexto familiar alargado ou reconstituído. O número dos divórcios cresce e não é raro o caso de escolhas feitas unicamente por fatores de ordem económica. As crianças são muitas vezes objeto de disputa entre os pais e os filhos são as verdadeiras vítimas das lacerações familiares. Os pais estão muitas vezes ausentes, não só por razões económicas, onde, ao invés, é sentida a necessidade que eles assumam mais claramente a responsabilidade dos filhos e da família. A dignidade da mulher precisa ainda de ser defendida e promovida. De facto, hoje, em muitos contextos, o ser mulher é alvo de discriminação, e até o dom da maternidade é muitas vezes penalizado, em vez de ser apresentado como um valor. Não se devem esquecer também os crescentes fenómenos de violência, de que as mulheres são vítimas, muitas vezes e, infelizmente, também no seio das famílias, e a grave e difusa mutilação genital da mulher nalgumas culturas. A exploração sexual da infância constitui, outrossim, uma das realidades mais escandalosas e perversas da sociedade atual. Também as sociedades atravessadas pela violência resultante da guerra, do terrorismo ou da presença da criminalidade organizada conhecem situações familiares deterioradas e, sobretudo nas grandes metrópoles e suas periferias, cresce o chamado fenómeno dos meninos da rua. E as migrações são outro sinal dos tempos, que se deve enfrentar e compreender, com todo o peso de consequências sobre a vida familiar.
A importância da vida afetiva
9. Neste quadro social que foi delineado, encontra-se em muitas partes do mundo, nos indivíduos, uma maior necessidade de cuidar da própria pessoa, de se conhecer interiormente, de viver melhor em sintonia com as próprias emoções e os próprios sentimentos, de procurar relações afetivas de qualidade; essa justa aspiração pode abrir ao desejo de se empenhar na construção de relações de doação e reciprocidade criativas, responsabilizantes e solidárias como as familiares. O perigo individualista e o risco de viver em chave egoística são relevantes. O desafio que se põe à Igreja é ajudar os casais na maturação da dimensão emocional e no desenvolvimento afetivo, através da promoção do diálogo, da virtude e da confiança no amor misericordioso de Deus. O empenho total, que o matrimónio cristão exige, pode ser um forte antídoto à tentação de um individualismo egoístico.
10. No mundo atual, não faltam tendências culturais que parecem impor uma afetividade sem limites, de que se querem explorar todos os meandros, mesmo os mais complexos. De facto, a questão da fragilidade afetiva é de grande atualidade: uma afetividade narcisista, instável e mutável, que nem sempre ajuda os sujeitos a alcançar uma maior maturidade. É preocupante uma certa difusão da pornografia e da comercialização do corpo, favorecida por um uso distorcido da internet, e há que denunciar a situação das pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição. Neste contexto, os casais ficam, por vezes, incertos, hesitantes, e a custo encontram os modos para crescer. São muitos os que tendem a ficar nas fases primárias da vida emocional e sexual. A crise do casal destabiliza a família e pode acarretar, através das separações e dos divórcios, sérias consequências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais. Também a quebra demográfica, resultante de uma mentalidade antinatalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva, não só determina uma situação, em que o revezar das gerações já não é assegurado, mas corre o risco de levar, com o tempo, a um empobrecimento económico e a uma perda de esperança no futuro. O progresso das biotecnologias teve também ele um forte impacto sobre a natalidade.
O desafio para a pastoral
11. Neste contexto, a Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. Há que partir da convicção de que o homem vem de Deus e que, portanto, uma reflexão capaz de repropor as grandes perguntas sobre o ser homens pode encontrar um terreno fértil nas expetativas mais profundas da humanidade. Os grandes valores do matrimónio e da família cristã correspondem à procura que atravessa a existência humana, mesmo num tempo marcado pelo individualismo e pelo hedonismo. Há que acolher as pessoas com a sua existência concreta, saber apoiar essa procura, encorajar o desejo de Deus e a vontade de sentir-se plenamente parte da Igreja, também em quem fez experiência do fracasso ou se encontra nas situações mais diversificadas. A mensagem cristã traz sempre em si a realidade e a dinâmica da misericórdia e da verdade, que em Cristo convergem.
II PARTE
O olhar para Cristo: o Evangelho da família
O olhar para Jesus e a pedagogia divina na história da salvação
12. Para «verificar o nosso passo no terreno dos desafios contemporâneos, a condição decisiva é manter o olhar fixo em Jesus Cristo, deter-se na contemplação e adoração do seu rosto [...]. Na verdade, todas as vezes que voltamos à fonte da experiência cristã, abrem-se novas estradas e possibilidades inimagináveis» (Papa Francisco, Discurso de 4 de outubro de 2014). Jesus olhou com amor e ternura para os homens e mulheres que encontrou, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e misericórdia, ao anunciar as exigências do Reino de Deus.
13. Dado que a ordem da criação é determinada pela orientação a Cristo, é necessário distinguir, sem os separar, os diversos gaus através dos quais Deus comunica à humanidade a graça da aliança. Em razão da pedagogia divina, segundo a qual a ordem da criação evolui para a da redenção por etapas sucessivas, há que compreender a novidade do sacramento nupcial cristão em continuidade com o matrimónio natural das origens. Entende-se, portanto, aqui o modo de agir salvífico de Deus, tanto na criação como na vida cristã. Na criação: porque tudo foi feito por meio de Cristo e em vista d'Ele (cf. Col 1,16), os cristãos têm «a alegria de descobrir e estão prontos a respeitar as sementes do Verbo que aí se encontram escondidas; devem seguir atentamente a transformação profunda que se verifica entre os povos» (Ad gentes, 11). Na vida cristã: enquanto, com o batismo, o crente é inserido na Igreja mediante a Igreja doméstica, que é a sua família, realiza o «processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus» (Familiaris consortio, 9), mediante a constante conversão ao amor, que salva do pecado e dá plenitude de vida.
14. O próprio Jesus, referindo-se ao plano primigénio sobre o casal humano, reafirma a união indissolúvel entre o homem e a mulher, embora dizendo que «pela dureza do vosso coração Moisés permitiu-vos repudiar as vossas mulheres, mas no princípio não era assim» (Mt 19,8). A indissolubilidade do matrimónio ("não separe, portanto, o homem o que Deus uniu" Mt 19,6) não deve ser entendida antes de mais como "jugo" imposto aos homens, mas como um "dom" feito às pessoas unidas em matrimónio. Dessa maneira, Jesus mostra como a condescendência divina acompanha sempre o caminho humano, cura e transforma o coração endurecido com a sua graça, orientando-o para o seu princípio, através do caminho da cruz. Dos Evangelhos emerge claramente o exemplo de Jesus, que é paradigmático para a Igreja. Jesus, de facto, assumiu uma família, deu início aos sinais na festa nupcial de Caná, anunciou a mensagem sobre o significado do matrimónio como plenitude da revelação que recupera o projeto originário de Deus (Mt 19,3). Mas, ao mesmo tempo, pôs em prática a doutrina ensinada, manifestando assim o verdadeiro significado da misericórdia. É o que aparece claramente nos encontros com a samaritana (Jo 4,1-30) e com a adúltera (Jo 8,1-11), em que Jesus, com uma atitude de amor para com a pessoa pecadora, leva ao arrependimento e à conversão ("vai e não voltes a pecar"), condição para o perdão.
A família no plano salvífico de Deus
15. As palavras de vida eterna que Jesus deixou aos seus discípulos incluíam o ensinamento sobre o matrimónio e a família. Esse ensinamento de Jesus permite distinguir, em três etapas fundamentais, o projeto de Deus sobre o matrimónio e a família. No início, há a família das origens, quando Deus criador instituiu o matrimónio primordial entre Adão e Eva, como sólido fundamento da família. Deus não só criou o ser humano homem e mulher (Gen 1,27), mas também os abençoou para que fossem fecundos e se multiplicassem (Gen 1,28). Por isso, «o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne» (Gen 2,24). Esta união foi danificada pelo pecado e tornou-se a forma histórica de matrimónio no Povo de Deus, a quem Moisés concedeu a possibilidade de passar um atestado de divórcio (cf. Dt 24,1ss). Era a forma que prevalecia nos tempos de Jesus. Com a sua vinda e a reconciliação do mundo caído graças à redenção por Ele operada, terminou a era inaugurada com Moisés.
16. Jesus, que reconciliou todas as coisas em Si, elevou o matrimónio e a família à sua forma original (cf. Mc 10,1-12). A família e o matrimónio foram remidos por Cristo (cf. Ef 5,21-32), restaurados à imagem da Santíssima Trindade, mistério donde provém todo o verdadeiro amor. A aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na história da salvação, recebe a plena revelação do seu significado em Cristo e na sua Igreja. De Cristo, através da Igreja, o matrimónio e a família recebem a graça necessária para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O Evangelho da família atravessa a história do mundo, desde a criação do homem à imagem e semelhança de Deus (cf. Gen 1,26-27) até à realização do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19,9; João Paulo II, Catequeses sobre o amor humano).
A família nos documentos da Igreja
17. «Com o decorrer dos séculos, a Igreja não deixou faltar o seu constante ensinamento sobre matrimónio e família. Uma das expressões mais altas deste Magistério foi proposta pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, na Constituição pastoral Gaudium et spes, que dedica um capítulo inteiro à promoção da dignidade do matrimónio e da família (cf. GS 47-52). Ele definiu o matrimónio como comunidade de vida e de amor (cf. GS 48), colocando o amor no centro da família, mostrando, ao mesmo tempo, a verdade deste amor face às diversas formas de reducionismo presentes na cultura contemporânea. O "verdadeiro amor entre marido e esposa" (GS 49) implica a doação recíproca de si, inclui e integra a dimensão sexual e a afetividade, correspondendo ao desígnio divino (cf. GS 48-49). Além disso, a Gaudium et spes, no número 48, frisa a radicação dos esposos em Cristo: Cristo Senhor "vem ao encontro dos cônjuges cristãos no sacramento do matrimónio", e com eles permanece. Na encarnação, Ele assume o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e doa aos esposos, com o seu Espírito, a capacidade de o viver, permeando toda a sua vida de fé, esperança e caridade. Deste modo os esposos são como que consagrados e, mediante uma graça própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem uma Igreja doméstica (cf. LG 11), de modo que a Igreja, para compreender plenamente o seu mistério, olha para a família cristã, que o manifesta de modo genuíno» (Instrumentum laboris, n. 4).
18. «Em continuidade com o Concílio Vaticano II, o Magistério pontifício aprofundou a doutrina sobre o matrimónio e sobre a família. Em particular Paulo VI, com a Encíclica Humanae vitae, evidenciou o vínculo íntimo entre amor conjugal e geração da vida. São João Paulo II dedicou à família uma atenção especial através das suas catequeses sobre o amor humano, da Carta às famílias (Gratissimam sane) e sobretudo com a Exortação Apostólica Familiaris consortio. Nestes documentos, o Pontífice definiu a família "caminho da Igreja"; ofereceu uma visão de conjunto sobre a vocação do homem e da mulher para o amor; propôs as linhas fundamentais para a pastoral da família e para a presença da família na sociedade. Em particular, ao tratar a caridade conjugal (cf. FC 13), descreveu o modo como os cônjuges, no seu amor recíproco, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua chamada à santidade» (Instrumentum laboris, n. 5).
19. «Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est, retomou o tema da verdade do amor entre homem e mulher, que só se ilumina plenamente à luz do amor de Cristo crucificado (cf. DCE 2). Ele reafirma como: "O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna- se a medida do amor humano" (DCE 11). Além disso, na Encíclica Caritas in veritate, ele evidencia a importância do amor como princípio de vida na sociedade (cf. CV 44), lugar no qual se aprende a experiência do bem comum» (Instrumentum laboris, n. 6).
20. «O Papa Francisco, na Encíclica Lumen fidei, ao tratar o vínculo entre a família e a fé, escreve: "o encontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seu amor alarga o horizonte da existência, dá-lhe uma esperança firme que não desilude. A fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir um grande chamamento – a vocação ao amor – e assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade" (LF 53)» (Instrumentum laboris, 7).
A indissolubilidade do matrimónio e a alegria do viver juntos
21. O dom recíproco, constitutivo do matrimónio sacramental, está radicado na graça do batismo, que estabelece a aliança fundamental de cada pessoa com Cristo na Igreja. No recíproco acolhimento e com a graça de Cristo, os nubentes prometem um ao outro dom total, fidelidade e abertura à vida, reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons que Deus lhes oferece, levam a sério o seu mútuo empenho, no seu nome e perante a Igreja. Assim, na fé é possível assumir os bens do matrimónio como empenhos reforçados pela ajuda da graça do sacramento. Deus consagra o amor dos esposos e confirma a sua indissolubilidade, dando-lhes ajuda para viverem a fidelidade, a integração recíproca e a abertura à vida. Portanto, o olhar da Igreja dirige-se aos esposos como ao coração da família inteira, que dirige, também ela, o olhar para Jesus.
22. Na mesma perspetiva, fazendo nosso o ensinamento do Apóstolo, segundo o qual toda a criação foi pensada em Cristo e em vista d'Ele (cf. Col 1,16), o Concílio Vaticano II quis exprimir apreço pelo matrimónio natural e pelos elementos válidos presentes nas outras religiões (cf. Nostra aetate, 2) e nas culturas não obstante os seus limites e carências (cf. Redemptoris missio, 55). A presença dos semina Verbi nas culturas (cf. Ad gentes, 11) poderia ser aplicada, de certa maneira, também à realidade matrimonial e familiar de tantas culturas e pessoas não cristãs. Há, portanto, elementos válidos também nalgumas formas fora do matrimónio cristão – sempre fundado sobre a relação estável e verdadeira de um homem e uma mulher –, que, em todo o caso, consideramos estarem a ele orientadas. Com o olhar posto na sabedoria humana dos povos e das culturas, a Igreja reconhece também essa família como a célula basilar necessária e fecunda da convivência humana.
Verdade e beleza da família e misericórdia para com as famílias feridas e frágeis
23. Com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha para as famílias que se mantêm fiéis aos ensinamentos do Evangelho, agradecendo e encorajando o testemunho que dão. Pois é graças a elas que se torna credível a beleza do matrimónio indissolúvel e fiel para sempre. Na família, «que poderia chamar-se Igreja doméstica» (Lumen gentium, 11), amadurece a primeira experiência eclesial da comunhão entre pessoas, em que se reflete, pela graça, o mistério da Santíssima Trindade. «É aqui que se aprende a fadiga e a alegria do trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre renovado e, sobretudo, o culto divino, pela oração e o oferecimento da própria vida» (Catecismo da Igreja Católica, 1657). A Sagrada Família de Nazaré é o seu admirável modelo, em cuja escola «se compreende a necessidade de ter uma disciplina espiritual, se queremos seguir os ensinamentos do Evangelho e sermos discípulos de Cristo» (Paolo VI, Alocução em Nazaré, 5 de janeiro de 1964). O Evangelho da família nutre também as sementes que ainda esperam para amadurecer, e deve cuidar das árvores que secaram e precisam que não sejam negligenciadas.
24. A Igreja, como mestra segura e mãe solícita, embora admita que para os batizados não há outro vínculo nupcial além do sacramental, e que toda a rutura deste é contra a vontade de Deus, também é consciente da fragilidade de muitos dos seus filhos, que sentem dificuldade no caminho da fé. «Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. [...] Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar grandes dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas» (Evangelii gaudium, 44).
25. Para uma abordagem pastoral às pessoas que contraíram um matrimónio civil, que estão divorciadas e voltaram a casar ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes a divina pedagogia da graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do plano de Deus nelas. Seguindo o olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o homem (cf. Jo 1,9; Gaudium et spes, 22), a Igreja dirige-se com amor aos que participam na sua vida de forma incompleta, reconhecendo que a graça de Deus opera também nas suas vidas, encorajando- as a praticar o bem, a cuidarem um do outro com amor e a estarem ao serviço da comunidade em que vivem e trabalham.
26. A Igreja olha com apreensão para a desconfiança que tantos jovens têm no empenho conjugal, sofre pela precipitação com que tantos fiéis decidem pôr fim ao vínculo assumido, criando um outro. Estes fiéis, que fazem parte da Igreja, precisam de uma atenção pastoral misericordiosa e encorajadora, distinguindo de forma adequada as situações. Os jovens batizados devem ser encorajados a não hesitar perante a riqueza que o sacramento do matrimónio dá aos seus projetos de amor, fortes do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamente na vida da Igreja.
27. Nesse sentido, uma dimensão nova da pastoral familiar hodierna consiste em prestar atenção à realidade dos matrimónios civis entre homem e mulher, aos matrimónios tradicionais e, com as devidas diferenças, também às convivências. Quando a união atinge uma notável estabilidade através de um vínculo público e é caraterizada por um afeto profundo, pela responsabilidade para com a prole e pela capacidade de superar as dificuldades, pode ser vista como uma ocasião a acompanhar em ordem ao sacramento do matrimónio. Muitas vezes, porém, a convivência estabelece-se sem ter em vista um possível futuro matrimónio e sem intenção alguma de estabelecer uma relação institucional.
28. Imitando o olhar misericordioso de Jesus, a Igreja deve acompanhar com atenção e solicitude os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e perdido, restituindo-lhes confiança e esperança, como a luz do farol de um porto ou de um archote trazido para o meio das pessoas, para iluminar os que perderam a rota ou se encontram no meio da tempestade. Conscientes de que a maior misericórdia é dizer a verdade com amor, temos que ir além da compaixão. O amor misericordioso, como atrai e une, também transforma e eleva; convida à conversão. É assim que entendemos a atitude do Senhor, que não condena a mulher adúltera, mas pede-lhe para não voltar a pecar (cf. Jo 8,1-11).
III PARTE
O confronto: perspetivas pastorais
Anunciar o Evangelho da família hoje, nos vários contextos
29. O diálogo sinodal deteve-se sobre algumas instâncias pastorais mais urgentes, cuja concretização confia a cada Igreja local, em comunhão "cum Petro et sub Petro". O anúncio do Evangelho da família é uma urgência para a nova evangelização. A Igreja é chamada a fazê-lo com ternura de mãe e clareza de mestra (cf. Ef 4,15), na fidelidade à kénose misericordiosa de Cristo. A verdade encarna-se na fragilidade humana, não para a condenar, mas para salvá-la (cf. Jo 3,16-17).
30. Evangelizar é uma responsabilidade de todo o povo de Deus, cada um segundo o seu ministério e carisma. Sem o testemunho alegre dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas, o anúncio, mesmo se correto, corre o risco de não ser compreendido ou de se afogar no mar de palavras que carateriza a nossa sociedade (cf. Novo millennio ineunte, 50). Os Padres sinodais sublinharam repetidas vezes que as famílias católicas, em força da graça do sacramento nupcial, são chamadas a ser, elas mesmas, sujeitos ativos da pastoral familiar.
31. Será decisivo realçar o primado da graça e, portanto, as possibilidades que o Espírito dá no sacramento. Trata-se de fazer experimentar que o Evangelho da família é alegria que «enche o coração e a vida inteira», porque em Cristo somos «libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento» (Evangelii gaudium, 1). À luz da parábola do semeador (cf. Mt 13,3), a nossa função é cooperar no semear: o resto é obra de Deus. Não se esqueça, por outro lado, que a Igreja, que prega sobre a família, é sinal de contradição.
32. Por isso, pede-se a toda a Igreja uma conversão missionária: é necessário não ficar num anúncio meramente teórico e desligado dos problemas reais das pessoas. Nunca se deve esquecer que a crise da fé trouxe uma crise do matrimónio e da família e, como consequência, interrompeu-se a transmissão da mesma fé de pais para filhos. Perante uma fé forte, a imposição de certas perspetivas culturais que enfraquecem a família e o matrimónio não tem incidência.
33. A conversão deve fazer-se também na linguagem, para que esta seja efetivamente significativa. O anúncio deve levar à experiência de que o Evangelho da família é uma resposta às expetativas mais profundas da pessoa humana: à sua dignidade e à realização plena na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar uma normativa, mas de propor valores, respondendo à necessidade que se sente deles, hoje constatada também nos Países mais secularizados.
34. A Palavra de Deus é fonte de vida e espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar deverá deixar-se modelar interiormente e formar os membros da Igreja doméstica através da leitura orante e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus não é só uma boa nova para a vida privada das pessoas, mas é também um critério de juízo e uma luz para o discernimento dos diversos desafios com que se confrontam os cônjuges e as famílias.
35. Ao mesmo tempo, muitos Padres sinodais insistiram sobre uma atitude mais positiva em relação às diversas experiências religiosas, sem omitir as suas dificuldades. Nestas diversas realidades religiosas e na grande diversidade cultural que carateriza as Nações, é oportuno começar por apreciar as suas possibilidades positivas e, à luz das mesmas, avaliar limites e carências.
36. O matrimónio cristão é uma vocação que se acolhe com uma adequada preparação num itinerário de fé, com um discernimento maduro, não se devendo considerá-lo apenas como uma tradição cultural ou uma exigência social ou jurídica. Por isso, é necessário realizar percursos que acompanhem a pessoa e o casal, de modo que à comunicação dos conteúdos da fé se una a experiência de vida oferecida por toda a comunidade eclesial.
37. Foi repetidamente lembrada a necessidade de uma radical renovação da prática pastoral à luz do Evangelho da família, superando as óticas individualistas que ainda a caracterizam. Para isso, várias vezes se insistiu sobre a renovação da formação dos presbíteros, dos diáconos, dos catequistas e dos outros agentes pastorais, mediante um maior envolvimento das próprias famílias.
38. Foi igualmente sublinhada a necessidade de uma evangelização que denuncie com franqueza os condicionamentos culturais, sociais, políticos e económicos, como o excessivo espaço dado à lógica do mercado, que impedem uma autêntica vida familiar, criando discriminações, pobreza, exclusões, violência. Daí que se desenvolva um diálogo e uma cooperação com as estruturas sociais, e se encorajem e se apoiem os leigos a se empenharem, como cristãos, no âmbito cultural e sociopolítico.
Guiar os nubentes no caminho de preparação para o matrimónio
39. A complexa realidade social e os desafios que a família hoje é chamada a enfrentar exigem um maior empenho de toda a comunidade cristã na preparação dos nubentes para o matrimónio. Há que recordar a importância das virtudes. Entre elas, a castidade é condição preciosa para o crescimento genuíno do amor interpessoal. Sobre esta necessidade, os Padres sinodais são unânimes em sublinhar a exigência de um maior envolvimento de toda a comunidade, privilegiando o testemunho das próprias famílias, além de uma inserção da preparação ao matrimónio no caminho de iniciação cristã, sublinhando a ligação do matrimónio com o batismo e os outros sacramentos. Foi, ao mesmo tempo, posta em evidência a necessidade de programas específicos para a preparação próxima ao matrimónio, que sejam uma verdadeira experiência de participação na vida eclesial e aprofundam os diversos aspetos da vida familiar.
Acompanhar os primeiros anos da vida matrimonial
40. Os primeiros anos de matrimónio são um período vital e delicado, no qual os casais crescem conscientes dos desafios e do significado do matrimónio. Daí a exigência de um acompanhamento pastoral que continue depois da celebração do sacramento (cf. Familiaris consortio, parte III). É de grande importância nesta pastoral a presença de casais de esposos com experiência. A paróquia é considerada o lugar onde casais experientes podem ser postos à disposição dos mais jovens, com o eventual contributo de associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. Há que encorajar os esposos a uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos. Deve sublinhar-se a importância da espiritualidade familiar, da oração e da participação na Eucaristia dominical, encorajando os casais a se reunirem regularmente para promover o crescimento da vida espiritual e a solidariedade nas exigências concretas da vida. Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias celebradas para as famílias, sobretudo no aniversário do matrimónio, foram indicadas como sendo vitais para favorecer a evangelização através da família.
Cuidado pastoral dos que vivem no matrimónio civil ou em convivências
41. Continuando a anunciar e a promover o matrimónio cristão, o Sínodo encoraja também o discernimento pastoral das situações de tantos que já não vivem esta realidade. É importante entrar em diálogo pastoral com essas pessoas, a fim de evidenciar os elementos da sua vida, que possam levar a uma maior abertura ao Evangelho do matrimónio na sua plenitude. Os pastores devem identificar elementos que possam favorecer a evangelização e o crescimento humano e espiritual. Uma sensibilidade nova da pastoral atual consiste em colher os elementos positivos presentes nos matrimónios civis e, com as devidas diferenças, nas convivências. É necessário que, na proposta eclesial, embora afirmando com clareza a mensagem cristã, se indiquem também elementos construtivos nas situações que a ela não correspondem ou já não correspondem.
42. Notou-se também que, em muitos Países, um «número crescente de casais convive ad experimentum, sem um matrimónio nem canónico nem civil» (Instrumentum laboris, 81). Nalguns Países, isso verifica-se sobretudo no matrimónio tradicional, concertado entre famílias e, muitas vezes, celebrado em várias etapas. Noutros Países, porém, cresce o número dos que, depois de terem vivido juntos por um longo período de tempo, pedem a celebração do matrimónio na Igreja. A simples convivência é, muitas vezes, preferida por causa da mentalidade geral contrária às instituições e aos empenhos definitivos, mas também pela espera de uma segurança existencial (trabalho e salário fixo). Noutros Países, por fim, as uniões de facto são muito numerosas, não só pela recusa dos valores da família e do matrimónio, mas sobretudo pelo facto de que casar-se é considerado um luxo, pelas condições sociais, levando a miséria material a viver em união de facto.
43. Todas estas situações devem ser enfrentadas de forma construtiva, procurando transformá-las em oportunidades de caminho para a plenitude do matrimónio e da família à luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza. Para esse fim, é importante o testemunho atraente de autênticas famílias cristãs, quais sujeitos da evangelização da família.
Cuidar das famílias feridas (separados, divorciados não recasados, divorciados recasados, famílias monoparentais)
44. Quando os esposos têm problemas nas suas relações, devem poder contar com a ajuda e o acompanhamento da Igreja. A pastoral da caridade e a misericórdia tendem a recuperar as pessoas e as relações. A experiência mostra que, com uma ajuda adequada e com a ação de reconciliação da graça, uma grande percentagem de crises matrimoniais é superada de forma satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoados é uma experiência fundamental na vida familiar. O perdão entre os esposos permite viver um amor, que é para sempre e nunca passa (cf. 1 Cor 13,8). Por vezes, porém, torna-se difícil para quem recebeu o perdão de Deus ter a força de dar um perdão autêntico que regenere a pessoa.
45. No Sínodo ecoou com clareza a necessidade de escolhas pastorais corajosas. Reconfirmando com vigor a fidelidade ao Evangelho da família e reconhecendo que a separação e o divórcio são sempre feridas, que provocam profundos sofrimentos nos cônjuges que os vivem e nos filhos, os Padres sinodais aperceberam-se da urgência de caminhos pastorais novos, que partam da efetiva realidade das fragilidades familiares, sabendo que estas, muitas vezes, são mais "recebidas" com sofrimento do que escolhidas em plena liberdade. Trata-se de situações diversas por fatores tanto pessoais como culturais e socioeconómicos. É necessário um olhar diferenciado, como São João Paulo II sugeria (cf. Familiaris consortio, 84).
46. Cada família deve ser, antes de mais, escutada com respeito e amor, tornando-se companheiros de viagem como Cristo com os discípulos no caminho de Emaús. Aplicam-se de modo especial a estas situações as palavras do Papa Francisco: «A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta "arte do acompanhamento", para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3,5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã» (Evangelii gaudium, 169).
47. Um especial discernimento é indispensável para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os que foram abandonados. Há que acolher e valorizar, sobretudo, o sofrimento dos que sofreram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou que foram obrigados pelos maus tratos do cônjuge a romper a convivência. O perdão pela injustiça sofrida não é fácil, mas é um caminho que a graça torna possível. Daí a necessidade de uma pastoral da reconciliação e da mediação através também de centros de escuta especializados a instituir nas dioceses. Do mesmo modo, deve sempre sublinhar-se que é indispensável assumir de forma leal e construtiva as consequências que a separação ou o divórcio têm sobre os filhos, sempre vítimas inocentes da situação. Eles não podem ser um "objeto" a disputar, e devem procurar-se as melhores formas para que possam superar o trauma da separação familiar e crescer o mais serenamente possível. Em todo o caso, a Igreja deverá sempre pôr em relevo a injustiça que deriva, muitas vezes, da situação de divórcio. Deve dar-se especial atenção ao acompanhamento das famílias monoparentais e, sobretudo, há que ajudar as mulheres que tenham de arcar sozinhas com a responsabilidade da casa e a educação dos filhos.
48. Um grande número de Padres sublinhou a necessidade de tornar mais acessíveis e ágeis, se possível totalmente gratuitos, os processos para o reconhecimento dos casos de nulidade. Entre as propostas foram indicadas: a superação da necessidade da dupla sentença conforme; a possibilidade de estabelecer uma via administrativa, sob a responsabilidade do bispo diocesano; um processo sumário, a realizar nos casos de nulidade notória. Alguns Padres, porém, mostram-se contrários a essas propostas, porque não garantiriam um juízo confiável. Há que insistir que, em todos estes casos, trata-se do apuramento da verdade sobre a validade do vínculo. Segundo outras propostas, deveria também considerar-se a possibilidade de dar relevo ao papel da fé dos nubentes em ordem à validade do sacramento do matrimónio, tendo como ponto firme que, entre batizados, todos os matrimónios válidos são sacramento.
49. Sobre as causas matrimoniais, a simplificação do procedimento, pedida por muitos, para além da preparação de suficientes agentes, clérigos e leigos com dedicação prioritária, exige que se sublinhe a responsabilidade do bispo diocesano, que na sua diocese poderia encarregar consultores, devidamente preparados, que pudessem gratuitamente aconselhar as partes sobre a validade do seu matrimónio. Essa função poderia ser desempenhada por um secretariado ou por pessoas qualificadas (cf. Dignitas connubii, art. 113, 1).
50. As pessoas divorciadas, mas que não voltaram a casar, e que muitas vezes são testemunhos de fidelidade matrimonial, devem ser encorajadas a encontrar na Eucaristia o alimento que as sustente no seu estado. A comunidade local e os Pastores devem acompanhar essas pessoas com solicitude, sobretudo quando há filhos ou é grave a sua situação de pobreza.
51. Também as situações dos divorciados que voltaram a casar exigem um atento discernimento e um acompanhamento de grande respeito, evitando toda a linguagem e atitude que os faça sentir discriminados, e promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar deles não é para a comunidade cristã um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade matrimonial, mas, ao contrário, precisamente nessa atenção, se exprime a sua caridade.
52. Refletiu-se sobre a possibilidade de os divorciados e recasados terem acesso aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Diversos Padres sinodais insistiram em favor da disciplina atual, pela relação constitutiva entre a participação na Eucaristia e a comunhão com a Igreja e com o seu ensinamento sobre o matrimónio indissolúvel. Outros exprimiram- se em favor de um acolhimento não generalizado à mesa eucarística, nalgumas situações particulares e com condições bem definidas, sobretudo tratando-se de casos irreversíveis e ligados a obrigações morais para com os filhos, que viriam a sofrer injustamente. O eventual acesso aos sacramentos deveria ser precedido de um caminho penitencial, sob a responsabilidade do bispo diocesano. A questão precisa de ser aprofundada, tendo bem presente a distinção entre situação objetiva de pecado e circunstâncias atenuantes, dado que «a imputabilidade e a responsabilidade de um ato podem ser diminuídas ou anuladas» por diversos «fatores psíquicos ou de carácter social» (Catecismo da Igreja Católica, 1735).
53. Alguns Padres defenderam que as pessoas divorciadas e recasadas ou conviventes possam recorrer frutuosamente à comunhão espiritual. Outros Padres perguntaram porque não podem então aceder à sacramental. Pede-se, portanto, um aprofundamento da temática capaz de fazer emergir a peculiaridade das duas formas e a sua relação com a teologia do matrimónio.
54. As problemáticas relativas aos matrimónios mistos reapareceram com frequência nas intervenções dos Padres sinodais. A diversidade da disciplina matrimonial das Igrejas ortodoxas põe, nalguns contextos, problemas, sobre o que se impõe uma reflexão no âmbito ecuménico. Analogamente, para os matrimónios inter-religiosos será importante o contributo do diálogo com as religiões.
A atenção pastoral para com as pessoas com orientação homossexual
55. Algumas famílias vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com orientação homossexual. A tal propósito, interrogámo-nos sobre qual devia ser a atenção pastoral oportuna perante essa situação, tendo presente o que a Igreja ensina: «Não existe nenhum fundamento para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família». E, do mesmo modo, os homens e as mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos com respeito e delicadeza. «Deve evitar-se para com eles qualquer atitude de injusta discriminação» (Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, 4).
56. É absolutamente inaceitável que os Pastores da Igreja recebam pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem as ajudas financeiras aos Países pobres à introdução de leis que instituam o "matrimónio" entre pessoas do mesmo sexo.
A transmissão da vida e o desafio da quebra da natalidade
57. Não é difícil constatar o difundir-se de uma mentalidade, que reduz a geração da vida a uma variável da projetação individual ou de casal. Os fatores de ordem económica têm um peso, por vezes, determinante, contribuindo para a forte quebra da natalidade, que enfraquece o tecido social, compromete a relação entre as gerações e torna mais incerto o olhar para o futuro. A abertura à vida é exigência intrínseca do amor conjugal. Nesta luz, a Igreja apoia as famílias que acolhem, educam e circundam de afeto os filhos diversamente hábeis.
58. Também neste âmbito, é necessário partir da escuta das pessoas e dar razão da beleza e da verdade de uma abertura incondicional à vida como algo de que o amor humano precisa, para vivê-lo em plenitude. É sobre esta base que pode assentar um adequado ensinamento sobre os métodos naturais para a procriação responsável. Isso ajuda a viver de forma harmoniosa e consciente a comunhão entre os cônjuges, em todas as suas dimensões, inclusive na responsabilidade geradora. Há que redescobrir a mensagem da Encíclica Humanae vitae de Paulo VI, que sublinha a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa, na avaliação moral dos métodos de regulação da natalidade. A adoção de crianças, órfãs e abandonadas, acolhidas como próprios filhos, é uma forma específica de apostolado familiar (cf. Apostolicam actuositatem, III,11), várias vezes lembrada e encorajada pelo magistério (cf. Familiaris consortio, III,II; Evangelium vitae, IV,93). A escolha da adoção e da entrega exprime uma especial fecundidade da experiência conjugal, não só quando esta é marcada pela esterilidade. Essa escolha é sinal eloquente do amor familiar, ocasião para testemunhar a própria fé e restituir dignidade filial a quem dela foi privado.
59. Deve-se ajudar a viver a afetividade, inclusive na ligação conjugal, como um caminho de maturação, no cada vez mais profundo acolhimento do outro e numa doação cada vez mais plena. Nesse sentido, há que insistir sobre a necessidade de oferecer caminhos formativos, que alimentem a vida conjugal, e sobre a importância de um laicado, que ofereça um acompanhamento, feito de testemunho vivo. É de grande ajuda o exemplo de um amor fiel e profundo, feito de ternura e respeito, capaz de crescer no tempo e que, no seu concreto abrir-se à geração da vida, faz a experiência de um mistério que nos transcende.
O desafio da educação e o papel da família na evangelização
60. Um dos desafios fundamentais, que hoje se põe às famílias, é certamente o da educação, que se torna mais exigente e complexa pela realidade cultural atual e pela grande influência dos média. Devem ser tidas na devida conta as exigências e as expetativas das famílias, que são capazes de ser, na vida quotidiana, lugares de crescimento, de concreta e essencial transmissão das virtudes, que dão forma à existência. Isso significa que os pais podem escolher livremente o tipo de educação a dar aos filhos, segundo as suas convicções.
61. A Igreja desempenha um papel precioso de apoio às famílias, partindo da iniciação cristã, através de comunidades acolhedoras. Pede-se-lhe, hoje mais do que ontem, tanto nas situações complexas como nas ordinárias, que apoie os pais no seu empenho educativo, acompanhando as crianças, os adolescentes e os jovens no seu crescimento, através de caminhos personalizados, capazes de os introduzir no sentido pleno da vida e de provocar escolhas e responsabilidades vividas à luz do Evangelho. Maria, na sua ternura, misericórdia e sensibilidade materna, pode saciar a fome de humanidade e de vida, para o que a invocam as famílias e o povo cristão. A pastoral e uma devoção mariana são um ponto de partida oportuno para anunciar o Evangelho da família.
CONCLUSÃO
62. As reflexões propostas, fruto do trabalho sinodal realizado com grande liberdade e num estilo de recíproca escuta, procuram lançar questões e indicar perspetivas, que deverão ser amadurecidas e definidas na reflexão das Igrejas locais, no ano que nos separa da Assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, prevista para outubro de 2015 e dedicada à vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo. Não se trata de decisões tomadas nem de perspetivas fáceis. Todavia, o caminho colegial dos Bispos e o envolvimento de todo o povo de Deus sob a ação do Espírito Santo, olhando para o modelo da Sagrada Família, poderão guiar-nos para encontrar caminhos de verdade e de misericórdia para todos. Foram os votos que, desde o início dos nossos trabalhos, nos fez o Papa Francisco, convidando-nos à coragem da fé e ao acolhimento humilde e honesto da verdade na caridade.
[tradução a cargo do Secretariado Geral da CEP]