XVII Assembleia de Párocos Dehonianos

MENSAGEM FINAL
De 15 a 17 de Fevereiro de 2016, realizou-se no Seminário de Nossa Senhora de Fátima, em Alfragide, a XVII Assembleia de Párocos Dehonianos. Participaram 30 religiosos scj, na sua maioria empenhados pastoralmente em paróquias, capelanias, vindos das mais variadas proveniências – das dioceses do Algarve, Angra do Heroísmo, Aveiro, Funchal, Lisboa e Porto – e, num ambiente familiar e fraterno, refletiram sobre o tema "Paróquia e Pastoral da Misericórdia – desafios pastorais".
Em sintonia com as propostas do Papa Francisco, para este Jubileu Extraordinário da Misericórdia, iniciámos com a reflexão "Paróquia e Pastoral da Misericórdia". O Cón. Luís Manuel Silva, a partir de pequenos flashes, ajudou-nos a alargar o horizonte da pastoral da misericórdia. Sugeriu-nos que ela deve ser o "pão nosso de cada dia"; ela é a síntese de toda a história da salvação e o verdadeiro rosto de Deus. Daí a urgência em redescobrir a centralidade do Mistério Pascal de Cristo morto e ressuscitado, porque é da Páscoa que brota toda a força redentora do Senhor. Chamou ainda a atenção para os sacramentos de cura e para as exéquias, apelando para a função do ministro como pastor e pai e não de juiz íntegro que julga e condena, aludindo para a necessidade de promover a misericórdia nas nossas comunidades como o rosto da Igreja.
Frei Bernardo Almeida apresentou-nos o olhar bíblico sobre a misericórdia, como arquitrave da Igreja: ela é fonte de alegria, serenidade e paz; é condição da nossa salvação; é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade; é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro; é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros; é o caminho que une Deus e o homem.
Perante este primado da misericórdia, deixou-nos alguns desafios: passar do auto-referenciamento ao outro; do preconceito à aceitação livre e responsável; do evitamento e da negação da realidade ao que somos realmente; da história passada e do futuro que virá à vivência do presente com sentido; das ações automáticas sem consciência a um modo de ser e de estar presente; da confusão, discussão, imposição à paz, ao diálogo franco, à comunhão; das atividades esgotantes às atividades felizes e motivadoras em realização; do não contacto real com a verdade libertadora ao encontro quotidiano com Deus, que nos ama e motiva a sermos felizes e a ajudarmos os outros.
Estes desafios despertam-nos para o valor do silêncio, da escuta da Palavra e do exercício do perdão como atitudes e caminhos fundantes da misericórdia.
O painel da tarde sublinhou a nossa missão de pastores da misericórdia - na disponibilidade junto dos que vivem situações limite na prisão, no hospital e diante da morte. A nossa missão é assim re-ligar, levar a salvação, a alegria e a paz. Portanto, a nossa presença transfigura-se em sinais de acolhimento e de amor.
Os trabalhos de grupo apelaram para a urgência das comunidades converterem-se em lugares de misericórdia, acolhendo o outro como irmão e rosto de Cristo.
O Pe. Agostinho Pinto apresentou as obras de misericórdia praticadas e vividas nas comunidades cristãs como testemunho vivo e eficaz do Evangelho: humanizam a sociedade e emprestam-lhe as impressões digitais do próprio Cristo que lava os pés da humanidade; transformam o homem numa nova criação restituindo-lhe a liberdade e a vida. Desta constante obra de Deus todos nós fomos investidos como Dehonianos e como pastores para anunciarmos as obras do Senhor e sermos misericordiosos como o Pai: "Vai e faz tu também o mesmo!" (Lc 10, 37).
Alfragide, 17 de fevereiro de 2016
Comissão Provincial da Pastoral Paroquial
Mensagem para a Quaresma do Patriraca de Lisboa
 "A misericórdia, com as suas obras"
"A misericórdia, com as suas obras"
Viver a Quaresma de 2016, na diocese, no país e no mundo, tem tanto de local como de universal, ainda que necessariamente conjugado por cada um de nós. E por cada um de nós como discípulo de Cristo, exercitantes que somos do Evangelho vivo.
Na nossa diocese significa caminho sinodal, para nos retomarmos em resposta ao apelo do Papa Francisco, na exortação apostólica Evangelii Gaudium. Há instantemente um sonho a cumprir: o sonho missionário de chegar a todos, até cada periferia de pessoas, grupos, estruturas e circunstâncias que esperam por nós, ainda que o não saibam.
E não tanto por nós, mas sempre pelo Evangelho de Cristo, que nos cumpre viver mais e testemunhar melhor, sempre mais e melhor. Para isto mesmo serve cada Quaresma, para nos "rasgar o coração", para falarmos como o profeta Joel, pois nada nos basta – a nós e aos outros – senão a largueza do amor divino. Aproveitemos este tempo tão especial de graça – a Quaresma do Ano Santo da Misericórdia -, para que a escuta mais atenta da Palavra de Deus e os atos mais decididos da caridade prática nos levem a fazê-lo, em geral benefício. Somos a resposta de Cristo ao mundo; peçamos a Cristo a graça de a prestarmos.
Consideremos, entretanto, que a cidade dos homens é a base operativa da Cidade de Deus. É também por isso que as obras de misericórdia, tão relembradas pelo Papa Francisco, são igualmente corporais e espirituais, e a realizar no global. Neste ano jubilar, que todo versa o tema da misericórdia, apliquemo-nos com redobrado esforço a cada uma delas, no singular e no conjunto.
Convém lembrá-las, na formulação tradicional e facilmente memorizável, dando a cada uma a concretização que em cada caso precisa de ter. Será mesmo um bom exercício quaresmal aprendê-las de cor até à Páscoa, e não me parece demais começar já aqui: As corporais: 1ª) Dar de comer a quem tem fome. 2ª) Dar de beber a quem tem sede. 3ª) Vestir os nus. 4ª) Dar pousada aos peregrinos. 5ª) Assistir aos enfermos. 6ª) Visitar os presos. 7ª) Enterrar os mortos. As espirituais: 1ª) Dar bom conselho. 2ª) Ensinar os ignorantes. 3ª) Corrigir os que erram. 4ª) Consolar os tristes. 5ª) Perdoar as injúrias. 6ª) Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo. 7ª) Rogar a Deus por vivos e defuntos.
Estou certo de que, lembrando cada uma, imediatamente nos ocorrem concretizações urgentes ou possíveis. Nas nossas casas, comunidades, escolas, hospitais, prisões, locais de trabalho ou convívio, não faltam ocasiões e apelos.
Saciar fome e sede, ter veste e alojamento, são necessidades básicas de todos e requisitos solidários também, para qualquer "sociedade" que queira realmente sê-lo. São a primeira face da realidade humana, que sempre carece e espera. Face em que nos espelhamos e onde se espelha o próprio Cristo, no rosto de quem nos interpela. O mesmo Cristo que saciava a fome material dos outros, para os saciar depois, doutra fome mais larga e persistente. Mas com esta sequência, necessariamente. Também por isso, as nossas comunidades, em que se manifesta e expande o corpo eclesial do Ressuscitado, não podem, nem querem, ignorar a face inteira da fome, sede, nudez ou desabrigo de qualquer ser humano. Se havemos de recusar o materialismo, igualmente evitaremos qualquer espiritualismo oco, para nos dedicarmos, isso sim, a um serviço concreto e global, como o Evangelho ensina. Do mesmo modo consideremos que assistir aos enfermos e visitar os presos, nos faz tocar diretamente a Cristo, que no horto sofreu agonia e prisão.
Diz um passo evangélico que quem O tocava ficava curado. Toquemo-Lo em que sofre, para alívio alheio e cura própria. Demonstrando assim que ninguém se pode salvaguardar do sofrimento dos outros. Bem pelo contrário, é na relação com quem sofre que nos curamos também a nós.
Aliás, as chamadas "questões fraturantes", que sucessivamente irrompem, fraturam-nos sobretudo a nós como humanidade, quando se alegam assim chamados "direitos" de alguns para nos desresponsabilizar da resposta solidária que devíamos dar a todos, com mais cuidado e companhia.
Quanto a enterrar os mortos, terá seguimento nas atuais circunstâncias, para além do que requer como serviço organizado. Para quem parte, é dignidade reconhecida e assim mesmo manifesta. Para quem fica, é amizade comprovada, que compartilha o luto e faz companhia.
Dar bom conselho, ensinar os ignorantes e corrigir os que erram, são outras tantas demonstrações de que com eles realmente estamos e para eles igualmente somos, numa pedagogia que não os dispensa nem nos dispensa a nós. Como Jesus, que nunca despedia quem O procurava, antes longamente ensinava, assim temos de estar na grande e mútua escola que este mundo deve ser.
Com verdadeiro interesse pelo bem dos outros, que não os deixe dissolver valores em caprichos, nem vaguear sem rumo. Há muita sabedoria adquirida e comprovada por milénios de humanidade, que tanto devemos guardar pessoal como socioculturalmente. Assim como não há liberdade de escolha, quando nem se conhece o que escolher.
Consolar os tristes ganha hoje particular pertinência, pois nada entristece tanto como o isolamento em que se vive, mesmo que fugazmente entretido. Para as pessoas que somos, a alegria é outro nome da verdadeira convivência, hoje escassa e por vezes nula. Prevenir ou consolar tristezas é não deixar ninguém sem companhia, seja onde for ou quando for, quer para festejar os êxitos quer para ultrapassar os fracassos. Temos tantas razões, possibilidades e meios para nos acompanharmos sempre, que é grande contradição fazê-lo pouco ou nunca.
Perdoar as injúrias, é dar a quem as faz uma oportunidade mais para se refazer melhor. Para um discípulo de Cristo, é ocasião para seguir o seu mestre, que injuriado não respondia com injúrias, assim mesmo demostrando a grandeza que tinha. Foi esta a sua maneira de converter a tantos e nos converter a nós. No presente Jubileu, reparemos especialmente na magnanimidade do Pai do filho pródigo, parábola maior da misericórdia divina.
O mesmo se diga do sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo, não desistindo de ninguém; como Deus não desiste de nós, quando demoramos tanto a recuperar-Lhe a semelhança, apesar da graça que nunca recusa. Lembra-nos São Paulo que «a Cristo, que não conhecera o pecado, identificou-O Deus com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos justiça de Deus»: Pensemos muito nisto, para que as fraquezas dos outros nunca sejam pretexto para desistir seja de quem for. Situa-se aqui, precisamente aqui, o desafio do amor cristão. Que também não deixa de rogar a Deus por vivos e defuntos, pois a caridade nunca acabará.
Somos, tantas vezes, uma imensidão de sós... Quem não tem família por perto, vizinhos atentos, visitas nos hospitais, nas prisões, ou lares de idosos... E também nas nossas ruas e espaços, que se transformam frequentemente em locais de duvidosa compensação e perigosos consumos, para jovens e menos jovens sem ambiente doméstico nem melhor enquadramento. A estes e outros desajustamentos pessoais e sociais responderão as obras de misericórdia na respetiva complementaridade, pois tanto alojam os peregrinos de algo ou de si próprios como dão bom conselho e recriam relações. São campos abertos à caridade criativa, com muito por fazer na cidade de nós todos.
Na caminhada sinodal de Lisboa, algumas conclusões dos grupos vão já nesse sentido, valorizando, por exemplo, os nexos familiares, comunitários e intercomunitários, para que ninguém fique isolado nem se isole a si próprio, da infância à velhice. E para formar "familiarmente" as pessoas, quer em ordem ao matrimónio quer para o serviço da Família de Deus, que é a Igreja no seu todo. É este um campo prioritário para a ação diocesana; e ainda mais se definirá por certo, na conclusão programática a que chegaremos em sínodo.
Somos e seremos, ao mesmo tempo, verdadeiros cidadãos do mundo. E não só porque hoje toda a distância se anula como quem prime um botão, mas também porque deparamos aqui com uma crescente diversidade étnica e cultural concentrada em pouco espaço, o nosso espaço comum.
Num lugar central de Lisboa e arredores podem cruzar-se dezenas de pessoas de várias proveniências e tradições, religiosas ou outras. Acolhamos quem chegue agora, em busca de sobrevivência e trabalho, como acolhemos outros há algum tempo já. E no futuro, eles e nós, seremos a sociedade de todos, sobre a base comum de direitos humanos respeitados e, de facto, praticados.
Largo campo, também este, para a prática das obras de misericórdia. Em termos propriamente cristãos, sabemos que o bom futuro é assegurado pelas vidas que se oferecem a Deus, única maneira de se repartirem por todos. Como Cristo depôs a sua nas mãos do Pai, que logo a distribuiu em abundância.
Esta foi a sua Páscoa, que celebraremos inteiramente, quando também connosco for assim. Por isso mesmo, ainda que tudo corporalmente se exteriorize, é espiritualmente que se garante. Aí mesmo, no "segredo" que apenas o Pai vê e recompensa, como o Evangelho ensina. Aí mesmo, quando jejuamos de tudo o mais que não seja Deus, para nos repartirmos em esmola que a todos alcance. Não foi outro o êxodo de Cristo, não será outro o nosso, que lhe herdamos o Espírito.Com todos vós, em conversão à misericórdia divina,
† Manuel, Cardeal-Patriarca
Lisboa, Quarta-Feira de Cinzas, 10 de fevereiro de 2016
(A nossa renúncia quaresmal de 2015, destinada a várias instituições e iniciativas sociocaritativas do Patriarcado, atingiu duzentos e cinquenta mil euros. Ouvido o Conselho Presbiteral, encaminharei a renúncia quaresmal da diocese de Lisboa em 2016 para um Apoio Diocesano às Obras de Misericórdia (ADOM), que nos permita corresponder aos crescentes pedidos de ajuda de entidades que as praticam.)
Mensagem do papa para a Quaresma 2016
 «Prefiro a misericórdia ao sacrifício (Mt 9, 13). As obras de misericórdia no caminho jubilar»
«Prefiro a misericórdia ao sacrifício (Mt 9, 13). As obras de misericórdia no caminho jubilar»
1. Maria, ícone duma Igreja que evangeliza porque evangelizada
Na Bula de proclamação do Jubileu, fiz o convite para que «a Quaresma deste Ano Jubilar seja vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus» (Misericordiӕ Vultus, 17). Com o apelo à escuta da Palavra de Deus e à iniciativa «24 horas para o Senhor», quis sublinhar a primazia da escuta orante da Palavra, especialmente a palavra profética. Com efeito, a misericórdia de Deus é um anúncio ao mundo; mas cada cristão é chamado a fazer pessoalmente experiência de tal anúncio. Por isso, no tempo da Quaresma, enviarei os Missionários da Misericórdia a fim de serem, para todos, um sinal concreto da proximidade e do perdão de Deus.
Maria, por ter acolhido a Boa Notícia que Lhe fora dada pelo arcanjo Gabriel, canta profeticamente, no Magnificat, a misericórdia com que Deus A predestinou. Deste modo a Virgem de Nazaré, prometida esposa de José, torna-se o ícone perfeito da Igreja que evangeliza porque foi e continua a ser evangelizada por obra do Espírito Santo, que fecundou o seu ventre virginal. Com efeito, na tradição profética, a misericórdia aparece estreitamente ligada – mesmo etimologicamente – com as vísceras maternas (rahamim) e com uma bondade generosa, fiel e compassiva (hesed) que se vive no âmbito das relações conjugais e parentais.
2. A aliança de Deus com os homens: uma história de misericórdia
O mistério da misericórdia divina desvenda-se no decurso da história da aliança entre Deus e o seu povo Israel. Na realidade, Deus mostra-Se sempre rico de misericórdia, pronto em qualquer circunstância a derramar sobre o seu povo uma ternura e uma compaixão viscerais, sobretudo nos momentos mais dramáticos quando a infidelidade quebra o vínculo do Pacto e se requer que a aliança seja ratificada de maneira mais estável na justiça e na verdade. Encontramo-nos aqui perante um verdadeiro e próprio drama de amor, no qual Deus desempenha o papel de pai e marido traído, enquanto Israel desempenha o de filho/filha e esposa infiéis. São precisamente as imagens familiares – como no caso de Oseias (cf. Os 1-2) – que melhor exprimem até que ponto Deus quer ligar-Se ao seu povo.
Este drama de amor alcança o seu ápice no Filho feito homem. N'Ele, Deus derrama a sua misericórdia sem limites até ao ponto de fazer d'Ele a Misericórdia encarnada (cf. Misericordiӕ Vultus, 8). Na realidade, Jesus de Nazaré enquanto homem é, para todos os efeitos, filho de Israel. E é-o ao ponto de encarnar aquela escuta perfeita de Deus que se exige a cada judeu pelo Shemà, fulcro ainda hoje da aliança de Deus com Israel: «Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6, 4-5). O Filho de Deus é o Esposo que tudo faz para ganhar o amor da sua Esposa, à qual O liga o seu amor incondicional que se torna visível nas núpcias eternas com ela.
Este é o coração pulsante do querigma apostólico, no qual ocupa um lugar central e fundamental a misericórdia divina. Nele sobressai «a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado» (Evangelii gaudium, 36), aquele primeiro anúncio que «sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra, durante a catequese» (Ibid., 164). Então a Misericórdia «exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar» (Misericordiӕ Vultus, 21), restabelecendo precisamente assim a relação com Ele. E, em Jesus crucificado, Deus chega ao ponto de querer alcançar o pecador no seu afastamento mais extremo, precisamente lá onde ele se perdeu e afastou d'Ele. E faz isto na esperança de assim poder finalmente comover o coração endurecido da sua Esposa.
3. As obras de misericórdia
A misericórdia de Deus transforma o coração do homem e faz-lhe experimentar um amor fiel, tornando-o assim, por sua vez, capaz de misericórdia. É um milagre sempre novo que a misericórdia divina possa irradiar-se na vida de cada um de nós, estimulando-nos ao amor do próximo e animando aquilo que a tradição da Igreja chama as obras de misericórdia corporal e espiritual. Estas recordam-nos que a nossa fé se traduz em actos concretos e quotidianos, destinados a ajudar o nosso próximo no corpo e no espírito e sobre os quais havemos de ser julgados: alimentá-lo, visitá-lo, confortá-lo, educá-lo. Por isso, expressei o desejo de que «o povo cristão reflicta, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina» (Ibid., 15). Realmente, no pobre, a carne de Cristo «torna-se de novo visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga... a fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós» (Ibid., 15). É o mistério inaudito e escandaloso do prolongamento na história do sofrimento do Cordeiro Inocente, sarça ardente de amor gratuito na presença da qual podemos apenas, como Moisés, tirar as sandálias (cf. Ex 3, 5); e mais ainda, quando o pobre é o irmão ou a irmã em Cristo que sofre por causa da sua fé.
Diante deste amor forte como a morte (cf. Ct 8, 6), fica patente como o pobre mais miserável seja aquele que não aceita reconhecer-se como tal. Pensa que é rico, mas na realidade é o mais pobre dos pobres. E isto porque é escravo do pecado, que o leva a utilizar riqueza e poder, não para servir a Deus e aos outros, mas para sufocar em si mesmo a consciência profunda de ser, ele também, nada mais que um pobre mendigo. E quanto maior for o poder e a riqueza à sua disposição, tanto maior pode tornar-se esta cegueira mentirosa. Chega ao ponto de não querer ver sequer o pobre Lázaro que mendiga à porta da sua casa (cf. Lc 16, 20-21), sendo este figura de Cristo que, nos pobres, mendiga a nossa conversão. Lázaro é a possibilidade de conversão que Deus nos oferece e talvez não vejamos. E esta cegueira está acompanhada por um soberbo delírio de omnipotência, no qual ressoa sinistramente aquele demoníaco «sereis como Deus» (Gn 3, 5) que é a raiz de qualquer pecado. Tal delírio pode assumir também formas sociais e políticas, como mostraram os totalitarismos do século XX e mostram hoje as ideologias do pensamento único e da tecnociência que pretendem tornar Deus irrelevante e reduzir o homem a massa possível de instrumentalizar. E podem actualmente mostrá-lo também as estruturas de pecado ligadas a um modelo de falso desenvolvimento fundado na idolatria do dinheiro, que torna indiferentes ao destino dos pobres as pessoas e as sociedades mais ricas, que lhes fecham as portas recusando-se até mesmo a vê-los.
Portanto a Quaresma deste Ano Jubilar é um tempo favorável para todos poderem, finalmente, sair da própria alienação existencial, graças à escuta da Palavra e às obras de misericórdia. Se, por meio das obras corporais, tocamos a carne de Cristo nos irmãos e irmãs necessitados de ser nutridos, vestidos, alojados, visitados, as obras espirituais tocam mais directamente o nosso ser de pecadores: aconselhar, ensinar, perdoar, admoestar, rezar. Por isso, as obras corporais e as espirituais nunca devem ser separadas. Com efeito, é precisamente tocando, no miserável, a carne de Jesus crucificado que o pecador pode receber, em dom, a consciência de ser ele próprio um pobre mendigo. Por esta estrada, também os «soberbos», os «poderosos» e os «ricos», de que fala o Magnificat, têm a possibilidade de aperceber-se que são, imerecidamente, amados pelo Crucificado, morto e ressuscitado também por eles. Somente neste amor temos a resposta àquela sede de felicidade e amor infinitos que o homem se ilude de poder colmar mediante os ídolos do saber, do poder e do possuir. Mas permanece sempre o perigo de que os soberbos, os ricos e os poderosos – por causa de um fechamento cada vez mais hermético a Cristo, que, no pobre, continua a bater à porta do seu coração – acabem por se condenar precipitando-se eles mesmos naquele abismo eterno de solidão que é o inferno. Por isso, eis que ressoam de novo para eles, como para todos nós, as palavras veementes de Abraão: «Têm Moisés e o Profetas; que os oiçam!» (Lc 16, 29). Esta escuta activa preparar-nos-á da melhor maneira para festejar a vitória definitiva sobre o pecado e a morte conquistada pelo Esposo já ressuscitado, que deseja purificar a sua prometida Esposa, na expectativa da sua vinda.
Não percamos este tempo de Quaresma favorável à conversão! Pedimo-lo pela intercessão materna da Virgem Maria, a primeira que, diante da grandeza da misericórdia divina que Lhe foi concedida gratuitamente, reconheceu a sua pequenez (cf. Lc 1, 48), confessando-Se a humilde serva do Senhor (cf. Lc 1, 38).
Papa Francisco, Vaticano, 4 de Outubro de 2015
JUBILEU DA VIDA CONSAGRADA
 1. HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
1. HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Basílica Vaticana, 2 de Fevereiro de 2016
Diante do nosso olhar apresenta-se um acontecimento simples, humilde e grande: Maria e José levam Jesus ao templo de Jerusalém. Trata-se de uma criança como muitas, mas é única: é o Unigénito que veio para todos. Este Menino trouxe-nos a misericórdia e a ternura de Deus: Jesus constitui o semblante da Misericórdia do Pai. É este ícone que o Evangelho nos oferece no encerramento do Ano da Vida Consagrada, um ano vivido com grande entusiasmo. Agora como um rio, ele conflui no mar da misericórdia, neste imenso mistério de amor que continuamos a experimentar através do Jubileu extraordinário.
A festividade de hoje, sobretudo no Oriente, é denominada festa do encontro. Com efeito, no Evangelho que foi proclamado vemos vários encontros (cf. Lc 2, 22-40). No templo, Jesus vem ao nosso encontro, enquanto nós vamos ao seu encontro. Contemplamos o encontro com o velho Simeão, que representa a expectativa fiel de Israel e a exultação do coração pelo cumprimento das antigas promessas. Admiramos também o encontro com a idosa profetisa Ana que, ao ver o Menino, exulta de alegria e louva a Deus. Simeão e Ana representam a espera e a profecia, Jesus é a novidade e o cumprimento: Ele apresenta-se-nos como a perene surpresa de Deu; neste Menino que nasceu para todos encontram-se o passado, feito de memória e de promessa, e o futuro, repleto de esperança.
Nisto podemos ver o início da vida consagrada. Os consagrados e as consagradas são chamados, antes de tudo, a ser homens e mulheres do encontro. Com efeito, a vocação não começa a partir de um nosso programa, pensado de modo «teórico», mas de uma graça do Senhor que nos alcança, através de um encontro que muda a vida. Quem encontra realmente Jesus não pode permanecer como antes. Ele é a novidade que renova tudo. Quem vive este encontro transforma-se em testemunha e torna possível o encontro para os outros; e faz-se também promotor da cultura do encontro, evitando a auto-referencialidade, que nos leva a permanecer fechados em nós mesmos.
O trecho da Carta aos Hebreus, que ouvimos, recorda-nos que o próprio Jesus, para vir ao nosso encontro, não hesitou em compartilhar a nossa condição humana: «Porquanto os filhos participam da mesma natureza, da mesma carne e do mesmo sangue, também Ele [Cristo] se tornou partícipe» (2, 14). Jesus não nos salvou «a partir de fora», não permaneceu fora do nosso drama, mas quis participar na nossa vida. Os consagrados e as consagradas são chamados a ser um sinal concreto e profético desta proximidade de Deus, desta partilha da condição de fragilidade, de pecado e de feridas do homem do nosso tempo. Todas as formas de vida consagrada, cada uma segundo as suas características, são chamadas a estar em condição permanente de missão, compartilhando «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem» (Gaudium et spes, 1).
O Evangelho diz-nos também que «o pai e a mãe [de Jesus] estavam admirados com aquilo que dele se dizia» (v. 33). José e Maria conservam a surpresa deste encontro, cheio de luz e de esperança para todos os povos. E também nós, como cristãos e como pessoas consagradas, somos guardiões da surpresa. Um enlevo que deve ser sempre renovado; ai da rotina na vida espiritual; ai de nós se cristalizarmos os nossos carismas numa doutrina abstracta: os carismas dos fundadores — como eu já disse outras vezes — não devem ser fechadas numa garrafa, não são peças de museu. Os nossos fundadores foram impelidos pelo Espírito e não tiveram medo de sujar as próprias mãos na vida quotidiana, com os problemas do povo, percorrendo com coragem as periferias geográficas e existenciais. Não se detiveram diante dos obstáculos e das incompreensões dos outros, porque conservaram no seu coração a surpresa do encontro com Cristo. Não domesticaram a graça do Evangelho; sempre conservaram no coração uma sadia inquietação pelo Senhor, um intenso desejo de o levar aos outros, como fizeram Maria e José no templo. Hoje, também nós somos chamados a fazer escolhas proféticas e corajosas.
Enfim, da festa de hoje nós aprendemos a viver a gratidão pelo encontro com Jesus e pelo dom da vocação para a vida consagrada. Agradecimento, acção de graças: Eucaristia. Como é bonito quando encontramos o rosto feliz de pessoas consagradas, talvez já numa idade avançada como Simeão ou Ana, contentes e cheias de gratidão pela própria vocação. Esta é uma palavra que pode resumir tudo aquilo que vivemos neste Ano da Vida Consagrada: gratidão pela dádiva do Espírito Santo, que anima sempre a Igreja através dos vários carismas.
O Evangelho conclui-se com esta expressão: «O menino crescia e fortificava-se: estava cheio de sabedoria e a graça de Deus estava com Ele» (v. 40). Possa o Senhor Jesus, pela intercessão maternal de Maria, crescer em nós, aumentando em cada um o desejo do encontro, a preservação da surpresa e a alegria da gratidão. Então, também outros serão atraídos pela sua luz e poderão encontrar a misericórdia do Pai.
Papa Francisco, 2 de Fevereiro de 2016
Saudação do Santo Padre no final da Santa Missa, no adro da Basílica de São Pedro:
Muito obrigado, caros irmãos e irmãs consagrados! Participastes na Eucaristia num clima ou pouco fresco, mas o coração arde!
Obrigado por concluirmos assim, todos juntos, este Ano da Vida Consagrada. Ide em frente! Cada um de nós ocupa um lugar, desempenha uma tarefa na Igreja. Por favor, não vos esqueçais da primeira vocação, do primeiro apelo. Fazei memória! E com o mesmo amor com o qual fostes chamados, hoje o Senhor continua a interpelar-vos. Não diminuais, não abaixeis aquela beleza, aquela surpresa do primeiro chamamento. E depois continuai a trabalhar. É bom continuar. O principal é rezar. O «núcleo» da vida consagrada é a oração: rezar! E assim envelhecer, mas envelhecer como o vinho bom!
Digo-vos algo. Gosto muito de me encontrar com religiosas ou religiosos idosos, mas com os olhos que reluzem, porque conservam aceso o fogo da vida espiritual. Aquele fogo não se apagou, não se apagou! Ide em frente hoje, todos os dias, e continuai a trabalhar e a olhar para o porvir com esperança, pedindo sempre ao Senhor que nos mande novas vocações, de tal modo que a nossa obra de consagração possa progredir. A memória: não vos esqueçais da primeira chamada! O trabalho de todos os dias e depois a esperança de ir em frente e semear o bem, a fim de que quantos vierem atrás de nós possam receber a herança que nós lhes deixaremos.
Agora, oremos a Nossa Senhora. Ave Maria... [Bênção].
Boa noite e rezai por mim!
Papa Francisco, 2 de Fevereiro de 2016
2. JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
ENCONTRO DO PAPA FRANCISCO COM OS PARTICIPANTES DO JUBILEU DA VIDA CONSAGRADA
Sala Paulo VI, 1 de Fevereiro de 2016
Queridos irmãs e irmãos!
Preparei um discurso para esta ocasião sobre os temas da vida consagrada e os três pilares; há outros, mas os três importantes da vida consagrada. O primeiro é a profecia, o outro é a proximidade e o terceiro é a esperança. Profecia, proximidade e esperança. Entreguei o texto ao Cardeal Prefeito porque lê-lo é um pouco tedioso e prefiro falar convosco daquilo que me vem do coração. Estais de acordo?
Religiosos e religiosas, isto é homens e mulheres consagrados ao serviço do Senhor que percorrem na Igreja este caminho de pobreza forte, de amor casto que os leva a uma paternidade e a uma maternidade espiritual por toda a Igreja, uma obediência... Mas nesta obediência sempre falta algo, porque a obediência perfeita é aquela do Filho de Deus, que se consumiu, se fez homem por obediência, até à morte de Cruz. Há no meio de vós homens e mulheres que vivem uma obediência forte, uma obediência — não militar, não, isto não; aquilo é disciplina, é outra coisa — uma obediência de doação do coração. E isto é profecia. «Mas, tu não tens vontade de fazer outra coisa?...» — «Sim, mas de acordo com as regras devo fazer isto. E segundo as disposições isto e isso. E se não vir claramente algo, falo com o superior, com a superiora, e depois do diálogo, obedeço». Esta é a profecia, contra a semente de anarquia que o diabo lança. «Que fazes tu?» — «Faço o que me apetece». A anarquia da vontade é filha do demónio, não de Deus. O Filho de Deus não é um santo anarquista, não chamou os seus para exercer uma força de resistência contra os seus inimigos; Ele mesmo disse a Pilatos: «Se eu fosse um rei deste mundo teria chamado os meus soldados para me defender». Mas Ele exerceu a obediência do Pai. Somente rezou: «Pai, por favor, não, este cálice não... Mas que se faça a tua vontade». Quando aceitais por obediência algo que talvez muitas vezes não vos agrada... [faz o gesto de engolir]... devemos engolir aquela obediência. Portanto, a profecia. A profecia é anunciar às pessoas que existe um caminho de felicidade, de grandeza, uma via que te enche de alegria, que é precisamente a estrada de Jesus. É a estrada de estar próximo de Jesus. É um dom, um carisma, a profecia que deve ser pedida ao Espírito Santo: que eu saiba dizer aquela palavra, no momento justo; que eu faça algo no momento justo; que toda a minha vida seja uma profecia. Homens e mulheres profetas. E isto é muito importante. «Mas, fazemos como fazem todos...». Não. A profecia é dizer que existe algo de mais verdadeiro, mais bonito, maior, melhor ao qual todos somos chamados.
A outra palavra é proximidade. Homens e mulheres consagrados, não para se afastar das pessoas e gozar de todas as comodidades, mas para se aproximar e compreender a vida dos cristãos e não-cristãos, os sofrimentos, os problemas, as inúmeras situações que só se compreendem se um homem ou uma mulher consagrados se tornar próximo: na proximidade. «Mas, Padre, sou uma religiosa de clausura, o que devo fazer?». Pensai em santa Teresa do Menino Jesus, padroeira das missões, que com o seu coração fervoroso estava próxima, e as cartas que recebia dos missionários tornavam-na mais próxima das pessoas. Ser consagrado não significa subir um, dois ou três degraus na sociedade. É verdade, muitas vezes ouvimos os pais: «Sabe Padre, tenho uma filha religiosa, tenho um filho frade!». Dizem-no com orgulho. E é verdade! É uma satisfação para os pais ter filhos consagrados, isto é verdade. Mas para os consagrados não é um status de vida que faz olhar para os outros com distância. A vida consagrada deve levar-me à proximidade com as pessoas: proximidade física, espiritual, conhecer as pessoas. «Ah, sim, Padre, na minha comunidade a superiora deu-nos a permissão para sair, ir aos bairros pobres ter com as pessoas...» — «E na tua comunidade, há religiosas idosas?» — «Sim, sim... Existe uma enfermaria no terceiro andar» — «E quantas vezes por dia vais ter com as tuas irmãs, as idosas, que poderiam ser a tua mãe ou a tua avó?» — «Mas, sabe Padre, estou muito comprometida no trabalho e não consigo ir lá...». Proximidade! Qual é o primeiro próximo de um consagrado ou consagrada? O irmão ou a irmã da comunidade. Este é o vosso primeiro próximo. É inclusive uma proximidade simpática, boa, com amor. Sei que nas vossas comunidades nunca se fazem mexericos, nunca, nunca... Eles causam o afastamento. Ouvi bem: não aos mexericos, ao terrorismo dos mexericos. Porque quem faz mexericos é um terrorista. É um terrorista dentro da própria comunidade, pois lança como se fosse uma bomba a palavra contra este, aquele, e depois segue tranquilo. Destrói! Quem age assim, destrói, como uma bomba, e depois afasta-se. O apóstolo são Tiago dizia que talvez a virtude mais difícil, a virtude humana e espiritual mais difícil de ter, é aquela de dominar a língua. Se te vier a vontade de dizer algo contra um irmão ou uma irmã, de lançar uma bomba de mexericos, morde a tua língua! Forte! Terrorismo na comunidade, não! «Mas Padre, se há algo para corrigir, um defeito?». Dizes à pessoa: tu tens esta atitude que me incomoda, ou não me agrada. Ou se não for conveniente — porque muitas vezes não é prudente — dizes à pessoa que pode remediar, que pode resolver o problema e a ninguém mais. Entendestes? Os mexericos não servem. «Mas no capítulo?». Ali sim! Em público, tudo o que sentires que deves dizer; porque existe a tentação de não dizer as coisas no capítulo, e depois fora: «Viste a priora? Viste a abadessa? Viste o superior-geral?...». Mas por que não disseste durante o capítulo?... Está claro isto? São virtudes de proximidade. E os Santos conheciam-na, os santos consagrados tinham-na. Santa Teresa do Menino Jesus nunca se lamentou do trabalho, do incómodo que lhe causava a irmã que devia acompanhar ao refeitório todas as noites: do coro ao refeitório. Nunca! Porque aquela pobre religiosa era muito idosa, quase paralítica, caminhava mal, sentia dores — até eu a entendo! — era também um pouco neurótica... Nunca disse a outra religiosa: «Esta irmã incomoda-me!». O que fazia? Ajudava-a a sentar-se, dava-lhe o guardanapo, partia-lhe o pão e dava-lhe um sorriso. Isto se chama proximidade. Proximidade! Se lanças a bomba de um mexerico na tua comunidade, isto não é proximidade: é fazer guerra! É afastar-te, provocar distâncias e anarquismo na comunidade. E se, neste Ano da Misericórdia, cada um de vós conseguisse nunca ser o terrorista mexeriqueiro ou mexeriqueira, seria um sucesso para a Igreja, um grande sucesso de santidade! Tende coragem! Proximidade.
E a esperança. Confesso-vos que me dói muito quando vejo a diminuição das vocações, quando recebo os bispos e lhes pergunto: «Quantos seminaristas tendes?» — «4, 5...». Quando vós, nas vossas comunidades religiosas — masculinas ou femininas — recebeis um noviço, uma noviça, dois... e a comunidade envelhece... Quando há mosteiros, grandes mosteiros, e o Cardeal Amigo Vallejo [dirige-se a ele] pode dizer-nos, na Espanha, quantos existem, que vão em frente com 4 ou 5 religiosas idosas, até ao fim... E a mim esta situação faz vir a tentação que vai contra a esperança: «Mas, Senhor, o que acontece? Por que o ventre da vida consagrada se está a tornar tão estéril?». Algumas congregações fazem o experimento da «inseminação artificial». Como? Acolhem...: «Sim, vinde, vinde, vinde...». E depois surgem os problemas... Não. Deve-se acolher com seriedade! Discernir bem se é uma vocação verdadeira e ajudá-la a crescer. Creio que contra a tentação de perder a esperança, que nos dá esta esterilidade, devemos rezar mais. E orar sem desanimar. A mim faz muito bem ler o trecho da Escritura, no qual Ana — mãe de Samuel — rezava e pedia um filho. Rezava e movia os lábios, e pedia... E o velho sacerdote, que era meio cego e não via bem, pensava que estivesse embriagada. Mas o coração daquela mulher [dizia a Deus]: «Gostaria de ter um filho!». Pergunto-vos: o vosso coração, face a esta diminuição das vocações, reza com a mesma intensidade? «A nossa Congregação precisa de filhos, a nossa Congregação precisa de filhas...». O Senhor que foi tão generoso não deixará de cumprir a sua promessa. Mas devemos pedir-lhe, devemos bater à porta do seu coração. Porque existe um perigo — e isto é terrível mas tenho que o dizer — quando uma Congregação religiosa se dá conta de que não tem filhos nem netos e começa a tornar-se cada vez menor, apega-se ao dinheiro. E sabeis que o dinheiro é o esterco do diabo. Quando não podem ter a graça de receber vocações e filhos, pensam que o dinheiro salvará a vida; e pensam na velhice: que não falte isto nem aquilo... E assim não há esperança! A esperança está só no Senhor! O dinheiro nunca dará a ti! Pelo contrário: desanimar-te-á! Entendeste?
Desejava dizer-vos isto em vez de ler os boletins que o Cardeal Prefeito depois vos entregará...
Agradeço-vos muito o que fazeis. Aos consagrados — cada um com o seu carisma. E gostaria de evidenciar as consagradas, as irmãs. O que seria da Igreja se não existissem as religiosas? Já disse isto uma vez: quando vamos aos hospitais, aos colégios, às paróquias, aos bairros, às missões, homens e mulheres que dedicam a própria vida... Na última viagem à África — já contei isto numa audiência, penso — encontrei-me com uma religiosa italiana de 83 anos. Ela disse-me: «Desde quando tinha — não me recordo se me disse 23 ou 26 anos — vivo aqui. Sou enfermeira num hospital». Pensei: desde os 26 até aos 83 anos! «Escrevi aos meus parentes na Itália que não volto mais». Quando visitas um cemitério e vês que ali estão muitos missionários religiosos e religiosas falecidos com 40 anos porque adoeceram com a febre daqueles países, consumiram a vida... Dizes: estes são santos! São sementes! Devemos pedir ao Senhor que desça nestes cemitérios e veja o que fizeram os nossos antepassados e nos conceda mais vocações, porque temos necessidade delas!
Agradeço-vos esta visita, agradeço ao Cardeal Prefeito, ao Secretário, aos Subsecretários o que fizestes neste Ano da Vida Consagrada. E, por favor, não vos esqueçais a profecia da obediência, a proximidade, o próximo mais importante, o próximo mais próximo é o irmão e a irmã de comunidade e depois a esperança. Que o Senhor faça nascer filhos e filhas nas vossas Congregações. E rezai por mim. Obrigado!
Papa Francisco, 1 de Fevereiro de 2016
3. Discurso entregue pelo Papa:
Queridos irmãos e irmãs!
Estou feliz por me encontrar convosco no final deste Ano dedicado à vida consagrada.
Certo dia, Jesus, na sua misericórdia infinita, dirigiu-se a cada um de nós e pediu-nos, pessoalmente: «Vem e segue-me» (Mc 10, 21). Se estamos aqui é porque lhe respondemos «sim». Por vezes, tratou-se de uma adesão cheia de entusiasmo e de alegria, outras vezes sofrida, talvez incerta. Contudo, seguimo-lo, com generosidade, deixando-nos guiar por caminhos que nem teríamos imaginado. Compartilhamos com Ele momentos de intimidade: «Vinde comigo para um lugar [...] e descansai um pouco» (Mc 6, 31); momentos de serviço e de missão: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Lc 9, 13); até à sua cruz: «Se alguém quiser seguir-me [...] tome a sua cruz» (Lc 9, 23). Introduziu-nos na sua própria relação com o Pai, doou-nos o seu Espírito, dilatou o nosso coração segundo a medida do seu, ensinando-nos a amar os pobres e os pecadores. Seguimo-lo juntos, aprendendo d'Ele o seu serviço, o acolhimento, o perdão, a caridade fraterna. A nossa vida consagrada tem sentido porque permanecer com Ele e caminhar pelas estradas do mundo levando-o, nos conforma a Ele, nos faz ser Igreja, dom para a humanidade.
O Ano que estamos para concluir contribuiu para fazer resplandecer ainda mais na Igreja a beleza e a santidade da vida consagrada, intensificando nos consagrados a gratidão pela chamada e a alegria da resposta. Cada consagrado e consagrada teve a possibilidade de sentir uma clara percepção da própria identidade, e assim projectar-se no futuro com renovado ardor apostólico para escrever novas páginas de bem, no sulco do carisma dos Fundadores. Estamos gratos ao Senhor por quanto nos proporcionou viver neste Ano tão rico de iniciativas. E agradeço à Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, que preparou e realizou os grandes eventos aqui em Roma e no mundo.
O Ano concluiu-se, mas continua o nosso compromisso a permanecer fiéis à chamada recebida e a crescer no amor, no dom, na criatividade. Por esta razão, gostaria de vos deixar três palavras.
A primeira é profecia. É o vosso específico. Mas qual profecia esperam de vós a Igreja e o mundo? Em primeiro lugar sois chamados a proclamar, com a vossa vida ainda antes do que com as palavras, a realidade de Deus: dizer Deus. Se por vezes Ele é rejeitado ou marginalizado ou ignorado, devemos questionar-nos se talvez não fomos suficientemente transparentes ao seu Rosto, mostrando pelo contrário o nosso. O rosto de Deus é o de um Pai «compassivo e misericordioso, mui paciente e cheio de amor» (Sl 103, 8). Para o fazer conhecer é necessário ter com Ele uma relação pessoal; e por isso é preciso a capacidade de o adorar, de cultivar dia após dia a amizade com Ele, mediante o colóquio coração a coração na oração, especialmente na adoração silenciosa.
A segunda palavra que vos entrego é proximidade. Deus, em Jesus, fez-se próximo de cada homem e cada mulher: compartilhou a alegria dos esposos em Caná da Galileia e a angústia da viúva de Naim; entrou na casa de Jairo atingida pela morte e na casa de Betânia perfumada de nardo; carregou as doenças e os sofrimentos, até dar a sua vida para a redenção de todos. Seguir Cristo quer dizer ir lá onde Ele foi: carregar sobre si, como o bom Samaritano, o ferido que encontrarmos ao longo da estrada; ir à procura da ovelha perdida. Ser, como Jesus, próximos das pessoas, compartilhar as suas alegrias e as suas dores; mostrar, com o nosso amor, o rosto paterno de Deus e a carícia materna da Igreja. Que nunca ninguém vos sinta distantes, destacados, fechados e portanto estéreis. Cada um de vós está chamado a servir os irmãos, seguindo o próprio carisma; alguns com a oração, outros com a catequese, alguns com o ensinamento, outros com o cuidado aos doentes ou aos pobres, alguns anunciando o Evangelho, outros cumprindo as diversas obras de misericórdia. É importante não viver para si mesmo, assim como Jesus não viveu para si mesmo, mas para o Pai e por nós.
Chegamos assim à terceira palavra: esperança. Testemunhando Deus e o seu amor misericordioso, com a graça de Cristo podeis infundir esperança nesta nossa humanidade marcada por diversos motivos de ansiedade e temor e por vezes tentada ao desânimo. Podeis fazer sentir a força renovadora das bem-aventuranças, da honestidade, da compaixão; o valor da bondade, da vida simples, essencial, cheia de significado. E podeis alimentar a esperança também na Igreja. Penso, por exemplo, no diálogo ecuménico. O encontro de há um ano entre consagrados das diversas confissões cristãs foi uma bela novidade, que mereceria ser levada em frente. O testemunho carismático e profético da vida dos consagrados, na variedade das suas formas, pode ajudar a reconhecer-nos todos mais unidos e a favorecer a plena comunhão.
Queridos irmãos e irmãs, no vosso apostolado quotidiano, não vos deixeis influenciar pela idade nem pelo número. O que mais conta é a capacidade de repetir o «sim» inicial da chamada de Jesus que continua a fazer-se sentir, de forma sempre nova, em cada fase da vida. A sua chamada e a nossa resposta mantêm viva a nossa esperança. Profecia, proximidade, esperança. Vivendo assim, tereis no coração a alegria, sinal distintivo dos seguidores de Jesus e com maior razão dos consagrados. E a vossa vida será atraente para tantas e tantos, para a glória de Deus e para a beleza da Esposa de Cristo, a Igreja.
Queridos irmãos e irmãs, agradeço ao Senhor aquilo que sois e fazeis na Igreja e no mundo. Abençoo-vos e confio-vos à nossa Mãe. E por favor, não vos esqueçais de rezar por mim.
Papa Francisco
Jubileu da Misericórdia
 A 11 de abril de 2015, foi proclamado oficialmente pelo Papa Francisco o Jubileu da Misericórdia que se iniciará a 8 de Dezembro de 2015 e terminará a 20 de Novembro de 2016.
A 11 de abril de 2015, foi proclamado oficialmente pelo Papa Francisco o Jubileu da Misericórdia que se iniciará a 8 de Dezembro de 2015 e terminará a 20 de Novembro de 2016.
Junto da Porta Santa na Basílica de S. Pedro foi publicada a Bula O Rosto da Misericórdia. Já no interior da Basílica, nas vésperas do Domingo da Divina Misericórdia, o Santo Padre afirmou que este não é o "tempo da distração" mas de os cristãos estarem vigilantes e olharem para o "essencial", este é o tempo da Igreja "ser sinal e instrumento da misericórdia do Pai". Aqui fica o texto integral Misericordiae Vultus (O Rosto da Misericórdia).
Bula de proclamação do Jubileu extraordinário da Misericórdia.
Francisco, Bispo de Roma, servo do servos de Deus, a quantos lerem esta Carta Graça, Misericórdia e Paz
1. Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré. O Pai, "rico em misericórdia" (Ef 2, 4), depois de ter revelado o seu nome a Moisés como "Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e fidelidade" (Ex 34, 6), não cessou de dar a conhecer, de vários modos e em muitos momentos da história, a sua natureza divina. Na "plenitude do tempo" (Gl 4, 4), quando tudo estava pronto segundo o seu plano de salvação, mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor. Quem O vê, vê o Pai (cf. Jo 14, 9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa,[1] Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus.
2. Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o acto último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.
3. Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foi por isso que proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes.
O Ano Santo abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição. Esta festa litúrgica indica o modo de agir de Deus desde os primórdios da nossa história. Depois do pecado de Adão e Eva, Deus não quis deixar a humanidade sozinha e à mercê do mal. Por isso, pensou e quis Maria santa e imaculada no amor (cf. Ef 1, 4), para que Se tornasse a Mãe do Redentor do homem. Perante a gravidade do pecado, Deus responde com a plenitude do perdão. A misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado, e ninguém pode colocar um limite ao amor de Deus que perdoa. Na festa da Imaculada Conceição, terei a alegria de abrir a Porta Santa. Será então uma Porta da Misericórdia, onde qualquer pessoa que entre poderá experimentar o amor de Deus que consola, perdoa e dá esperança.
No domingo seguinte, o Terceiro Domingo de Advento, abrir-se-á a Porta Santa na Catedral de Roma, a Basílica de São João de Latrão. E em seguida será aberta a Porta Santa nas outras Basílicas Papais. Estabeleço que no mesmo domingo, em cada Igreja particular – na Catedral, que é a Igreja-Mãe para todos os fiéis, ou na Concatedral ou então numa Igreja de significado especial – se abra igualmente, durante todo o Ano Santo, uma Porta da Misericórdia. Por opção do Ordinário, a mesma poderá ser aberta também nos Santuários, meta de muitos peregrinos que frequentemente, nestes lugares sagrados, se sentem tocados no coração pela graça e encontram o caminho da conversão. Assim, cada Igreja particular estará directamente envolvida na vivência deste Ano Santo como um momento extraordinário de graça e renovação espiritual. Portanto o Jubileu será celebrado, quer em Roma quer nas Igrejas particulares, como sinal visível da comunhão da Igreja inteira.
4. Escolhi a data de 8 de Dezembro, porque é cheia de significado na história recente da Igreja. Com efeito, abrirei a Porta Santa no cinquentenário da conclusão do Concílio Ecuménico Vaticano II. A Igreja sente a necessidade de manter vivo aquele acontecimento. Começava então, para ela, um percurso novo da sua história. Os Padres, reunidos no Concílio, tinham sentido forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a exigência de falar de Deus aos homens do seu tempo de modo mais compreensível. Derrubadas as muralhas que, por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa cidadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova. Uma nova etapa na evangelização de sempre. Um novo compromisso para todos os cristãos de testemunharem, com mais entusiasmo e convicção, a sua fé. A Igreja sentia a responsabilidade de ser, no mundo, o sinal vivo do amor do Pai.
Voltam à mente aquelas palavras, cheias de significado, que São João XXIII pronunciou na abertura do Concílio para indicar a senda a seguir: "Nos nossos dias, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade. (...) A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecuménico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade com os filhos dela separados".[2] E, no mesmo horizonte, havia de colocar-se o Beato Paulo VI, que assim falou na conclusão do Concílio: "Desejamos notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a caridade. (...) Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. (...) Uma corrente de interesse e admiração saiu do Concílio sobre o mundo actual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridade e verdade exigiam, mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro. Assim se fez, para que, em vez de diagnósticos desalentadores, se dessem remédios cheios de esperança; para que o Concílio falasse ao mundo actual não com presságios funestos mas com mensagens de esperança e palavras de confiança. Não só respeitou mas também honrou os valores humanos, apoiou todas as suas iniciativas e, depois de os purificar, aprovou todos os seus esforços. (...) Uma outra coisa, julgamos digna de consideração. Toda esta riqueza doutrinal orienta-se apenas a isto: servir o homem, em todas as circunstâncias da sua vida, em todas as suas fraquezas, em todas as suas necessidades".[3]
Com estes sentimentos de gratidão pelo que a Igreja recebeu e de responsabilidade quanto à tarefa que nos espera, atravessaremos a Porta Santa com plena confiança de ser acompanhados pela força do Senhor Ressuscitado, que continua a sustentar a nossa peregrinação. O Espírito Santo, que conduz os passos dos crentes de forma a cooperarem para a obra de salvação realizada por Cristo, seja guia e apoio do povo de Deus a fim de o ajudar a contemplar o rosto da misericórdia. [4]
5. O Ano Jubilar terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016. Naquele dia, ao fechar a Porta Santa, animar-nos-ão, antes de tudo, sentimentos de gratidão e agradecimento à Santíssima Trindade por nos ter concedido este tempo extraordinário de graça. Confiaremos a vida da Igreja, a humanidade inteira e o universo imenso à Realeza de Cristo, para que derrame a sua misericórdia, como o orvalho da manhã, para a construção duma história fecunda com o compromisso de todos no futuro próximo. Quanto desejo que os anos futuros sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoas levando-lhes a bondade e a ternura de Deus! A todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós.
6. "É próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua omnipotência".[5] Estas palavras de São Tomás de Aquino mostram como a misericórdia divina não seja, de modo algum, um sinal de fraqueza, mas antes a qualidade da omnipotência de Deus. É por isso que a liturgia, numa das suas colectas mais antigas, convida a rezar assim: "Senhor, que dais a maior prova do vosso poder quando perdoais e Vos compadeceis...»[6] Deus permanecerá para sempre na história da humanidade como Aquele que está presente, Aquele que é próximo, providente, santo e misericordioso.
"Paciente e misericordioso" é o binómio que aparece, frequentemente, no Antigo Testamento para descrever a natureza de Deus. O facto de Ele ser misericordioso encontra um reflexo concreto em muitas acções da história da salvação, onde a sua bondade prevalece sobre o castigo e a destruição. Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir divino: "É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e ternura" (103/102, 3-4). E outro Salmo atesta, de forma ainda mais explícita, os sinais concretos da misericórdia: "O Senhor liberta os prisioneiros. O Senhor dá vista aos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama o homem justo. O Senhor protege os que vivem em terra estranha e ampara o órfão e a viúva, mas entrava o caminho aos pecadores" (146/145, 7-9). E, para terminar, aqui estão outras expressões do Salmista: "[O Senhor] cura os de coração atribulado e trata-lhes as feridas. (...) O Senhor ampara os humildes, mas abate os malfeitores até ao chão" (147/146, 3.6). Em suma, a misericórdia de Deus não é uma ideia abstracta mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas vísceras. É verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor "visceral". Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão.
7. "Eterna é a sua misericórdia": tal é o refrão que aparece em cada versículo do Salmo 136, ao mesmo tempo que se narra a história da revelação de Deus. Em virtude da misericórdia, todos os acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valor salvífico profundo. A misericórdia torna a história de Deus com Israel uma história da salvação. O facto de repetir continuamente "eterna é a sua misericórdia", como faz o Salmo, parece querer romper o círculo do espaço e do tempo para inserir tudo no mistério eterno do amor. É como se se quisesse dizer que o homem, não só na história mas também pela eternidade, estará sempre sob o olhar misericordioso do Pai. Não é por acaso que o povo de Israel tenha querido inserir este Salmo – o "grande hallel", como lhe chamam – nas festas litúrgicas mais importantes.
Antes da Paixão, Jesus rezou ao Pai com este Salmo da misericórdia. Assim o atesta o evangelista Mateus quando afirma que "depois de cantarem os salmos" (26, 30), Jesus e os discípulos saíram para o Monte das Oliveiras. Enquanto instituía a Eucaristia, como memorial perpétuo d'Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente este acto supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Ele a sua paixão e morte, ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz. O facto de saber que o próprio Jesus rezou com este Salmo torna-o, para nós cristãos, ainda mais importante e compromete-nos a assumir o refrão na nossa oração de louvor diária: "eterna é a sua misericórdia".
8. Com o olhar fixo em Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da Santíssima Trindade. A missão, que Jesus recebeu do Pai, foi a de revelar o mistério do amor divino na sua plenitude. "Deus é amor" (1 Jo 4, 8.16): afirma-o, pela primeira e única vez em toda a Escritura, o evangelista João. Agora este amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram d'Ele, manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n'Ele fala de misericórdia. N'Ele, nada há que seja desprovido de compaixão.
Vendo que a multidão de pessoas que O seguia estava cansada e abatida, Jesus sentiu, no fundo do coração, uma intensa compaixão por elas (cf. Mt 9, 36). Em virtude deste amor compassivo, curou os doentes que Lhe foram apresentados (cf. Mt 14, 14) e, com poucos pães e peixes, saciou grandes multidões (cf. Mt 15, 37). Em todas as circunstâncias, o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no coração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticas que tinham. Quando encontrou a viúva de Naim que levava o seu único filho a sepultar, sentiu grande compaixão pela dor imensa daquela mãe em lágrimas e entregou-lhe de novo o filho, ressuscitando-o da morte (cf. Lc 7, 15). Depois de ter libertado o endemoninhado de Gerasa, confia-lhe esta missão: "Conta tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti" (Mc 5, 19). A própria vocação de Mateus se insere no horizonte da misericórdia. Ao passar diante do posto de cobrança dos impostos, os olhos de Jesus fixaram-se nos de Mateus. Era um olhar cheio de misericórdia que perdoava os pecados daquele homem e, vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o, a ele pecador e publicano, para se tornar um dos Doze. São Beda o Venerável, ao comentar esta cena do Evangelho, escreveu que Jesus olhou Mateus com amor misericordioso e escolheu-o: miserando atque eligendo.[7] Sempre me causou impressão esta frase, a ponto de a tomar para meu lema.
9. Nas parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como a dum Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada a recusa com a compaixão e a misericórdia. Conhecemos estas parábolas, três em especial: as da ovelha extraviada e da moeda perdida, e a do pai com os seus dois filhos (cf. Lc 15, 1-32). Nestas parábolas, Deus é apresentado sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos o núcleo do Evangelho e da nossa fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o coração de amor e consola com o perdão.
Temos depois outra parábola da qual tiramos uma lição para o nosso estilo de vida cristã. Interpelado pela pergunta de Pedro sobre quantas vezes fosse necessário perdoar, Jesus respondeu: "Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete" (Mt 18, 22) e contou a parábola do "servo sem compaixão". Este, convidado pelo senhor a devolver uma grande quantia, suplica-lhe de joelhos e o senhor perdoa-lhe a dívida. Mas, imediatamente depois, encontra outro servo como ele, que lhe devia poucos centésimos; este suplica-lhe de joelhos que tenha piedade, mas aquele recusa-se e fá-lo meter na prisão. Então o senhor, tendo sabido do facto, zanga-se muito e, convocando aquele servo, diz-lhe: "Não devias também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti?" (Mt 18, 33). E Jesus concluiu: "Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo do coração" (Mt 18, 35).
A parábola contém um ensinamento profundo para cada um de nós. Jesus declara que a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco. O perdão das ofensas torna-se a expressão mais evidente do amor misericordioso e, para nós cristãos, é um imperativo de que não podemos prescindir. Tantas vezes, como parece difícil perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração. Deixar de lado o ressentimento, a raiva, a violência e a vingança são condições necessárias para se viver feliz. Acolhamos, pois, a exortação do Apóstolo: "Que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento" (Ef 4, 26). E sobretudo escutemos a palavra de Jesus que colocou a misericórdia como um ideal de vida e como critério de credibilidade para a nossa fé: "Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mt 5, 7) é a bem-aventurança a que devemos inspirar-nos, com particular empenho, neste Ano Santo.
Na Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para connosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás, o amor nunca poderia ser uma palavra abstracta. Por sua própria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam na actividade de todos os dias. A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós. Ele sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser misericordiosos uns para com os outros.
10. A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja "vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia".[8] Talvez, demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia. Por um lado, a tentação de pretender sempre e só a justiça fez esquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas a Igreja precisa de ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa. Por outro lado, é triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própria palavra parece desaparecer. Todavia, sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador. Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança.
11. Não podemos esquecer o grande ensinamento que ofereceu São João Paulo II com a sua segunda encíclica, a Dives in misericordia, que então surgiu inesperada suscitando a surpresa de muitos pelo tema que era abordado. Desejo recordar especialmente dois trechos. No primeiro deles, o Santo Papa assinalava o esquecimento em que caíra o tema da misericórdia na cultura dos nossos dias: "A mentalidade contemporânea, talvez mais que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da técnica nunca antes verificado na história, se tornou senhor da terra, a subjugou e a dominou (cf. Gn 1, 28). Um tal domínio sobre a terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para a misericórdia. (...) Por esse motivo, na hodierna situação da Igreja e do mundo, muitos homens e muitos ambientes guiados por um vivo sentido de fé, voltam-se quase espontaneamente, por assim dizer, para a misericórdia de Deus".[9]
Além disso, São João Paulo II motivava assim a urgência de anunciar e testemunhar a misericórdia no mundo contemporâneo: "Ela é ditada pelo amor para com o homem, para com tudo o que é humano e que, segundo a intuição de grande parte dos contemporâneos, está ameaçado por um perigo imenso. O próprio mistério de Cristo (...) obriga-me igualmente a proclamar a misericórdia como amor misericordioso de Deus, revelada também no mistério de Cristo. Ele me impele ainda a apelar para esta misericórdia e a implorá-la nesta fase difícil e crítica da história da Igreja e do mundo".[10] Tal ensinamento é hoje mais actual do que nunca e merece ser retomado neste Ano Santo. Acolhamos novamente as suas palavras: "A Igreja vive uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora".[11]
12. A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma acção pastoral renovada. É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia.
A primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, deste amor que vai até ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia.
13. Queremos viver este Ano Jubilar à luz desta palavra do Senhor: Misericordiosos como o Pai. O evangelista refere o ensinamento de Jesus, que diz: "Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso" (Lc 6, 36). É um programa de vida tão empenhativo como rico de alegria e paz. O imperativo de Jesus é dirigido a quantos ouvem a sua voz (cf. Lc 6, 27). Portanto, para ser capazes de misericórdia, devemos primeiro pôr-nos à escuta da Palavra de Deus. Isso significa recuperar o valor do silêncio, para meditar a Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possível contemplar a misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida.
14. A peregrinação é um sinal peculiar no Ano Santo, enquanto ícone do caminho que cada pessoa realiza na sua existência. A vida é uma peregrinação e o ser humano é viator, um peregrino que percorre uma estrada até à meta anelada. Também para chegar à Porta Santa, tanto em Roma como em cada um dos outros lugares, cada pessoa deverá fazer, segundo as próprias forças, uma peregrinação. Esta será sinal de que a própria misericórdia é uma meta a alcançar que exige empenho e sacrifício. Por isso, a peregrinação há-de servir de estímulo à conversão: ao atravessar a Porta Santa, deixar-nos-emos abraçar pela misericórdia de Deus e comprometer-nos-emos a ser misericordiosos com os outros como o Pai o é connosco.
O Senhor Jesus indica as etapas da peregrinação através das quais é possível atingir esta meta: "Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco" (Lc 6, 37-38). Ele começa por dizer para não julgar nem condenar. Se uma pessoa não quer incorrer no juízo de Deus, não pode tornar-se juiz do seu irmão. É que os homens, no seu juízo, limitam-se a ler a superfície, enquanto o Pai vê o íntimo. Que grande mal fazem as palavras, quando são movidas por sentimentos de ciúme e inveja! Falar mal do irmão, na sua ausência, equivale a deixá-lo mal visto, a comprometer a sua reputação e deixá-lo à mercê das murmurações. Não julgar nem condenar significa, positivamente, saber individuar o que há de bom em cada pessoa e não permitir que venha a sofrer pelo nosso juízo parcial e a nossa pretensão de saber tudo. Mas isto ainda não é suficiente para se exprimir a misericórdia. Jesus pede também para perdoar e dar. Ser instrumentos do perdão, porque primeiro o obtivemos nós de Deus. Ser generosos para com todos, sabendo que também Deus derrama a sua benevolência sobre nós com grande magnanimidade.
Misericordiosos como o Pai é, pois, o "lema" do Ano Santo. Na misericórdia, temos a prova de como Deus ama. Ele dá tudo de Si mesmo, para sempre, gratuitamente e sem pedir nada em troca. Vem em nosso auxílio, quando O invocamos. É significativo que a oração diária da Igreja comece com estas palavras: "Deus, vinde em nosso auxílio! Senhor, socorrei-nos e salvai-nos" (Sal 70/69, 2). O auxílio que invocamos é já o primeiro passo da misericórdia de Deus para connosco. Ele vem para nos salvar da condição de fraqueza em que vivemos. E a ajuda d'Ele consiste em fazer-nos sentir a sua presença e proximidade. Dia após dia, tocados pela sua compaixão, podemos também nós tornar-nos compassivos para com todos.
15. Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo actual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las com a misericórdia e tratá-las com a solidariedade e a atenção devidas. Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói. Abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença que frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo.
Não podemos escapar às palavras do Senhor, com base nas quais seremos julgados: se demos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede; se acolhemos o estrangeiro e vestimos quem está nu; se reservamos tempo para visitar quem está doente e preso (cf. Mt 25, 31-45). De igual modo ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar da dúvida, que faz cair no medo e muitas vezes é fonte de solidão; se fomos capazes de vencer a ignorância em que vivem milhões de pessoas, sobretudo as crianças desprovidas da ajuda necessária para se resgatarem da pobreza; se nos detivemos junto de quem está sozinho e aflito; se perdoamos a quem nos ofende e rejeitamos todas as formas de ressentimento e ódio que levam à violência; se tivemos paciência, a exemplo de Deus que é tão paciente connosco; enfim se, na oração, confiamos ao Senhor os nossos irmãos e irmãs. Em cada um destes "mais pequeninos", está presente o próprio Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga ... a fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós. Não esqueçamos as palavras de São João da Cruz: "Ao entardecer desta vida, examinar-nos-ão no amor".[12]
16. No Evangelho de Lucas, encontramos outro aspecto importante para viver, com fé, o Jubileu. Conta o evangelista que Jesus voltou a Nazaré e ao sábado, como era seu costume, entrou na sinagoga. Chamaram-No para ler a Escritura e comentá-la. A passagem era aquela do profeta Isaías onde está escrito: "O espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a boa-nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros; para proclamar um ano de misericórdia do Senhor" (61,1-2). "Um ano de misericórdia": isto é o que o Senhor anuncia e que nós desejamos viver. Este Ano Santo traz consigo a riqueza da missão de Jesus que ressoa nas palavras do Profeta: levar uma palavra e um gesto de consolação aos pobres, anunciar a libertação a quantos são prisioneiros das novas escravidões da sociedade contemporânea, devolver a vista a quem já não consegue ver porque vive curvado sobre si mesmo, e restituir dignidade àqueles que dela se viram privados. A pregação de Jesus torna-se novamente visível nas respostas de fé que o testemunho dos cristãos é chamado a dar. Acompanhem-nos as palavras do Apóstolo: "Quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria" (Rm 12, 8).
17. A Quaresma deste Ano Jubilar seja vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus. Quantas páginas da Sagrada Escritura se podem meditar, nas semanas da Quaresma, para redescobrir o rosto misericordioso do Pai! Com as palavras do profeta Miqueias, podemos também nós repetir: Vós, Senhor, sois um Deus que tira a iniquidade e perdoa o pecado, que não Se obstina na ira mas Se compraz em usar de misericórdia. Vós, Senhor, voltareis para nós e tereis compaixão do vosso povo. Apagareis as nossas iniquidades e lançareis ao fundo do mar todos os nossos pecados (cf. 7, 18-19).
As páginas do profeta Isaías poderão ser meditadas, de forma mais concreta, neste tempo de oração, jejum e caridade. "O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente, e a glória do Senhor atrás de ti. Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá, pedirás auxílio e te dirá: "Aqui estou!" Se retirares da tua vida toda a opressão, o gesto ameaçador e o falar ofensivo, se repartires o teu pão com o faminto e matares a fome ao pobre, a tua luz brilhará na escuridão, e as tuas trevas tornar-se-ão como o meio-dia. O Senhor te guiará constantemente, saciará a tua alma no árido deserto, dará vigor aos teus ossos. Serás como um jardim bem regado, como uma fonte de águas inesgotáveis" (58, 6-11).
A iniciativa "24 horas para o Senhor", que será celebrada na sexta-feira e no sábado anteriores ao IV Domingo da Quaresma, deve ser incrementada nas dioceses. Há muitas pessoas – e, em grande número, jovens – que estão a aproximar-se do sacramento da Reconciliação e que frequentemente, nesta experiência, reencontram o caminho para voltar ao Senhor, viver um momento de intensa oração e redescobrir o sentido da sua vida. Com convicção, ponhamos novamente no centro o sacramento da Reconciliação, porque permite tocar sensivelmente a grandeza da misericórdia. Será, para cada penitente, fonte de verdadeira paz interior.
Não me cansarei jamais de insistir com os confessores para que sejam um verdadeiro sinal da misericórdia do Pai. Ser confessor não se improvisa. Tornamo-nos tal quando começamos, nós mesmos, por nos fazer penitentes em busca do perdão. Nunca esqueçamos que ser confessor significa participar da mesma missão de Jesus e ser sinal concreto da continuidade de um amor divino que perdoa e salva. Cada um de nós recebeu o dom do Espírito Santo para o perdão dos pecados; disto somos responsáveis. Nenhum de nós é senhor do sacramento, mas apenas servo fiel do perdão de Deus. Cada confessor deverá acolher os fiéis como o pai na parábola do filho pródigo: um pai que corre ao encontro do filho, apesar de lhe ter dissipado os bens. Os confessores são chamados a estreitar a si aquele filho arrependido que volta a casa e a exprimir a alegria por o ter reencontrado. Não nos cansemos de ir também ao encontro do outro filho, que ficou fora incapaz de se alegrar, para lhe explicar que o seu juízo severo é injusto e sem sentido diante da misericórdia do Pai que não tem limites. Não hão-de fazer perguntas impertinentes, mas como o pai da parábola interromperão o discurso preparado pelo filho pródigo, porque saberão individuar, no coração de cada penitente, a invocação de ajuda e o pedido de perdão. Em suma, os confessores são chamados a ser sempre e por todo o lado, em cada situação e apesar de tudo, o sinal do primado da misericórdia.
18. Na Quaresma deste Ano Santo, é minha intenção enviar os Missionários da Misericórdia. Serão um sinal da solicitude materna da Igreja pelo povo de Deus, para que entre em profundidade na riqueza deste mistério tão fundamental para a fé. Serão sacerdotes a quem darei autoridade de perdoar mesmo os pecados reservados à Sé Apostólica, para que se torne evidente a amplitude do seu mandato. Serão sobretudo sinal vivo de como o Pai acolhe a todos aqueles que andam à procura do seu perdão. Serão missionários da misericórdia, porque se farão, junto de todos, artífices dum encontro cheio de humanidade, fonte de libertação, rico de responsabilidade para superar os obstáculos e retomar a vida nova do Baptismo. Na sua missão, deixar-se-ão guiar pelas palavras do Apóstolo: "Deus encerrou a todos na desobediência, para com todos usar de misericórdia" (Rm 11, 32). Na verdade todos, sem excluir ninguém, estão chamados a acolher o apelo à misericórdia. Os missionários vivam esta chamada, sabendo que podem fixar o olhar em Jesus, "Sumo Sacerdote misericordioso e fiel" (Hb 2, 17).
Peço aos irmãos bispos que convidem e acolham estes Missionários, para que sejam, antes de tudo, pregadores convincentes da misericórdia. Organizem-se, nas dioceses, "missões populares", de modo que estes Missionários sejam anunciadores da alegria do perdão. Seja-lhes pedido que celebrem o sacramento da Reconciliação para o povo, para que o tempo de graça, concedido neste Ano Jubilar, permita a tantos filhos afastados encontrar de novo o caminho para a casa paterna. Os pastores, especialmente durante o tempo forte da Quaresma, sejam solícitos em convidar os fiéis a aproximar-se "do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e encontrar graça" (Hb 4, 16).
19. Que a palavra do perdão possa chegar a todos e a chamada para experimentar a misericórdia não deixe ninguém indiferente. O meu convite à conversão dirige-se, com insistência ainda maior, àquelas pessoas que estão longe da graça de Deus pela sua conduta de vida. Penso de modo particular nos homens e mulheres que pertencem a um grupo criminoso, seja ele qual for. Para vosso bem, peço-vos que mudeis de vida. Peço-vo-lo em nome do Filho de Deus que, embora combatendo o pecado, nunca rejeitou qualquer pecador. Não caiais na terrível cilada de pensar que a vida depende do dinheiro e que, à vista dele, tudo o mais se torna desprovido de valor e dignidade. Não passa de uma ilusão. Não levamos o dinheiro connosco para o além. O dinheiro não nos dá a verdadeira felicidade. A violência usada para acumular dinheiro que transuda sangue não nos torna poderosos nem imortais. Para todos, mais cedo ou mais tarde, vem o juízo de Deus, do qual ninguém pode escapar.
O mesmo convite chegue também às pessoas fautoras ou cúmplices de corrupção. Esta praga putrefacta da sociedade é um pecado grave que brada aos céus, porque mina as próprias bases da vida pessoal e social. A corrupção impede de olhar para o futuro com esperança, porque, com a sua prepotência e avidez, destrói os projectos dos fracos e esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nos gestos diários para se estender depois aos escândalos públicos. A corrupção é uma contumácia no pecado, que pretende substituir Deus com a ilusão do dinheiro como forma de poder. É uma obra das trevas, alimentada pela suspeita e a intriga. Corruptio optimi pessima: dizia, com razão, São Gregório Magno, querendo indicar que ninguém pode sentir-se imune desta tentação. Para a erradicar da vida pessoal e social são necessárias prudência, vigilância, lealdade, transparência, juntamente com a coragem da denúncia. Se não se combate abertamente, mais cedo ou mais tarde torna-nos cúmplices e destrói-nos a vida.
Este é o momento favorável para mudar de vida! Este é o tempo de se deixar tocar o coração. Diante do mal cometido, mesmo crimes graves, é o momento de ouvir o pranto das pessoas inocentes espoliadas dos bens, da dignidade, dos afectos, da própria vida. Permanecer no caminho do mal é fonte apenas de ilusão e tristeza. A verdadeira vida é outra coisa. Deus não se cansa de estender a mão. Está sempre disposto a ouvir, e eu também estou, tal como os meus irmãos bispos e sacerdotes. Basta acolher o convite à conversão e submeter-se à justiça, enquanto a Igreja oferece a misericórdia.
20. Neste contexto, não será inútil recordar a relação entre justiça e misericórdia. Não são dois aspectos em contraste entre si, mas duas dimensões duma única realidade que se desenvolve gradualmente até atingir o seu clímax na plenitude do amor. A justiça é um conceito fundamental para a sociedade civil, normalmente quando se faz referimento a uma ordem jurídica através da qual se aplica a lei. Por justiça entende-se também que a cada um deve ser dado o que lhe é devido. Na Bíblia, alude-se muitas vezes à justiça divina, e a Deus como juiz. Habitualmente é entendida como a observância integral da Lei e o comportamento de todo o bom judeu conforme aos mandamentos dados por Deus. Esta visão, porém, levou não poucas vezes a cair no legalismo, mistificando o sentido original e obscurecendo o valor profundo que a justiça possui. Para superar a perspectiva legalista, seria preciso lembrar que, na Sagrada Escritura, a justiça é concebida essencialmente como um abandonar-se confiante à vontade de Deus.
Por sua vez, Jesus fala mais vezes da importância da fé que da observância da lei. É neste sentido que devemos compreender as suas palavras, quando, encontrando-Se à mesa com Mateus e outros publicanos e pecadores, disse aos fariseus que O acusavam por isso mesmo: "Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores" (Mt 9, 13). Diante da visão duma justiça como mera observância da lei, que julga dividindo as pessoas em justos e pecadores, Jesus procura mostrar o grande dom da misericórdia que busca os pecadores para lhes oferecer o perdão e a salvação. Compreende-se que Jesus, por causa desta sua visão tão libertadora e fonte de renovação, tenha sido rejeitado pelos fariseus e os doutores da lei. Estes, para ser fiéis à lei, limitavam-se a colocar pesos sobre os ombros das pessoas, anulando porém a misericórdia do Pai. O apelo à observância da lei não pode obstaculizar a atenção às necessidades que afectam a dignidade das pessoas.
A propósito, é muito significativo o apelo que Jesus faz ao texto do profeta Oseias: "Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios" (6, 6). Jesus afirma que, a partir de agora, a regra de vida dos seus discípulos deverá ser aquela que prevê o primado da misericórdia, como Ele mesmo dá testemunho partilhando a refeição com os pecadores. A misericórdia revela-se, mais uma vez, como dimensão fundamental da missão de Jesus. É um verdadeiro desafio posto aos seus interlocutores, que se contentavam com o respeito formal da lei. Jesus, pelo contrário, vai além da lei, a sua partilha da mesa com aqueles que a lei considerava pecadores permite compreender até onde chega a sua misericórdia.
Também o apóstolo Paulo fez um percurso semelhante. Antes de encontrar Cristo no caminho de Damasco, a sua vida era dedicada a servir de maneira irrepreensível a justiça da lei (cf. Fl 3, 6). A conversão a Cristo levou-o a inverter a sua visão, a ponto de afirmar na Carta aos Gálatas: "Também nós acreditámos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei" (2, 16). A sua compreensão da justiça muda radicalmente: Paulo agora põe no primeiro lugar a fé, e já não a lei. Não é a observância da lei que salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdia que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos pela escravidão do pecado e todas as suas consequências. A justiça de Deus é o seu perdão (cf. Sl 51/50, 11-16).
21. A misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar. A experiência do profeta Oseias ajuda-nos, mostrando-nos a superação da justiça na linha da misericórdia. A época em que viveu este profeta conta-se entre as mais dramáticas da história do povo judeu. O Reino está próximo da destruição; o povo não permaneceu fiel à aliança, afastou-se de Deus e perdeu a fé dos pais. Segundo uma lógica humana, é justo que Deus pense em rejeitar o povo infiel: não observou o pacto estipulado e, consequentemente, merece a devida pena, ou seja, o exílio. Assim o atestam as palavras do profeta: "Não voltará para o Egipto, mas a Assíria será o seu rei, porque recusaram converter-se" (Os 11, 5). E todavia, depois desta reacção que faz apelo à justiça, o profeta muda radicalmente a sua linguagem e revela o verdadeiro rosto de Deus: "O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas. Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti e não me deixo levar pela ira" (11, 8-9). Santo Agostinho, de certo modo comentando as palavras do profeta, diz: "É mais fácil que Deus contenha a ira do que a misericórdia".[13] É mesmo assim! A ira de Deus dura um instante, ao passo que a sua misericórdia é eterna.
Se Deus Se detivesse na justiça, deixaria de ser Deus; seria como todos os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isto não significa desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes pelo contrário! Quem erra, deve descontar a pena; só que isto não é o fim, mas o início da conversão, porque se experimenta a ternura do perdão. Deus não rejeita a justiça. Ele engloba-a e supera-a num evento superior onde se experimenta o amor, que está na base duma verdadeira justiça. Devemos prestar muita atenção àquilo que escreve Paulo, para não cair no mesmo erro que o apóstolo censurava nos judeus seus contemporâneos: "Por não terem reconhecido a justiça que vem de Deus e terem procurado estabelecer a sua própria justiça, não se submeteram à justiça de Deus. É que o fim da Lei é Cristo, para que, deste modo, a justiça seja concedida a todo o que tem fé" (Rm 10, 3-4). Esta justiça de Deus é a misericórdia concedida a todos como graça, em virtude da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Portanto a Cruz de Cristo é o juízo de Deus sobre todos nós e sobre o mundo, porque nos oferece a certeza do amor e da vida nova.
22. O Jubileu inclui também o referimento à indulgência. Esta, no Ano Santo da Misericórdia, adquire uma relevância particular. O perdão de Deus para os nossos pecados não conhece limites. Na morte e ressurreição de Jesus Cristo, Deus torna evidente este seu amor que chega ao ponto de destruir o pecado dos homens. É possível deixar-se reconciliar com Deus através do mistério pascal e da mediação da Igreja. Por isso, Deus está sempre disponível para o perdão, não Se cansando de o oferecer de maneira sempre nova e inesperada. No entanto todos nós fazemos experiência do pecado. Sabemos que somos chamados à perfeição (cf. Mt 5, 48), mas sentimos fortemente o peso do pecado. Ao mesmo tempo que notamos o poder da graça que nos transforma, experimentamos também a força do pecado que nos condiciona. Apesar do perdão, carregamos na nossa vida as contradições que são consequência dos nossos pecados. No sacramento da Reconciliação, Deus perdoa os pecados, que são verdadeiramente apagados; mas o cunho negativo que os pecados deixaram nos nossos comportamentos e pensamentos permanece. A misericórdia de Deus, porém, é mais forte também do que isso. Ela torna-se indulgência do Pai que, através da Esposa de Cristo, alcança o pecador perdoado e liberta-o de qualquer resíduo das consequências do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no amor em vez de recair no pecado.
A Igreja vive a comunhão dos Santos. Na Eucaristia, esta comunhão, que é dom de Deus, realiza-se como união espiritual que nos une, a nós crentes, com os Santos e Beatos cujo número é incalculável (Ap 7, 4). A sua santidade vem em ajuda da nossa fragilidade, e assim a Mãe-Igreja, com a sua oração e a sua vida, é capaz de acudir à fraqueza de uns com a santidade de outros. Portanto viver a indulgência no Ano Santo significa aproximar-se da misericórdia do Pai, com a certeza de que o seu perdão cobre toda a vida do crente. A indulgência é experimentar a santidade da Igreja que participa em todos os benefícios da redenção de Cristo, para que o perdão se estenda até às últimas consequências aonde chega o amor de Deus. Vivamos intensamente o Jubileu, pedindo ao Pai o perdão dos pecados e a indulgência misericordiosa em toda a sua extensão.
23. A misericórdia possui uma valência que ultrapassa as fronteiras da Igreja. Ela relaciona-nos com o judaísmo e o islamismo, que a consideram um dos atributos mais marcantes de Deus. Israel foi o primeiro que recebeu esta revelação, permanecendo esta na história como o início duma riqueza incomensurável para oferecer à humanidade inteira. Como vimos, as páginas do Antigo Testamento estão permeadas de misericórdia, porque narram as obras que o Senhor realizou em favor do seu povo, nos momentos mais difíceis da sua história. O islamismo, por sua vez, coloca entre os nomes dados ao Criador o de Misericordioso e Clemente. Esta invocação aparece com frequência nos lábios dos fiéis muçulmanos, que se sentem acompanhados e sustentados pela misericórdia na sua fraqueza diária. Também eles acreditam que ninguém pode pôr limites à misericórdia divina, porque as suas portas estão sempre abertas.
Possa este Ano Jubilar, vivido na misericórdia, favorecer o encontro com estas religiões e com as outras nobres tradições religiosas; que ele nos torne mais abertos ao diálogo, para melhor nos conhecermos e compreendermos; elimine todas as formas de fechamento e desprezo e expulse todas as formas de violência e discriminação.
24. O pensamento volta-se agora para a Mãe da Misericórdia. A doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor.
Escolhida para ser a Mãe do Filho de Deus, Maria foi preparada desde sempre, pelo amor do Pai, para ser Arca da Aliança entre Deus e os homens. Guardou, no seu coração, a misericórdia divina em perfeita sintonia com o seu Filho Jesus. O seu cântico de louvor, no limiar da casa de Isabel, foi dedicado à misericórdia que se estende "de geração em geração" (Lc 1, 50). Também nós estávamos presentes naquelas palavras proféticas da Virgem Maria. Isto servir-nos-á de conforto e apoio no momento de atravessarmos a Porta Santa para experimentar os frutos da misericórdia divina.
Ao pé da cruz, Maria, juntamente com João, o discípulo do amor, é testemunha das palavras de perdão que saem dos lábios de Jesus. O perdão supremo oferecido a quem O crucificou, mostra-nos até onde pode chegar a misericórdia de Deus. Maria atesta que a misericórdia do Filho de Deus não conhece limites e alcança a todos, sem excluir ninguém. Dirijamos-Lhe a oração, antiga e sempre nova, da Salve Rainha, pedindo-Lhe que nunca se canse de volver para nós os seus olhos misericordiosos e nos faça dignos de contemplar o rosto da misericórdia, seu Filho Jesus.
E a nossa oração estenda-se também a tantos Santos e Beatos que fizeram da misericórdia a sua missão vital. Em particular, o pensamento volta-se para a grande apóstola da Misericórdia, Santa Faustina Kowalska. Ela, que foi chamada a entrar nas profundezas da misericórdia divina, interceda por nós e nos obtenha a graça de viver e caminhar sempre no perdão de Deus e na confiança inabalável do seu amor.
25. Será, portanto, um Ano Santo extraordinário para viver, na existência de cada dia, a misericórdia que o Pai, desde sempre, estende sobre nós. Neste Jubileu, deixemo-nos surpreender por Deus. Ele nunca Se cansa de escancarar a porta do seu coração, para repetir que nos ama e deseja partilhar connosco a sua vida. A Igreja sente, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de Deus. A sua vida é autêntica e credível, quando faz da misericórdia seu convicto anúncio. Sabe que a sua missão primeira, sobretudo numa época como a nossa cheia de grandes esperanças e fortes contradições, é a de introduzir a todos no grande mistério da misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cristo. A Igreja é chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da misericórdia, professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo. Do coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e flui incessantemente a grande torrente da misericórdia. Esta fonte nunca poderá esgotar-se, por maior que seja o número daqueles que dela se abeirem. Sempre que alguém tiver necessidade poderá aceder a ela, porque a misericórdia de Deus não tem fim. Quanto insondável é a profundidade do mistério que encerra, tanto é inesgotável a riqueza que dela provém.
Neste Ano Jubilar, que a Igreja se faça eco da Palavra de Deus que ressoa, forte e convincente, como uma palavra e um gesto de perdão, apoio, ajuda, amor. Que ela nunca se canse de oferecer misericórdia e seja sempre paciente a confortar e perdoar. Que a Igreja se faça voz de cada homem e mulher e repita com confiança e sem cessar: "Lembra-te, Senhor, da tua misericórdia e do teu amor, pois eles existem desde sempre" (Sl 25/24, 6).
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Abril – véspera do II Domingo de Páscoa ou da Divina Misericórdia – 
do Ano do Senhor de 2015, o terceiro de pontificado.
Papa Francisco
Notas:
[1] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 4.
[2] Discurso de abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II, Gaudet Mater Ecclesia (11 de Outubro de 1962), 2-3.
[3] Alocução na última sessão pública (7 de Dezembro de 1965).
[4] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 16; Const. past. Gaudium et spes, 15.
[5]Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 30, a. 4.
[6] Domingo XXVI do Tempo Comum. Esta colecta já aparece, no séc. VIII, entre os textos eucológios do Sacramentário Gelasiano (1198).
[7] Cf. Homilia 21: CCL 122, 149-151.
[8] Exort. ap. Evangelii gaudium, 24.
[9] João Paulo II, Carta enc. Dives in misericordia, 2.
[10] Ibid., 15.
[11] Ibid., 13.
[12] Ditos de luz e amor, 57.
[13] Enarratio in Psalmos, 76, 11.
 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
														
															 
														
										 
 







