PARÓQUIA S. MIGUEL DE QUEIJAS

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No V centenário do nascimento de Luís de Camões

Camoes1Nestes tempos, fará bem aos portugueses regressar a Camões: ele não é um simples poeta da corte portuguesa, é capaz de lançar um olhar crítico sobre a sociedade do seu tempo. É, de certo modo, profético, porque  através dos acontecimentos e das atitudes dos seus contemporâneos, é capaz de reconhecer que não estavam a corresponder a um ideal mais alto, que a memória portuguesa reclama.

Neste ano de 2024 comemoram-se os quinhentos anos do nascimento do poeta Luís Vaz de Camões: como Patriarca de Lisboa quero prestar homenagem a este grande da nossa história e da nossa literatura. As suas letras permanecem hoje vivíssimas, como convite à reflexão sobre a natureza e o amor, sobre o homem e o seu lugar no mundo, sobre Portugal e os portugueses. Se é contado entre os poetas mais importantes da história da humanidade, também é importante que não se torne apenas uma estátua ou um monumento que olhamos sem compromisso. Importa entrar na sua obra literária e deixar que a sua arte toque a nossa consciência.

Em primeiro lugar, Camões oferece um sentido da história radicado na memória: «O rude canto meu, que ressuscita / As honras sepultadas, / As palmas já passadas / Dos belicosos nossos Lusitanos, / Pera tesouro dos futuros anos, / Convosco se defende / Da lei leteia, à qual tudo se rende» (Ode a D. Manuel de Portugal). Camões é não só um poeta do amor, mas também um poeta da natureza e, assim, um filósofo que medita sobre a realidade em torno de si: «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança; / Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades» (Soneto 52). Em Os Lusíadas, os vários planos que se cruzam – os heróis da viagem até à Índia, os heróis da história de Portugal e os deuses da mitologia – tecem uma trama em que a realidade presente – a viagem marítima – funda-se e continua uma memória – história de Portugal – e aponta para a metafísica – os deuses. «Eu canto o peito ilustre lusitano» (Os Lusíadas, I, 3): a poesia camoniana não é somente uma exaltação, é também um exame de consciência. O que os portugueses foram, mas também aquilo que podem ser. Camões oferece uma leitura do sentido da história e da memória: os acontecimentos passados não estão fechados no pretérito, mas impulsionam e conduzem os portugueses, do tempo de Camões e também dos nossos tempos.

Em segundo lugar, decorrente do sentido da história, nasce a valorização da portugalidade integrada e interpretada numa mundivisão mais ampla. Isto é particularmente notório nas palavras que coloca na boca do Santo Condestável, n’Os Lusíadas (IV, 14-19). «Quem negue a fé, o amor, o esforço e arte / De Português, e por nenhum respeito, / O próprio Reino queira ver sujeito» (15): ser português não é somente uma circunstância territorial de nascimento, mas um património espiritual profundamente radicado na história. A portugalidade é, assim, antes de mais, um enraizar-se não numa sucessão de acontecimentos, mas numa linha condutora, que compagina ação e espiritualidade, alma e sangue. Voltando aos feitos de Nuno Álvares Pereira, isso é notório quando coloca acima dos laços de sangue, os vínculos ao rei e a Portugal: «Eis ali seus irmãos contra ele vão / (Caso feio e cruel!), mas não se espanta, / Que menos é querer matar o irmão / Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta» (IV, 32). Desde o início da nacionalidade, com D. Afonso Henriques, encontramos na história portuguesa um desígnio. Este desígnio não nos torna melhores que os outros, mas faz-nos reconhecer uma responsabilidade que nos é dada e à qual devemos corresponder com vida e coração. N’Os Lusíadas conseguiu traduzir esse sentimento da portugalidade: elogia pessoas particulares, mas o enlevo é dado aos portugueses: «E aqueles que por obras valerosas / Se vão da lei da Morte libertando» (Os Lusíadas, I, 2). Nestes se condensa o sentido da portugalidade: celebrar o 10 de Junho não pode ser apenas contar com mais um feriado, mas tem de ser uma celebração da nossa história, da nossa língua, da nossa identidade.

Há um terceiro aspeto em que encontramos a admirável atualidade de Camões: ele transporta em si aquele humanismo profundo da sua época e da sua cultura: um amor pelo homem universal. No entanto, não é um amor genérico, ou uma boa intenção: é um amor concreto, especificado no povo português. Consegue fazer a admirável síntese entre geral e particular, entre universal e local, que tanta falta faz nos nossos dias. Síntese que acontece na cultura e na arte: «Sem vergonha o não digo, que a rezão / Dalgum não ser por versos excelente / É não se ver prezado o verso e rima, / Porque quem não sabe arte, não na estima» (Os Lusíadas, V, 97). No entanto, este amor pela humanidade só se pode compreender à luz do Cristianismo que professa e vive. Alguma crítica pretendeu apresentar a fé de Camões apenas como algo circunstancial, pela sociedade da sua época. No entanto, é impossível que a forma como capta o mistério cristão com arte e com alma seja apenas circunstancial, como encontramos no soneto «Verdade, amor, razão, merecimento»: «Cousas há i que passam sem ser cridas, / E cousas cridas há sem ser passadas. Mas o melhor de tudo é crer em Cristo». Ou então, a respeito do sentido da forma como Deus guia a história: «Ocultos os juízos de Deus são; / As gentes vãs, que não nos entenderam, / Chama-lhe fado mau, fortuna escura, / Sendo só providência de Deus pura» (Os Lusíadas, X, 38). O Cristianismo conduz ao amor pela pessoa concreta e pelo desígnio de Deus em relação à nação. Sem a fé cristã não se pode compreender o amor pela humanidade.

Nestes tempos – «ricos em técnica, mas pobres em humanidade», como escreveu o Papa Francisco –, fará bem aos portugueses regressar a Camões: ele não é um simples poeta da corte portuguesa, mas é capaz de lançar um olhar crítico sobre a sociedade do seu tempo. É, de certo modo, profético, porque através dos acontecimentos e das atitudes dos seus contemporâneos, é capaz de reconhecer que não estavam a corresponder a um ideal mais alto, que a memória portuguesa reclama. «Entraram pela foz do Tejo ameno, / E à sua Pátria e Rei temido e amado / O prémio e glória dão porque mandou / E com títulos novos se ilustrou» (Os Lusíadas, X, 144): nestes quinhentos anos do nascimento de Luís de Camões, as suas letras permanecem hoje vivas e fortes. Continua a ser um apelo aos portugueses a ultrapassarem visões redutoras sobre si próprios e sobre a sua história. A síntese entre memória e desígnio, entre história e metafísica, entre teologia e filosofia, é um convite a redescobrir Camões, mas também a redescobrir Portugal.

D. Rui Valério, In Observador, 04 jun. 2024

 

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