A festa do cone iluminado
Encerramos com a Epifania, tradicionalmente denominada Festa dos Reis, o tempo natalício. Recebi nestes dias este excelente texto de Helena Matos, publicado no Observador, e que partilho na nossa página, com a devida gratidão. Vale a pena meditar no sentido que damos ao Natal.
O bolo-rei já não tem brinde. A Bela Adormecida ficou sem beijo porque o príncipe foi acusado de abuso. A fruta não tem bicho. O Natal ficou sem Menino Jesus e tornou-se a festa do cone iluminado.
De repente no meio da rua lá está aquela tranquitana metalico-luminosa a que chamamos árvore de Natal. E foi perante aquele cone iluminado, artefacto que nos sobrou devidamente expurgado de tudo o que possa identificar aquilo que somos, o que sentimos, o donde vimos, que me dei conta de como em nome da segurança, da tolerância, da saúde e de sei lá mais o quê estamos a criar um mundo faz de conta. Um mundo em que:
O bolo rei já não tem brinde.
O iogurte ficou sem lactose.
As natas perderam a gordura.
O leite vem da soja e não das vacas.
Os doces ficaram sem açúcar.
Os bolos não têm farinha.
O café perdeu a cafeína.
A manteiga ficou magra.
O pão não tem glúten.
O circo ficou sem leões, depois sem elefantes e agora sem animais.
A humanidade ficou sem sexos e dizem que está perder o interesse pelo sexo.
O namoro ficou sem palavras por causa do assédio.
A Bela Adormecida ficou sem beijo porque o príncipe foi acusado de abuso.
A Capuchinho Vermelho já não é salva pelo caçador que também deixou de caçar e o lobo ficou vegetariano.
Os maridos e as mulheres passaram a cônjuges.
Os parques infantis ficaram sem escorregas de verdade. E alguns sem baloiços.
Chama-se a televisão em vez da polícia.
Os brinquedos ficaram sem graça mas estão cheios de didatismo.
As crianças não têm tempo para não fazer nada.
A má educação tornou-se bullying.
Os pátios das escolas já não têm árvores nem terra.
As gaiolas ficaram sem grilos.
Os filhos não têm pai nem mãe mas sim progenitores.
As feiras não têm graça.
O atirei o pau ao gato ficou sem letra.
A mentira tornou-se inverdade.
A culpa é alegada.
A verdade inconveniente.
O artesanato é certificado.
A fruta não tem bicho.
Brincar é uma actividade devidamente monitorizada.
Os filmes não contam histórias, ilustram teses.
As universidades tornaram-se uma liga de costumes.
As coisas deixaram de ser o que são para se tornarem num dado a avaliar consoante o seu enquadramento numa perspectiva condicionada por diversas valências.
Tudo é relativo.
O Natal ficou sem Menino Jesus e tornou-se a festa do cone iluminado.
Helena Matos, in observador.pt, 03/12/2017