Até onde chega a barbárie?
O padre francês Jacques Hamel (1930-2016), que auxiliava a comunidade de Saint-Etienne, paróquia da Diocese de Rouen, na França, foi morto esta terça-feira (26-07-2016), aquando de uma tomada de reféns, nesta igreja, por dois assaltantes ligados ao Daesh.
Nascido em 1930 e ordenado padre em 1958, Jacques Hamel presidia à missa na paróquia que servia há 10 anos, quando homens do ISIS entraram nesta igreja e o degolaram.
D. Dominique Lebrun, arcebispo de Rouen, peregrino em Cracóvia com alguns jovens da sua diocese, ao tomar conhecimento deste bárbaro acontecimento, e com o coração em lágrimas, acentuou a mensagem do Evangelho: «Não se podem usar outras armas que a oração e a fraternidade entre os homens. […] Convido os jovens a não baixarem os braços perante a violência e a tornarem-se apóstolos da civilização do amor.»
Também o Papa Francisco, perante esta "violência absurda", partilhou a sua "dor e horror" afirmando: «Que Deus inspire a todos pensamentos de reconciliação e de fraternidade, nesta nova provação.»
Partilho nesta página a opinião do filósofo e sacerdote católico, Anselmo Borges, sobre este bárbaro e triste acontecimento.
O dever moral de ser ateu
1. Os ataques terroristas sucedem-se. E a mesma perplexidade por todo o lado: vivemos num mundo inseguro, brutal, louco. Que fazer? Os Estados têm de colaborar entre si, fazendo todo o possível para manter a segurança, não ceder à violência, respeitando a lei. Os cidadãos não podem ceder ao medo, pois esse é um dos objectivos do terrorismo: que as pessoas entrem em pânico, paralisá-las.
2. Já não se respeita sequer uma igreja. E ontem foi a degola, em França, de um padre católico, considerado corajoso e bom pela população. Só posso mostrar, com o Papa Francisco, neste e em todos os casos de terror, a minha "dor e horror" perante "esta violência absurda", que nada justifica. O terror, atingindo indiscriminadamente inocentes, homens, mulheres, crianças, crentes de várias religiões, ateus, tem de ser condenado de forma radical, sem hesitação. Porque é simplesmente terrível, a barbárie bruta, a inumanidade pura e simples.
3. Nada legitima este terror bárbaro. Mas deve haver a tentativa de explicar e entender. J. Philipp Reemtsma distinguiu três formas de violência: a exercida para conquistar um território, tirar algo a alguém, e a que tem o seu fim em si mesma: o prazer da violência. Neste sentido, teme-se que não seja completamente erradicável, já que pertenceria à constituição do ser humano. Daí, a urgência da educação para os grandes valores humanistas, para a paz, para a convivência na comunicação humana, e a atenção que é necessário prestar às causas que podem agudizar a violência: marginalização, não integração, falta de comunidade e de sentido, desorientação, injustiça. Certamente, o niilismo de valores reinante e o aliciamento das redes sociais para ideais de vinculação, com a participação na restauração do califado universal, por exemplo, ajudam nesta explicação.
4. E as religiões e a violência? É preciso entender que as religiões não são o Sagrado, o Mistério, Deus, de quem se espera sentido último e salvação. Elas são construções humanas, mediações, e, por isso, têm de tudo: do melhor e do pior. Há quem pense que, acabando com a religião, se encontraria finalmente a paz. Não é verdade. De facto, se a religião foi e é invocada para legitimar a violência, ela foi e é também força de combate a favor dos direitos e da paz: lembre-se, por exemplo, Martin Luther King ou a teologia da libertação.
5. Mas muito vai ser preciso fazer. Impõe-se o diálogo inter-religioso. Lúcido, fundamentado e crítico. Nenhuma religião pode pensar ter a verdade toda e absoluta. O fundamentalismo é uma questão de ignorância ou, perdoe-se-me a palavra, estupidez. De facto, como pode o ser humano possuir o Fundamento, a Ultimidade? Daí, a urgência de uma leitura histórico-crítica dos textos sagrados, que não são de modo nenhum ditados de Deus. E impõe-se a laicidade do Estado, sem cair no laicismo - a França, ao contrário da Alemanha, por exemplo, cometeu este erro do laicismo, ao pretender retirar a religião do espaço público.
6. Antes de sermos crentes ou não, o que nos une a todos é a humanidade comum, de tal modo que, face a um deus que legitimasse a violência, o ódio, matar em seu nome, haveria, para sermos humanamente dignos, um dever moral: ser ateu.
Anselmo Borges, in Diário de Notícias, 27-07-2016, p. 3