«Posso morrer de cancro, mas ele nunca me matará»
Partiu o homem que assegurava que a doença nunca conseguiria de impedi-lo de viver a vida.
O empresário e professor Manuel Forjaz – que os jovens da paróquia de Queijas tinham convidado para uma conferência no nosso auditório, no próximo mês de Maio – acabou por deixar-nos ontem [06-04-2014] – vítima de cancro nos pulmões – e irá hoje a sepultar no cemitério do Alto de S. João.
Manuel Forjaz, nascido a 13 de agosto de 1963 em Lourenço, homem "com fé profunda e sem sofrimento", deixou instruções precisas para o seu funeral, que queria simples e alegre. "Não quero que chorem, não quero ninguém vestido de preto, não quero caixão aberto e quero uma cerimónia simples e alegre". E até escolheu uma música para este momento de saudade: "Don"t stop Believing", dos Journey. Pediu ainda que os amigos tenham 10 minutos para falarem de si e que se lembrem que viveu sempre a vida como quis. E realçou: "o amor da minha vida é a Bichinha", e "os meus maiores feitos são o Zé Maria e o António de quem tenho um imenso orgulho".
Manuel Forjaz – homem que lutou contra a morte e que nunca deixou que ela o vencesse – deixou ao Notícias Magazine de 12-01-2014 esta desassombrada entrevista.
"Posso morrer de cancro mas ele nunca me matará"
Foi gestor, inaugurou a moda do empreendedorismo, teve empresas, faliu, é professor e orador de excelência. Aos 50 anos, usa a forma enérgica como sempre viveu também para lutar contra a doença que o afeta há cinco – um cancro no pulmão. Expôs-se sem medo, tem uma página no Facebook onde dá conselhos, faz palestras e vai lançar um livro este ano, na Leya. E, sobretudo, continua a viver.
Normalmente, as pessoas que têm cancro escondem. O Manuel, pelo contrário, decidiu expor-se. Tem uma página no Facebook, dá palestras e está a preparar um livro, O Meu Cancro. Porquê?
A razão principal deve ter sido alguém, um dia, ter-me feito chegar uma pergunta. Ou a Jaqueline ter pedido para falar comigo por causa de uma amiga que tinha cancro e eu começar a aperceber-me dos medos, dúvidas, incapacidades das pessoas de gerir e viver com a doença. Parece que desenhei uma maneira de viver com a doença que é contável, replicável e aceitável para a maioria das pessoas... A maior parte das pessoas tem uma visão disto, ainda no século XVI... Pensam que as quimioterapias são em salas fechadas e que nos injetam um líquidos pretos. A primeira quimioterapia, das mais de sessenta que já levo, foi má. Mas foi muito melhor do que estava à espera. Comecei a aperceber-me de que havia um conjunto de mitos e desconhecimentos que assustavam as pessoas e faziam do cancro uma coisa pior do que aquilo que ele é.
Então foi causa dos outros?
Justifiquei-me a mim próprio com «se eu contar tudo, as pessoas não fazem perguntas». Não estou para que a minha vida seja um conjunto de conversas sobre cancro. Não quero sair ao café e o senhor Régio me venha perguntar pelo meu cancro. Não quero ir dar uma aula e um aluno meu me pergunte: «Então, como está o cancro?» Se eu contar tudo, as pessoas já não têm perguntas para me fazer e eu posso seguir com a minha vida.
Se as pessoas souberem é mais provável que lhe façam perguntas...
Não, porque eu escrevo tudo. Não ficam com dúvidas. A primeira coisa que começo por dizer é: vamos cá esclarecer uma coisa; primeiro, vais morrer. Tens isso bem claro? A boa notícia é que vamos todos morrer. Depois não vais morrer amanhã. Pode ser bom ou pode ser mau. Às vezes é preferível um ataque cardíaco, que nos acabe com o sofrimento, do que estar anos na batalha. Eu, que sou um lutador, que adoro a batalha tanto como vencer ou perder, prefiro estar na luta. Uma das coisas mais estúpidas que as pessoas fazem, a mais cretina, que não fazem por maldade mas por solidariedade, é falarem de pessoas que morreram. É uma declaração de amor, de simpatia. Porque é que isto é uma estupidez? Porque todos os dias, em algum momento do dia, lembramo-nos de que não vamos durar tanto tempo. Quando ouvimos uma música que ouvimos quando os nossos filhos nasceram, quando lemos um livro que lemos aos 18 anos. Se isto está presente, não preciso que me relembrem todos os dias. A primeira coisa que escrevi foram as dez coisas que nunca se deve dizer, em circunstância alguma, a alguém que tem cancro.
Essas regras que escreveu no Facebook, que efeito tiveram?
No dia seguinte, recebi qualquer coisa como mil mensagens. Apercebi-me de repente da importância do que andava a fazer, de como podia mudar a vida das pessoas. Foi um espanto. O meu Facebook tinha 500 pessoas e agora vai a caminho das 20 mil, cerca de mais cem por dia. Qualquer coisa que eu escreva é vista por dez mil pessoas. Depois, começou-se a organizar almoços. As pessoas juntavam-se para ajudar alguém. Lembro-me que alguém me disse ter uma amiga que havia feito uma mastectomia, estava a fazer quimioterapia, não queria sair de casa, estava careca, deprimida. Fui almoçar com ela e, dois dias depois, tirou o lenço da cabeça. Começou a ir para a praia às sete da manhã, que é quando os quimioterapêuticos podem apanhar sol. Começou a sair à noite, a divertir-se. A vida dela mudou completamente.
A sua também...
Sim. Esse sentido de utilidade coletiva é uma coisa boa.
Tornou-se avassalador? Ou foi pensando no que estava a fazer?
Nunca pensei. Nunca fui estratégico em relação ao assunto. Passo facilmente de estados racionais para emocionais. E quan¬do estou triste, protejo-me, escrevendo menos. A maior parte dos meus seguidores já leem o meu silêncio, sabem que quando estou quatro ou cinco dias sem escrever é porque fiz uma quimio. Ou vou ter de fazer uma operação ou estou à espera de um resultado. E lá recebo umas mensagens em privado: «Vai correr tudo bem» ou «Vou rezar por ti.»
Abrir-se assim também é uma forma de lidar com a doença?
Sim, é. Porque me obriga a pensar nos assuntos.
Sempre foi racional desde o início...
Isso não foi sempre assim. Cometi os mesmos erros de todas as pessoas. Quando se tem cancro, só há uma regra: procurar o melhor médico do mundo. Não fiz isso. Quem nos apanha o cancro é o médico que fica dono de nós. E entregamo-nos, fragilizados. Temos urgência na solução. Se alguém nos diz que nos vai tratar... Há outro erro: a cirurgia, somos tarados para operar. Os cirurgiões adoram cortar. Primeiro porque adoram cortar e, depois, porque ganham dinheiro. Eu nem sabia quem era o dono da minha doença, se o cirurgião, o oncologista ou o pneumologista. Dúvida que, aliás, permanece na maior parte das cabeças. Aconteceu-me ir a consultas em hospitais e falar cinco minutos com um e cinco minutos com outro e, muitas vezes, eles não tinham falado entre eles. A minha estratégia foi um processo de aprendizagem. Demorei um ano e cinco meses a ir ao melhor médico do mundo do cancro do pulmão. Devia ter ido logo em março de 2010. Fui ao dr. Rafael Rosal, o melhor, em Barcelona. A consulta custa 600 euros, em vez dos 90 de cá. Mas vale a pena pedir dinheiro emprestado. O meu livro vai servir muito para que as pessoas possam evitar as minhas asneiras.
É um otimista ou um pragmático?
Toda a minha vida fui assim. Não me preocupo com coisas que não controlo, mas sim em atuar sobre as coisas que eu controlo. Na doença foi exatamente a mesma coisa. Em vez de me andar a preocupar com a deterioração do estado de saúde, a perda do fôlego, com o «não vais viver tanto tempo», a minha preocupação sempre foi saber onde está o tratamento, qual é a próxima linha, quem é o melhor médico, como minimizar os efeitos secundários, vou trabalhar ou não. Completamente pragmático, como continuo a ser. A maneira como geri e como encarei a doença tem tudo que ver com a maneira como sou e vivo.
Está sempre à procura do mais novo tratamento?
Porque é que se procuram os tratamentos alternativos? Para se ter, sobretudo, esperança. Quando se chega ao fim das linhas terapêuticas que nos dão nos hospitais, temos de ter algo a que nos agarrar. Estas novas linhas terapêuticas experimentais acrescentam-nos esperança. E a esperança é o que nos faz não morrer. No dia em que a perdermos, fechamo-nos na cama e esperamos tranquilamente com morfina pela morte.
A família não se incomoda por estar tão exposto?
Detestam. Os dois filhos e a minha mulher, que não está no Facebook. Os meus filhos estão pouquíssimo... Provavelmente preferiam que eu não falasse tanto. Ao mesmo tempo, sabem que me faz bem. Acho que percebem perfeitamente o valor que eu trago às pessoas que me leem. Têm algum orgulho nisso.
O que é que o cancro mudou na sua vida?
Três coisas principais. A primeira é a demonstração dos afetos, que se torna muito fácil. O «amo-te» o «gosto muito de ti», o «fazes-me falta». Todos temos isto dentro de nós e gostaríamos de dizer mais vezes, mas esta nossa maneira introspetiva, lusitana, de guardarmos tudo para dentro, de viver com úlceras... Somos ensinados a esconder a emoções e a não demonstrar os sentimentos. O cancro é libertador em relação a isso. Essa foi talvez a mudança qualitativa mais importante. A segunda mudança é todas as decisões serem tomadas mais rapidamente. Sérias ou jocosas, importantes ou não, envolvendo outros ou não. Não que seja menos ponderado, mas porque acho que a irreversibilidade ou as consequências das mesmas têm, hoje, menos impacto. Na certeza da morte, todas as decisões têm consequências pouco relevantes.
Não se pôs a gastar dinheiro sem parar...
Não, não. E porque a minha vida foi um bucket list, nem sequer cheguei a fazê-la.
O que é que isso quer dizer?
Nunca precisei de fazer uma lista das coisas que gostava de fazer antes de morrer, porque já as tinha feito todas. Quis dar uma volta ao mundo, dei. Quis dar uma volta à Europa, dei. Quis um Ferrari, saltar das pontes, de aviões, ir ao fundo do oceano Pacífico. Tudo o que era para fazer, fiz. No fim, quando era para fazer a lista, não restava nada. Vivi sempre a vida sabendo que ela me poderia trazer surpresas e acabar de repente. Sempre vivi como se não fosse viver para sempre, ao contrário da maioria das pessoas que vivem despreocupadas. Foi uma regra para mim. Por exemplo, não queria morrer sem dançar hip hop. Toda a vida tive vergonha de dançar nas discotecas e sempre achei que os portugueses dançam mal, uns básicos. Na minha festa dos 50 anos fiz uma coreografia para a minha mulher com o Blurred Lines, depois de 12 aulas de hora e meia aqui em casa, com dois professores.
A sua vida determinou a forma como olha para o cancro? Ou seja, pacifica-se por essa sensação de que não deixou nada por fazer?
Julgo que não. Numa certa altura na minha vida fazia-me falta o outro. Sentia que tinha uma vida privilegiada, que eventualmente não me tinha esforçado assim tanto para conseguir aquilo que tinha, que não tinha o mérito pelo conforto que tinha conseguido. Portanto, preocupei-me com projetos sociais. Lancei os Pais Protetores em África, fiz de padrinho na Ameixoeira, lancei o projeto Pé de Fé, lancei o projeto de bolsas africanas – há três ou quatros miúdos que se estão a doutorar, ao fim de dez anos com o dinheiro que arranjei. São as contas todas, acho que estou contente com o meu trabalho.
Até que ponto o seu quotidiano é determinado pela luta contra o cancro?
Faz cinco anos e meio que tenho cancro. Não alterei nada na minha vida. Quer dizer, alterei por questões práticas. Se tenho uma vacina ou um PET, não posso ir a Espanha ver uma exposição. Mas vou no dia seguinte. Não deixo que a doença chateie a minha vida. O meu mote é exatamente o contrário: posso morrer de cancro, mas o cancro nunca me matará. No dia a dia, não deixo que o cancro me toque. Se tenho dores, tomo compridos. Continuo a trabalhar, a dar aulas, a viajar, com vida social. Há dias difíceis, pós-químio, em que não consigo levantar-me, dias em que a dor me desfoca a concentração. A questão da dor é sempre algo muito importante. A maior parte das pessoas não sabe que estou doente.
Tem visto exemplos do contrário?
A maior parte. O cancro passa a ser uma atividade diária, nos seus pensamentos, nas escolhas, na maneira como se vestem, no que fazem. O cancro não é um assunto dos meus dias. Ainda ontem tinha uma conferência para fazer nos Salesianos. Estavam 400 miúdos. Foi organizada pela filha de uma amiga. Às 08h00 estava a entrar no bloco operatório e às 15h00 estava nos Salesianos. Deu, consegui falar. Não ia adiar, de maneira nenhuma. Não sou nenhum campeão, muitas vezes não consigo fazer que o corpo reaja, estou cansado. Sair da cama é difícil. Tenho de lutar contra todas aquelas coisas com que o cancro quer fecharme dentro de casa. Amanhã estou doido para ir à praia, quero tomar um banho no mar e apanhar sol.
Está frio.
Está ótimo. O cancro tende a fechar as pessoas no seu casulo de proteção, para não terem de falar, para poderem chorar, descansar. E eu tento manter todas as minhas rotinas.
Isso dá-lhe mais energia?
Menos energia não dá, mas às vezes sinto que exagero. Já me recomendaram o descanso. No outro dia, estava cansado e deitei-me às 17h30 da tarde de sábado e estive a dormir até segunda-feira de manhã.
Qual é hoje o seu nível de esperança?
Em fevereiro, ótimo. Em maio, a doença estava praticamente residual. Em agosto, voltou tudo outra vez. Em agosto de 2012, calcularia uma fortíssima probabilidade de não chegar ao fim de 2013. Agora vieram os resultados e é muito provável que chegue ao fim deste ano. O que os exames nos dão é isso, tempo.
O que é que o tempo representa para si? A possibilidade de uma cura?
Não. Representa que estou de férias. Até ao próximo PET não estou preocupado, não vivo todos os dias com a quase certeza de que vou morrer no ano que vem. Agora o que está a funcionar são as dendítricas, o bruxo onde fui no Brasil? Não sei. Mas de qualquer maneira é melhor do que não estar a funcionar.
Como é que os médicos reagem consigo?
Os médicos adoram-me. Porque sou muito científico, descrevo as situações todas. Mando-lhes as últimas investigações. Faço testes e análises além do que me pedem e dou-lhes informação que não têm. Não sou aquele paciente a quem eles têm de dar um "tapinha" nas costas. Sou um paciente que os anima. Tenho a clara sensação de que eles passaram um dia lixado, ter de dizer às pessoas que vão morrer. De repente chego e sou uma lufada de ar.
Nunca se zangou com nenhum?
Zangar não, mas tive momentos de insatisfação com alguns médicos. Todas as pessoas pensam que se tornam um caso especial. Ora, na realidade, a medicina são 74 protocolos e 37 regras. Eu esperaria, quando vou a uma consulta de médico, que ele tivesse olhado para os meus exames, tivesse conferenciado com o colega, estudado casos semelhantes, ver o que existe de novas terapias, tivesse falado com o ex-colega da universidade de Columbia, que é um oncologista famoso. E nada. «Aumentou três centímetros. Protocolo 26, 27. Adeus, obrigada. Até daqui a dois meses.» O que se passa, de facto, é que nós não somos especiais. E eu não estava à espera. Estava à espera de ser tratado como um cliente. Somos sempre o paciente 1140922 – é o meu número do IPO.
O que é que aprendeu sobre o Sistema Nacional de Saúde (SNS)?
Pergunta difícil. Tive vários contactos com vários hospitais. A situação atual está a provocar uma séria limitação no acesso aos meios que os médicos precisam para combater as doenças e prolongar a vida. Muitos médicos estão perante a opção de terem de dar medicamentos a um paciente não dando a outro, porque os orçamentos são limitados. No geral, o nosso SNS é muito bom, embora não conheça outros. É particularmente bom para doenças muito graves e mau para doenças do dia a dia. O staff é de uma qualidade muito impressionante. São de um carinho, de uma humanidade. Os médicos são escassos e têm meios escassos. São extraordinários, na imagem do hospital de campanha do Vietname, com poucos meios a fazer autênticos milagres.
Nesse caos quem se safa melhor é quem tem mais educação, mais meios?
Somos todos tratados de forma igual. No IPO não há favores, as salas de químio são as mais democráticas que existem, não há camas de luxo, não há mordomias.
Mas depois, quando vai a Barcelona ou a Colónia em busca do último tratamento... aí já interessa os meios que se tem.
Aí, sim. Mando todo o meu histórico médico com o relatório traduzido para inglês e à minha volta estão seis médicos. Todos leram o processo, falaram com os melhores do mundo. Eu só paguei uma consulta, continuo a ter consultas quase todos os meses. Cada vez que tenho resultados, mando. Em Portugal, teria sido mais lenta a descoberta da terapia ajustada a mim, fazem-se poucos testes genéticos. Dois, porque representam a maioria dos cancros. Eu fiz três mil. E lá, entre o 2000 e o 2500, estava o meu RH2 mutado. O RH2 cá só tem cura para o cancro da mama. Nunca consegui ter acesso ao medicamento para me tratarem com ele, porque não está protocolado. Tive de fazer na Fundação Champalimaud e pagar. Uma fortuna. Tive de pedir dinheiro aos meus amigos, vendi tudo o que tinha. Um tratamento que na Índia custa 600 euros, cá custa seis mil.
Porquê?
Porque as farmacêuticas fazem uma coisa chamada discriminação monopolista de preços. Tabe¬lam pelo que o consumidor está disposto a pagar vezes o número de utilizadores que lhes maximiza a receita. Não é preço fixo. E eu não posso importar o medica¬mento, estou proibido. Peço ao Infarmed autorização e não me dão. E o próprio Governo, que podia poupar aqui, não importa. Porque eu acho que está nas mãos dos laboratórios, a quem o Estado deve milhões.
Tem fé?
A minha fé é absoluta, plástica, material. Deixa-me dormir tranquilo todos os dias – rezo todos os dias. Vou à missa e confesso-me. Li São Tomás de Aquino, Descartes e o Pierre de Chardin, que racionalizaram a existência de Deus. Mas não é por aí. Eu sento-me com Jesus Cristo à noite, na minha cama, e conversamos um com o outro. A fé dá-me duas coisas...Uma absoluta ausência do medo da morte e a certeza absoluta da vida eterna. Isso dá muita paz. Resolve uma parte muito importante do meu problema.
Como foi passar a morte do seu irmão, estando já doente com o mesmo cancro ?
Foi muito difícil. Ele tinha menos meios do que eu. E era um fumador intenso: três ou quatro maços de cigarro por dia, desde os 12 anos. Mas o fim dele foi muito difícil, muito trágico. Foi acompanhado pela minha mãe, pelas minhas irmãs e por mim. Teve em mim um impacto tremendo de que tento não lembrar. E quero ter a certeza de que o que aconteceu ao meu irmão não me vai acontecer. Já tomei um conjunto de garantias. Assim não vou morrer.
Qual era o seu sonho de infância?
Queria ser o homem mais rico do mundo. Aos 4 ou 5 anos transformei-me num homem de negócios quando comecei a pedir livros de quadradinhos usados aos meus amigos para vendê-los na rua. Em Moçambique, na António Mendes, em frente à cooperativa dos criadores de gado. O meu pai ficava absolutamente maravilhado com a minha capacidade em ganhar dinheiro.
O que é que o seu pai fazia?
Era advogado, era diretor contencioso do PNUD. Portanto, sempre construiu a ideia em mim de que eu podia ser um gran¬de empresário. E, de facto, ser o homem mais rico do mundo. Mas nunca consegui ter amor suficiente ao dinheiro para fazer dele a prioridade principal da minha vida. E se não se gostar muito de dinheiro, nunca se vai ser o homem mais rico do mundo.
Como é que Moçambique o marcou?
Marcou sobretudo a maneira como depois eduquei os meus filhos. Os meus pais delegavam, concediam-nos uma autonomia impensável para os dias de hoje. O primeiro foi o único dia da vida em que a minha mãe me levou à escola. Moçambique deu-me um modo de viver a liberdade e um modo de sentirmos a responsabilidade. Vivíamos felizes, na rua, sem pai autoritário, independentes dos nossos pais. Eu tinha seis anos, saía de casa na Rua António Mendes, ia até ao estádio ver a luta livre sozinho. Tinha 5 ou 6 anos. Atravessava as barreiras do Liceu Salazar, diziam que era uma zona perigosa, com criminosos e terroristas. Íamos à boleia, eu com o Chico Zé, até à Costa do Sol – 15 quilómetros para apanhar amêi-joas no mar. Deu-me essa auto-nomia de dizer: sobrevivo em qualquer circunstância e sobre qualquer adversidade, em qualquer meio.
Com que idade veio para Portugal?
Com 11 anos.
Isso manteve-se?
A família desmaterializa-se um pouco. O pai num lado, a mãe noutro. Um irmão para cada casa. Tinha 16 anos quando chumbei o primeiro ano da Católica e cheguei ao meu pai e disse-lhe: «Vou emigrar.» Saí daqui à boleia e fiz 3600 quilómetros até Itália sem um tostão no bolso, a comer fruta podre, a dormir debaixo dos camiões, a roubar uvas nas vindimas e trabalhei... em todos os países europeus. Portanto, nunca tenho fome, nunca tenho sede, nunca tenho sono. O meu corpo, até recentemente, funcionava de acordo com as minhas conveniências (se calhar foi este o custo).
Sempre tinha sido bom aluno. Porque chumbou na faculdade?
Sempre fui o melhor na primária, no secundário, fiz o 9.º ano com nove cincos. Eu era um miúdo de casa; quando vim de Moçambique para Portugal, fiquei com os meus avós, em Coimbra. Era tímido e inibido. Em Lourenço Marques tinha apenas dois amigos, o Chico Zé, que era branco, e o Benjamim, preto. Lia os livros do meu pai, Tolstói, a coleção Argonauta, a coleção Vampiro, que chegavam todas as quintas-feiras. Em Portugal, a minha vida era ler e jogar xadrez. Não tinha amigos, não tinha namoradas. A casa do meu avô, que era uma autoridade do regime, era enorme, gelada. Viemos em 1974, logo a seguir ao 25 de Abril, antes da independência. Fechei-me ainda mais em casa. A ouvir música. Cheguei à letra cê da enciclopédia brasileira. Era um chato, não lia o Júlio Verme sem um mapa ao lado. Fiz o liceu em Coimbra sem nenhum amigo. Ninguém. Os meus avós eram um bocadinho queques e quando eu tinha um ou outro amigo eles olhavam com um ar de curiosidade – «Quem é o pai deste teu amigo?» «É de uma mercearia.» «Ahh...» E isso não ajudava. Aos 16 anos entrei na Católica, para o ano zero. E o Borges Macedo expulsou-me da primeira aula, porque o meu colega do lado, um espanhol, estava com uma caneta na boca. De repente, vimo-nos os dois no hall, apresentámo-nos. Era sexta-feira. Ele perguntou-me o que eu ia fazer. Eu não percebi. Ele disse que havia uma discoteca nova em Cascais, a Jet7. Entrei na discoteca e bebi dois gins tónicos, canhões, cheio de álcool. E dei por mim às três da manhã a dançar Lou Reed. E a falar com pessoas. Umas miúdas vieram falar comigo. Aconteceu tudo. E, depois, comecei a bronzear-me, a usar umas t-shirts.
A quantas aulas foi a seguir?
A nenhuma. Fiz um curso sem ir às aulas. Quantidades incomensuráveis de gajas, de álcool, todas as drogas. E oito anos para fazer um curso. Durante esses dez anos andei a viajar pela Europa toda. Depois, um dia, morreu a minha colega que na faculdade me pagava as propinas – continuava inscrito. Cheguei à Católica e as coisas que ia fazer, que era beber cerveja e jogar cartas... não havia ninguém para as fazer. Fui ter com o padre João Seabra, meu amigo, e pedi-lhe que me deixasse fazer 12 cadeiras nos últimos dois anos. Se eu falhas¬se alguma vez, ele tirar-me-ia a exceção. Pronto, fiz 20 cadeiras em seis anos e 24 em dois.
Foi o primeiro ponto de viragem da sua vida.
O primeiro foi a viagem. O segundo foi acabar o curso. O terceiro foi casar-me e ter filhos. O quarto foi ser despedido, deixar de ser um gestor de topo brilhante. E o quinto foi o cancro.
Quando foi despedido?
Quando estava em A Capital. Era do dr. Balsemão. Eu tinha 33 anos, tinha chegado ao topo... Tinha vindo da Bertrand e fui o primeiro gestor de topo do grupo. Eu fui o primeiro a ganhar dez mil euros por mês, em 1997. Mas não percebi a luta política que era um jornal. Eu dizia que não à diretora, a Helena Sanches Osório, e ela ligava para o Balsemão. E o Balsemão dizia: "Dr. Forjaz, temos de ver isto, é uma coisa muito importante." E eu, maçarico, assinava. Depois quando chegava ao Conselho de Administração levava porrada. E eu tinha dobrado as tiragens. A Capital chegou a ser maior do que o Público e o DN. Tinha dobrado a publicidade, passado para um milhão de euros. Uma revolução, uma grande equipa comercial. Tínhamos feito coisas malucas: os primeiros fascículos sobre sexo, o primeiro jornal a dar um telemóvel com cupões. Mas acabei por ser trucidado na corrida. Depois, como tinha bom nome, ainda me surgiram hipóteses de trabalho. Mas essa é uma altura em que tenho duas hipóteses: regresso ou mudo de vida.
Porque é que resolveu mudar de vida?
Um dia entro na sala e chega-se um filho meu, banhinho tomado, pijama de flanela, e pede-me ajuda para os deveres. «O pai está tão cansado, não podemos fazer isso noutro dia?» Ele vai-se embora triste e eu comecei a pensar que isto não fazia sentido. Ganhava fortunas, mas a coisa mais importante para mim, o que me faz mais feliz, é o tempo que passo com os meus filhos. E não quero um dia olhar para trás, e pensar que a vida dos meus filhos passou-me ao lado. Talvez tenho sido uma epifania.
À luz do que lhe está a acontecer agora, isso muda muita coisa?
Foi a decisão mais correta da minha vida. Os meus filhos saíram de casa aos 17 e 18 anos e eu vivi uma vida que ninguém viveu, que ninguém teve o luxo de viver, estavam todos a trabalhar. A trabalhar para chegar ao topo. Estava toda a gente a correr para os corredores, a tirar fotocópias e a fazer powerpoints. Eu estava com os meus filhos a dar uma volta à Europa, nos parques de diversão, no jardim zoológico, no futebol. Fui dar uma volta ao mundo. Brincámos, divertimo-nos, jogámos bowling, xadrez. Fomos a praias, a piscinas, fizemos tudo o que havia por fazer. Eu fui o pai deles. Hoje não tenho nada. Tenho uma moto e está avariada, mas digo-lhe uma coisa, tenho 15 anos vividos com os meus filhos. Fui com eles aos médicos, aos hospitais, fui com eles inscreverem-se no Sporting. Tivemos uma vida abençoada.
Como entra no empreendedorismo?
Depois do meu despedimento d'A Capital, o dr. Balsemão persegue-me. Eu estava só. Ele garantia que ninguém falava comigo. Como estava sozinho e sou empresário, um dia vejo uma coisa chamada Associação Nacional de Jovens Empresários. E inscrevo-me. Vou lá e pedem-me para falar. E eu não era um grande falador – sou um orador tardio, forçado. E há 25 anos que dou aulas. A conversa correu bem, porque toquei no tema da liberdade. A metáfora do pequeno-almoço do Belmiro. Fazer as pessoas pensar que o pequeno-almoço do Belmiro era igual ao meu. Então para que é que ele quer 1,6 biliões de dólares? Para comprar a sua liberdade, para poder dizer o que quisesse. Noventa e cinto por cento das coisas de empreendedorismo que aconteceram em Portugal são da responsabilidade da Susana Olípio e do José Fontes, da ANJE. Eles pediram-me para ser formador. Começo a conhecer os alunos. Um deles era o João Carreira, da Critical Software. No segundo ano, era o Raul Sérgio, da Crioestaminal, e o Nuno Gomes, da EasyBus. No terceiro, Pedro Sinovas, que vende drones. O Rui Sanches, da Vitaminas & Companhia. E fui conhecendo estes novos empreendedores.
Não está farto desta conversa do empreendedorismo?
Tenho muita pena. Acho que os poderes públicos têm toda a culpa. Basicamente tentou-se desenvolver à força um país e empreendedores, sobretudo nas novas tecnologias. E acho que exagerámos na priorização das tecnologias. Temos de estimular as empresas que aproveitam as nossas vantagens comparativas. Os produtos que podem fazer a diferença, que não são patenteáveis. Uma enzima qualquer pessoa patenteia, agora para o queijo da serra teria de se patentear a relva, a ovelha, o estrume, a inclinação do solo... Ando há 15 anos a falar de queijo da serra. A primeira vez que falei de Portugal-mercearia gourmet foi há dez anos, numa conferência no Porto. O empreendedorismo não aparece porque alguém tem uma ideia gira e vai ficar rico. É preciso perceber as tendências. E os empreendedores portugueses não se juntam. Em São Paulo, existem 700 empresas portuguesas, 700 empresários. 700 escritórios, 700 advogados, 700 rendas, 700 mulheres da limpeza, 700 seguros... O que significa um desperdício de recursos que se torna completamente não competitivo. A Espanha, por exemplo, tem um modelo baseado na sede de um banco e um conjunto de empresas utilizam os serviços partilhados.
Porque fez o mestrado em Estudos Africanos?
Porque quero morrer em África. É uma paixão. De andar descalço, comer a fruta com as mãos, gostar de corpos, daquela transparência, do niilismo, de que Deus está em todas as coisas. A minha tese era comparada entre o perfil do empreendedor de moçambicano e o português. Conhecia o português, estudei o moçambicano. Não gostaria de morrer sem discutir a minha tese de mestrado. Mas já fiz tantas coisas. Andava sempre na internet à procura de formações que fossem baratas. Uma semana em qualquer universidade de topo europeia custa entre sete a dez mil euros. Uma semana de empreendedorismo social no INSEAD custa 500 euros. Uma semana de liderança com os professores de topo da Harvard, 700 euros. Passei a vida à procura de borlas. Fiz 40 cursos diferentes, conferências. Entretanto, comecei a dar aulas. No ISCTE. Uma pós-graduação no Porto. Lancei uma pós–graduação com os meus conteúdos em personal branding no ISLA. E há três anos que dou aulas nos mestrados da Nova. Depois, fui fazendo loucuras. Montei um Congresso Mundial de Social Entrepreneurship em Cascais. Um Instituto de Empreendedorismo Social que hoje emprega 21 pessoas, que está presente em quatro países. E já começamos com boot camps em Moçambique e faremos também em Angola. Fiz o Tedex O'Porto. Parti do zero. Não tinha um tostão. Uma semana depois tinha seis mil inscrições. Há dois anos foi o maior TEDx do mundo, maior do que o de Rio de Janeiro. A minha vida tem sido sempre assim, correr riscos.
E agora?
Agora tenho de ganhar dinheiro. Preciso muito. Não para com¬prar nada, mas por causa da minha saúde. A minha saúde custa muito dinheiro, não tenho fontes de rendimento.
Precisa de quanto por mês?
Preciso de cerca de seis mil euros. É o preço de uma dose e preciso de uma a cada mês. Até agora, pedi dinheiro emprestado, junto dos meus amigos. E estou a organizar uma espécie de uma escola Manuel Forjaz e vou organizar cursos de formação muito vocacionados para as urgências atuais, como arranjar trabalho. Escrever um currículo, procurar trabalho, enviar o currículo, marcação de entrevista, postura na entrevista, criação das ideias, seleção das ideias, financiamento, marketing. Módulos todos meus construídos com base na minha reputação. Cada módulo é muito barato, vai custar entre 10 e 15 euros. Se as pessoas comprarem os dez módulos do curso têm 10 por cento de desconto. Na primeira experiência que fiz tive quase 800 alunos. Tenho um parceiro que está, gratuitamente, a desenvolver a plataforma. E é com isto que eu espero ganhar algum dinheiro.
Quem são os seus gurus?
O primeiro de todos foi o Belmiro de Azevedo. Porque em Portugal há empresários que pegaram em fábricas de margarina e tornaram aquilo em gigantes, mas já tinham fábricas de margarina. O Belmiro era filho da dona Odete e do senhor Silva. É tu¬do dele. E ele preza os valores da família, que manteve unida. Ele nunca subiu aos lobbies dos partidos. Manteve sempre a sua liberdade e independência. Não como genial, mas como empresário português, uma boa prova de que trabalho honrado tudo vence. Com audácia, pegar numa empresa que faz contraplacados e decidir lançar supermercados. Acho-o o líder português a apreciar.
Este é o país onde quer que os seus filhos passem a vida deles?
Não. Este é o melhor país do mundo para se viver a partir dos 45-50 anos, quando acabamos a curva de aprendizagem e pre¬cisamos de um bom espaço para viver. A segurança, o clima, o património, a praia, a qualidade gastronómica, o verbo, a poe¬sia, os jornais, as cidades maravilhosas. Conheço 110 países. Não conheço uma cidade tão boa para viver como Lisboa, a partir dos 45-50 anos. Durante a curva de experiência e aprendizagem acho que o mundo tem um conjunto de outras aprendizagens e expe-riências que Portugal não pode proporcionar. Por ser pequeno em vários níveis: na população, na mentalidade, na ambição, no orgulho.
Falta-lhe fazer alguma coisa?
Gostava muito de ter contactado com o Mandela. Há 20 anos mexi mundos e fundos, todos os contactos possíveis. Fui à África do Sul, bater-lhe à porta, mas não consegui. Isso fica por fazer. Adorava saber tocar viola, já três ou quatro vezes comecei. Provavelmente, não acabarei a tese de mestrado e vou avançar para uma de doutoramento. Esse é um ponto importante. Vou lançar agora um livro sobre um cancro e, depois, outro sobre histórias de pessoas que fizeram coisas extraordinárias e que não são conhecidas. Gostava de ter um programa de televisão. Gostava de ser orador global, acho que já não vou lá. Já sou orador há tempo suficiente para eles me terem descoberto e convidado. Gostava de ter feito uma grande obra de arte. O processo da escrita foi interessante – comecei por escrever mal e estou a tentar construir melhor o meu português. No essencial, acho que sim, que tive a sorte... O meu filho licenciou-se agora. O mais novo vai licenciar-se em junho. Considero a minha obra feita. Infelizmente, não acertei em tudo. Não acertei, por exemplo, na Ideiateca. Durante 15 anos que paguei salários, gerei riqueza, outras empresas, outros empregos fora da minha empresa. Não acabou bem. Aliás, ainda não acabou. Está entregue a uma advogada.
Esta entrevista - conduzida por Catarina Carvalho - foi publicada pelo Notícias Magazine a 12-01-2014
http://www.noticiasmagazine.pt/2014/posso-morrer-de-cancro-mas-ele-nunca-me-matara-2/
Um sorriso e uma lágrima
1. Um sorriso. Ninguém se confronta com alguém que sabe ter cancro sem sentir desconforto. Esse desconforto é provocado por uma inevitável fragilidade. Estamos ali, confrontados com o desconhecido. Sabendo que não há nenhuma razão, plausível ou completamente ilógica, que explique porque foi essa pessoa, e não nós, quem adoeceu. Não há nada que nos proteja do que está a acontecer àquela pessoa. Tudo isto, que seria até razão para um certo otimismo – alívio, pelo menos, não nos dá senão para o contrário. Uma angústia cresce-nos dentro do peito, um frio surge-nos na barriga.
Ninguém vai solto e alegre encontrar-se com alguém que sabe ter cancro, com alguém que tem cancro, que fala do cancro sem pruridos ou medos, que abriu uma página no Facebook para manifestar os seus estados de alma em relação à vida quotidiana e ao combate à doença. Foi o que me aconteceu com o Manuel Forjaz. Eu tinha começado a segui-lo na internet porque fui alertada por amigos que eram próximos dele e que anda-vam surpreendidos com a forma desassombrada como falava da doença que, normalmente, as pessoas escondem. Eles estavam também impressionados porque o Manuel tinha estado muito bem, praticamente recuperado, e tivera uma recaída perto da festa de aniversário dos seus 50 anos, em que fizeram um discurso de antologia.
Achei que não podia perder esta entrevista. O Manuel é um daqueles gestores estrela dos anos 90, esteve na base da divulgação da ideia de empreendedorismo em Portugal, criou a Confraria do Pastel de Nata, tornou-se professor e orador em palestras de motivação, ideias e negócios. Marcámos um encontro no fim do verão, num café no Chiado, em Lisboa, onde ele mora. Um encontro que teve de obedecer aos horários dos seus tratamentos e às suas viagens em busca do último grito da medicina. Era uma conversa preliminar, mas acabou por ser uma parte importantíssima da entrevista que hoje publicamos.
Os olhos do Manuel Forjaz brilham tanto que ninguém pode acreditar que tem a vida ameaçada. Ele diz que o cancro não lhe mudou a vida, e é verdade. A forma pragmática como fala da doença descrevendo com detalhe aquilo que lhe aconteceu, contando sem reservas os erros que cometeu e a forma como equilibra a esperança entre o realismo dos diagnósticos e a sua inabalável fé, tudo isso torna as coisas tão simples, que não se pode ouvi-lo sem ser com um sorriso no rosto. Um sorriso parvo? Talvez. Mas um sorriso que também a nós devolve a esperança. Nas pessoas e no destino.
2. Uma lágrima. Dizia uma amiga minha que nunca tinha visto tantos homens a chorar como esta semana. Na morte do Eusébio, claro. O facto de eu poder usar o artigo definido em vez do indefinido é também uma das razões desse choro inusitado entre os que habitualmente o tapam, evitam, escondem. Os homens também choram e todos sabemos que o futebol é um palco privilegiado para que isso aconteça – ali, estão seguros, rodeados de gente com os mesmos valores, a coberto de qualquer crítica. Vimo-lo em Eusébio na célebre semifinal de 66, ou em Cristiano Ronaldo na final perdida do Euro 2004.
Há sempre, em todos os acontecimentos populares em que o povo se empolga e emociona, a tentação do exagero. Mas não consegui deixar de sentir, esta semana, em que cada cara lavada em lágrimas – sobretudo as dos homens – um desespero que ia muito além do sentimento de perda pela morte de um ídolo do futebol. A orfandade que se revelava nessas lágrimas era mais profunda. Era a de um vazio histórico. Foi isso que a morte de Eusébio nos recordou. E dói de mais.
Catarina Carvalho, "Um sorriso e uma lágrima", in Notícias Magazine [12-01-2014]
Reações
"Foi um privilégio conversar com ele.
Que fique o seu exemplo de coragem, de luta e de esperança.
Valorizem os momentos bons, desvalorizem os maus... Mas deem valor sobretudo à vida!
Obrigado Manuel Forjaz!
Rui Unas, ator
"Sempre gostei do seu espírito vivo, da sua inteligência fulgurante, de não ter medo de errar. De recomeçar. Uma e outra vez. [...]
O último combate não terá sido o mais importante da sua vida, mas foi o que lhe deu maior exposição."
Nuno Santos, jornalista
"Quem disse que o Manel não venceu? A prova está no facto de ter partido sem dar por isso. Nós é que vamos dar pela sua falta. Mas as lições que nos deixou vão acompanhar-nos todos os dias. Com ele a orquestrar lá de cima."
Catarina Furtado, apresentadora
(In DN, 7-4-2014, p. 14)