
Na conferência de abertura da XIV Assembleia de Párocos Dehonianos, que teve lugar no Seminário de Alfragide entre os dias 4 a 6 de Fevereiro, em Lisboa, D. Manuel Clemente sublinhou a urgência de anunciar a mensagem de Cristo "começando na gentilidade do próprio bairro, escola ou hospital, quando não na própria casa e família de cada um". Aqui ficam as palavras da sua comunicação:
«O Papa Bento XVI propôs à Igreja toda o "Ano da Fé" que estamos a viver, desde outubro passado. Em boa hora o fez – como Paulo VI, a seguir ao Concílio – e com boa incidência na vida eclesial que decorre. Tal se diga, muito especialmente, no tocante à sempre necessária e melhor definição do que somos enquanto discípulos de Cristo, diante de Deus e dos outros. Isto mesmo e não outra coisa, colando rapidamente o nome "cristão" a qualquer religiosidade difusa e à escolha, old ou new age que seja. Efetivamente, mesmo no campo dito "católico", a amplitude é tal, que a simples recitação do Credo já seria problemática se as pessoas pensassem um pouco mais no que hão de crer e fazer...
O que vai dito refere-se à Fé. Mas gostaria de me deter no que vem antes: o "Ano", o tempo em que estamos – ou o tempo que somos – e nos é dado viver como crentes. Não é um tempo qualquer, é este tempo, muito complexo aliás.
Falamos de "crise" e com razão o fazemos, pois de interrupção se trata e ocasião de discernimento e juízo, em relação à habitualidade que tínhamos ou julgávamos ter - e ter para durar. Os efeitos económicos da rotura financeira são os mais sentidos, no campo do trabalho e da falta deste, na vida empresarial e familiar. Na encíclica Caritas in Veritate, que Bento XVI dedicou em 2009 à problemática do desenvolvimento, a questão ia mais fundo, propriamente ao campo dos valores a defender e promover, se pretendemos realmente o desenvolvimento «de todos os homens e do homem todo», retomando a proposta montiniana (Populorum Progressio).
Mas a crise deste "ano" ou fase da vida coletiva, a que a nossa fé tem de (cor)responder com as práticas consequentes, é de particular profundidade e propriamente "cultural"; e exige uma compreensão não meramente circunstancial das coisas, para podermos ensaiar respostas capazes de criar futuro e não apenas suportarmos inevitáveis consequências. Isto se diga da sociedade em geral e igualmente se refira à vida eclesial e pastoral.
Tudo indica, de facto, que vivemos em autêntica mudança epocal, tanto na civilização como na cultura, como o Concílio Vaticano II já intuíra, aliás, num passo analítico que talvez não tenhamos "recebido" suficientemente: «O género humano encontra-se hoje numa idade nova da sua história em que mudanças profundas e rápidas se estendem gradualmente ao mundo inteiro. Provocadas pela inteligência e pela atividade criadora do homem, refletem-se no próprio homem, nos seus juízos, nos seus desejos individuais e coletivos, no seu modo de pensar e de agir, tanto em relação às coisas como aos homens. Assim, pode falar-se de uma verdadeira metamorfose social e cultural, cujos efeitos se repercutem também na vida religiosa» (Gaudium et Spes, 4).
Falar em metamorfose social e cultural é outro modo de dizer mudança de época, no tocante à civilização e à cultura, entendida aquela como conjunto de meios de comunicação e convivência e percebida esta como sistema de valores e ideais que se compartilham e transmitem, estando uma e outra intimamente correlacionadas. Diga-se, porém, que tal mudança não implica obrigatoriamente a perda do adquirido, mas a sua integração geral ou parcial num outro quadro mental e prático, a partir de outros princípios ou de necessidades sobrevindas e arvoradas em princípios...
É assim que, do ponto de vista europeu, as "idades" se sucederam, da Antiga para a Medieval, da Medieval para a Moderna e da Moderna para a Contemporânea. A civilização greco-romana era citadina e interurbana e assim mesmo a sua cultura foi formal e imperial, em torno de ideias e governos globais, da filosofia ao direito, do direito à administração e à própria religião. O mundo medieval – ao menos até ao século XII – viu o campo substituir a cidade e, por isso, a convivência localizou-se, os laços formais substituíram-se por vinculações pessoais, a religiosidade ruralizouse. O mundo moderno assistiu à recuperação da proeminência da cidade sobre o campo, à ativação comercial e monetária, à afirmação do Estado, que recuperou para si a formalidade imperial romana e se tornou garante do que então mais se apetecia, ou seja, da segurança, ao mesmo tempo que a ciência (re)começou a explicar e até reproduzir o que até aí se adivinhava ou temia. O mundo contemporâneo, em revoluções industriais e tecnológicas sucessivas, complexificou cada vez mais a comunicação, de rodoviária a ferroviária, de ferroviária a telefónica e mediática, de coletiva a particular e informática, e tudo isto a par da valorização muito acrescida e agora possibilitada do indivíduo e das suas escolhas. Foi este último ponto que "sobrou" para a pós-modernidade ou última contemporaneidade, também estas postas em causa pela atual crise – que o é sobretudo das viabilidades materiais e mentais, menos seguras.
Um rápido relance sobre a evangelização da Europa não demora em reconhecer coincidências com a sucessão civilizacional e cultural. A Igreja antiga foi episcopal e urbana, e também foi imperial depois de Constantino. A medieval foi cada vez mais rural, de paróquias e mosteiros, tornando-se um pouco mais urbana depois dos século XII e XIII, quer com uma administração eclesiástica mais desenvolvida, da cidade para o campo (sínodos diocesanos, visitações...), quer com a vida conventual e confraternal. A moderna acompanhou o desenvolvimento e expansão dos Estados, também na simbologia e função securitária. A contemporânea, sobretudo onde urbanismo, industrialização e comunicações se desenvolverem mais, revelou dificuldades acrescidas em "compreender" a urbanização sociocultural e o crescente protagonismo individual que ela gerou ou possibilitou.
Chegados à segunda metade do século XX, acresceram as dificuldades na cadeia tradicional, das famílias às paróquias, das paróquias às instituições em geral. Dificuldades que o Concílio também resumia assim: «A transformação das mentalidades e das estruturas leva com frequência à discussão dos valores recebidos particularmente entre os jovens. [...] As instituições e as leis, os modos de pensar e de sentir, herdados do passado, nem sempre parecem adaptar-se bem ao condicionalismo atual: daqui uma grande perturbação no comportamento e até nas normas que o regulam» (Gaudium et Spes, 7). E nem creio que há cinquenta anos se imaginasse onde chegaríamos (?) neste ponto, em campos tão fundamentais como a própria vida ou a família...
A necessidade duma "nova evangelização" nasce daqui e não só em relação à Europa, mas mesmo em espaços mais recentemente tocados pela missão cristã e agora inseridos numa globalização mediática e secularista, rápida e sem fronteiras. Sentida como necessária, ainda antes de João Paulo II a ter requerido como «novo ardor, novos métodos e novas expressões» do cristianismo essencial (1983), acabou por se aproximar, mesmo no continente europeu, da clássica missão ad gentes.
Assim mesmo o disse há uma década a exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa – em advertência nunca por demais retomada, pois ainda insuficientemente assumida: «Em várias partes da Europa, há necessidade do primeiro anúncio do Evangelho [...]. Com efeito, a Europa faz parte já daqueles espaços tradicionalmente cristãos, onde, para além duma nova evangelização, se requer em determinados casos a primeira evangelização. A Igreja não pode subtrair-se ao dever dum corajoso diagnóstico, que lhe permita predispor as terapias mais oportunas. Mesmo no "velho" continente existem extensas áreas sociais e culturais onde se torna necessária uma verdadeira e própria missio ad gentes» (EE, 46). Reparemos que João Paulo II não escreve "qualquer coisa como", mas "uma verdadeira e própria" missio ad gentes.
Acrescente-se que não é a primeira vez que tal se requer ou acontece. A evangelização da Europa sempre ganhou com a experiência missionária que se fez e faz além dela. Prelados e missionários, que o tinham sido nos mundos "descobertos" pelos europeus a partir do século XV, despertaram depois o catolicismo das suas terras de origem; no período dificílimo do catolicismo francês, entre o "terror" revolucionário e a regularização napoleónica, serviu de estímulo e padrão a experiência das missões do Extremo Oriente; as missões populares modernas incluíram alguns aspetos da missão ultramarina; muitas paróquias das últimas décadas ganharam outro modo de estar localmente, graças à experiência periódica de alguns dos seus membros em ações de evangelização e voluntariado noutros continentes...
Mas hoje, mesmo na Europa, o que podia ser episódico e local tem de ser constante e geral. O catolicismo europeu só terá futuro se este for declaradamente evangelizador e missionário, começando a "gentilidade" no próprio bairro, escola ou hospital, quando não na própria casa e família de cada um.
Somos cristãos e não podemos partir "de novo" senão do Deus que Jesus Cristo nos revela, tão diverso das nossas inveteradas congeminações e inadvertências. Lembra-nos o decreto Ad Gentes: «A Igreja peregrina é, por natureza, missionária, visto que, segundo o desígnio de Deus Pai, tem a sua origem na missão do Filho e na missão do Espírito Santo» (AG, 2).
Daqui apenas e urgentemente daqui, confessando uma "Igreja una, santa, católica e apostólica", que tem na catolicidade e na apostolicidade o horizonte amplo, a tradição viva e o insistente envio, de que não pode esquecer-se sem se negar a si mesma. E o que noutros tempos pôde ser uma geografia, é agora e prevalentemente uma atitude, mesmo sem sair da mesma terra, mas ganhando com o que se acompanhar, direta ou indiretamente, nas outras todas, perto ou longe.
Partindo a missão da Igreja da própria missão divina, ela tem de radicar-se, necessariamente, em experiências comunitárias autênticas, que eduquem e transportem segundo o Deus Amor. Das famílias às paróquias, dos institutos a todas as formas agregativas da vida cristã, a partilha do Evangelho e da vida é a fonte essencial da missão e da nova evangelização. Retomo, a propósito, uma luminosa passagem da exortação apostólica pós-sinodal Christifideles Laici, que já insistia em 1988: «É urgente, sem dúvida, refazer em toda a parte, o tecido cristão da sociedade humana. Mas a condição é a de refazer o tecido cristão das próprias comunidades eclesiais...» (CL, 34).
Não devemos ter qualquer dúvida acerca deste ponto. A última assembleia do Sínodo dos Bispos também não a teve, quando nos propôs reviver o encontro da Samaritana com Jesus, que a levou da água fugaz do poço de Jacob à água viva que eternamente dessedenta; encontro de que ela logo se fez mensageira junto dos seus conterrâneos. Imagem altamente sugestiva do que as nossas comunidades devem ser, como células vivas duma Igreja de acolhimento e missão.
E estou certo de que um instituto religioso como o vosso, polarizado em Jesus Coração, repetirá sobremaneira esse duplo movimento de sístole e diástole, concentração em Cristo e difusão evangélica, em benefício geral da nossa Igreja e para o mundo todo. Saber donde partimos é a condição essencial para chegarmos a algum lado, rumo à "civilização do amor", de que Deus não desiste e nós também não.
Concluindo com palavras do Padre Dehon e retomando para as de agora as necessidades da altura: "O ministério pastoral, encontrando-se diante de elementos novos, deve naturalmente inclinar-se para os mais necessitados e corresponder às exigências do tempo, como se fez em todas as épocas da história."»
D. Manuel Clemente
Seminário de Alfragide, 4 de fevereiro de 2013








