Eduardo Lourenço em 40 frases
Portugal e Europa, vida e morte, cultura e Pessoa, tempo e poesia, língua e pensamento, religião e artes, o próprio e os outros. Sobre tudo isto refletiu Eduardo Lourenço.
INFÂNCIA
"[A memória mais antiga que tenho] é a do Porto. Embora tenha nascido na Beira, numa terrinha, vim para aqui pequeno. As primeiras imagens que tenho da vida são do nevoeiro, das fábricas, do nevoeiro que atiravam as chaminés. A família repercute esse género de memórias. Lembro-me da frescura de uma fonte onde o meu pai, que era militar, ia buscar água - é uma imagem rústica daquilo que era uma cidade. A imagem que mais me aterroriza, quando estou distraído, é a imagem de um vermelho sangue, que penso que era de um camião que distribuía a carne. Uma outra imagem, que não é do Porto, mas de Matosinhos, creio eu, é a da primeira vez que vi o mar. Da minha aldeia não se via o mar." DNa, Diário de Notícias, 2003
VIDA
"A própria vida produz sentido sem nos pedir explicações. Não há uma determinação e um projeto concertado de atingir um tal fim ou tal objetivo, ou ter aquilo a que se costuma chamar de carreira, de correr para uma meta específica. Tenho vivido deixando-me surpreender." "Entre Nós", Universidade Aberta, 2002
"Em geral, nós somos o discurso dos outros. Nós, por nós próprios, não temos discurso. Não devemos ter. Mas mesmo que quiséssemos ter também não tínhamos. Agora, cada um, no seu relacionamento com o outro tem uma imagem. Culturalmente, no domínio da imagem pública, sou um ensaísta. E já estou crucificado nessa maravilhosa cruz." Público, 2003
"Não há definição exterior à nossa própria vida, ela não tem exterior. Nós somos a nossa vida, não temos outra definição, é esta. Olhando para trás, vejo-a com espanto - de que ela não possa recomeçar." Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016
OS OUTROS
"O que mais me surpreende nos outros: a autenticidade. Cada pessoa é um mundo. Mesmo as pessoas que têm momentos de menos visibilidade e relevo, as pessoas são um mistério a que nunca daremos a volta." Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016
PENSAMENTO
"O desejo de conhecimento é o que define o homem, desde Aristóteles. Somos aquele que deseja conhecer, deseja conhecer tudo, deseja conhecer sem fim. Os gregos foram os primeiros a falar dessa libido, desse tonel que nunca seria preenchido, que a sabedoria máxima era ter o conhecimento do que não se sabe." DNa, Diário de Notícias, 2003
"Pensar é um diálogo que temos connosco próprios." Expresso, 2017
CULTURA
"Vemos a nossa cultura como um museu e a do outro como uma coisa viva." Público, 2001
"A cultura serve para nos despir de toda a arrogância, particularmente essa que consiste em imaginar que, sendo cultivados, encontramos Deus. A cultura é um exercício de desestruturação, não de acumulação de coisas. É uma constante relativização do nosso desejo, legítimo, de estar em contacto com aquilo que é verdadeiro, belo, bom. É esse exercício de desconfiança, masoquista, de desencantamento. Só para que não caiamos no único pecado, que é verdadeiramente o pecado contra o espírito: o orgulho." DNa, Diário de Notícias, 2003
LÍNGUA
"A nossa identidade é-nos dada pela língua. O resto é identidade humana, normal, genérica. A identidade no sentido em que a tomamos, como qualquer coisa de particular, uma voz que é só nossa, que escutamos, é dada pela língua. Em segunda instância pela escrita, pela memória escrita. Uma cultura é uma memória, qualquer coisa que se está sempre a reciclar dentro do mesmo." DNa, Diário de Notícias, 2003
ARTES
"Somos pessoas racionais, animais racionais, se bem que a nossa animalidade seja discutível. Porém, os artistas não criam em função da razão ou do bom senso. Criam em função de um estímulo de qualquer coisa, que os ofusca e interroga. E, se tem uma tradução imagética, essa tradução é a primeira manifestação de arte propriamente dita. A essência da arte é a mimesis. Estamos cercados de objetos e tentamos perceber de que é que eles nos falam. Com exceção da música, as artes são imitativas e nasceram de uma cópia da própria natureza." Expresso, 2017
"A literatura não tem uma função. É um efeito do que somos de mais misterioso, de mais enigmático e ao mesmo tempo de mais ambicioso. Penso que, de todas as artes, a que revela o que a Humanidade é de mais profundo e absoluto é a música. A literatura é uma música um tom abaixo. Não se explica, não é da ordem do conceito como a filosofia. É natural que os homens reservem à literatura a sua maior atenção. A literatura é o nosso discurso fantasmático, absoluto. Todas as culturas se definem pela relação com o seu próprio imaginário. A encarnação dele é a literatura." Público, 2017
POESIA
"A poesia é o lugar onde existe essa consciência de que não há resposta, e de que não haver resposta é o aguilhão mais extremo, mais duro, mais incorruptível. Essa não-resposta constitui um Deus." Público, 2001
"A poesia, quando é, ela é o dizer absoluto." DNa, Diário de Notícias, 2003
"Somos poetas por definição porque somos falantes, criadores de ficção. Falar é ficcionar, essa é a nossa primeira relação com o mundo." Expresso, 2017
TEMPO
"Nós somos tempo. Compreender aquilo que nós somos é compreender o tempo que nós somos, aquilo que o tempo exterior, o tempo da história, o tempo da sociedade é em nós. Não se faz essa aprendizagem sem que ela seja uma metamorfose permanente daquilo que nós somos." "Entre Nós", Universidade Aberta, 2002
"A eternidade não é uma coisa, um sítio final para onde tudo conflui. Ela está implicada na sucessão de instantes." Público, 2014
"Somos hóspedes do instante, cada um de nós. Mas sempre com o sentimento de que cada esse instante não é diferente do que chamamos de eternidade, a eternidade como uma coleção de instantes. O tempo é feito desses instantes, de nada e de tudo ao mesmo tempo." Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016
"Tenho uma relação com o tempo ontologicamente distraída. O tempo passa, acabou. Eu estou cansado de ter tanto tempo! Para mim talvez interessante seja que haja gerações mais novas que encontrem em mim alguma coisa de estimulante naquilo que escrevo. Isso é que é realmente a consolação das consolações." Público, 2003
RELIGIÃO
"Cristo não disse que vinha salvar a humanidade como um mágico, mas veio convencido de que a humanidade se salvaria através do amor que ele portava em si mesmo. Tenho na referência crística a referência fundamental da minha educação e da minha maneira de ser." DNa, Diário de Notícias, 2003
"Não é uma questão de dúvidas [sobre se Deus existe]. O problema é saber se nós existimos para Deus. O problema não é sobre a existência de Deus mas o contrário. A relação com Deus é impensável e sempre nos está pensando. Deus é o limite do pensável. A esse título Deus é absolutamente incontornável. Nós não temos nenhum conceito que seja um englobante da experiência humana em geral a não ser que ela seja só simples reiteração do existente." Público, 2003
"[É um homem crente?] Esta é uma questão que, uma vez posta, não pode ter uma resposta. Porque é "a" questão. Não concebo uma explicação do mundo que dispense a referência a uma ação transcendente. Nós figuramos como sendo de um ente que criou o mundo, e isso pode ser uma coisa infantilizante. Mas faz parte das nossas referências na tradição ocidental". Expresso, 2017
PORTUGAL
"Poucos povos serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente Quixote e Sancho. Quando se sonharam sonhos maiores do que nós, mesmo a parte de Sancho que nos enraíza na realidade está sempre pronta a tomar os moinhos por gigantes. A nossa última aventura quixotesca tirou-nos a venda dos olhos, e a nossa imagem é hoje mais serena e mais harmoniosa que noutras épocas de desvairo o pôde ser. Mas não nos muda os sonhos. "Nós e a Europa ou as Duas Razões", 1988
"Os portugueses ainda vivem com um excesso de passado. Sobretudo com essa espécie de fixação histórica, que pode ser de tipo erótico ou outra, temos a nossa fixação sobre o nosso período áureo. Estamos eternamente no século XVI, estamos eternamente navegando para a Índia. Porque foi aquilo que fizemos enquanto povo de mais extraordinário, aí deixámos a nossa marca na história do mundo." "Entre Nós", Universidade Aberta, 2002
"A nossa História não é trágica, é muito protegida. Mesmo quando a Espanha esteve aqui, Portugal nunca perdeu a sua identidade real. Os espanhóis até pediam autorização para ir para a parte portuguesa! Portugal era a nação mais coerente do ponto de vista da Europa e tem uma espécie de identidade forjada a partir da sua própria fraqueza. Isso é que é verdadeiramente extraordinário - tivemos esta capacidade de fazer da fraqueza força." Público, 2003
"A história de Portugal é, de facto, singular. Os portugueses foram para todo o lado, mas nunca saíram, levaram a casinha com eles. Fizeram a mesma coisa na Europa. Salvo uma elite, que se preocupava com o que se passava lá fora - e imitava ou recusava -, a todos os outros foi a Europa que lhes chegou: veio por aí abaixo com os caminhos-de-ferro." Público, 2007
"Portugal não é uma ilha, mas vive como se fosse. Talvez por uma determinação de quase autodefesa. O que me admira mais não é a preocupação constante que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos sempre a viver um Ronaldo coletivo, um "nós somos o melhor do mundo"." Público, 2017
"O narcisismo português, para mim, é um narcisismo inocente; ninguém pensa que vai morrer no espelho. Mas às vezes acontece." Público, 2017
EUROPA
"A Europa produziu um dos acontecimentos mais importantes do século passado, que foi precisamente a descolonização. Foram séculos e séculos que davam à Europa a superioridade no acesso às matérias-primas e que eram uma mais-valia para alimentar a economia. Isso acabou. A Europa agora está nua." Público, 2013
"Somos herdeiros do Império Romano. Tanto a Europa do Sul, mais antiga que a outra, a nórdica, mais tarde a dominante depois dos tempos de Shakespeare. A Europa está confrontada com o sentido da sua própria História mais no sentido da normalização da nossa relação - nos tempos modernos - connosco próprios." Rádio Renascença, 2016
"É quase escabroso ser europeu e estar preocupado com o destino europeu. Porque aquilo que acontece fora da Europa é muito mais preocupante e dramático." Expresso, 2017
FERNANDO PESSOA
"Fernando Pessoa deu a volta a toda essa nossa nostalgia e transformou-a em utopia. Hoje, a nível simbólico, vivemos nessa nova universalidade criada pela utopia de que Fernando Pessoa é representante. Não é a utopia de ninguém, não é a utopia de um povo particular, somos nós como representantes da humanidade inteira, aberta, responsabilizada, que vai construir o futuro sem saber qual será esse futuro." "Entre Nós", Universidade Aberta, 2002
"Cada geração reencontra outra maneira de reescrever o que Homero, Dante, Camões e outros já escreveram. Como Pessoa. Pessoa é um bisneto de Shakespeare. Ele é incompreensível sem as leituras de Shakespeare. Mesmo se não soubéssemos, bastaria consultar o seu volume de Shakespeare. Tudo está sublinhado. A Bíblia dele foi Shakespeare." Público, 2017
MORTE
"Estamos a falar de uns sujeitos que vão morrer. E que sabem que vão morrer, como os gladiadores do circo romano. O melhor é encarar isso da maneira mais filosófica possível. Quer dizer, sabendo que o que quer que pensemos sobre aquilo que nos espera, nada podemos. Está fora do nosso alcance. Não somos os sujeitos de nós próprios. Nascemos embarcados, como dizia Pascal. Depois, somos desembarcados." Público, 2014
"A morte é só isso, essa a ausência. Não pode ser dita, não pode ser escrita. Só pelos outros" RTP, 2015
"Com a morte da minha mulher entrei num outro tipo de espaço. O espaço verdadeiro do diálogo silencioso que eu tenho com alguém que já está num tempo fora deste tempo. É o absoluto silêncio, de que todos nós, num momento ou noutro, partilhamos. Sempre nos morreu alguém. Sempre nos morrerá alguém, sempre morrerá alguém a toda a gente. Nós só somos verdadeiramente quando esse alguém que contava para nós já não existe. Essa é o verdadeiro fim de tudo. Vivo esse silêncio na memória da recordação, na memória, na imagem, sempre com o sentimento da absoluta perdição e ausência." Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016
"Ninguém pode dizer que a morte não assuste. Mas, curiosamente, com o tempo a morte vai ser aceite, não só como inevitável mas pode adquirir... mudar de signo, mudar de sinal, se essa morte é a morte do outro. Ninguém vive a sua morte. A nossa morte não é vivida. É sempre qualquer coisa que nos é imposta, em absoluto, de fora para dentro. A morte do outro, essa é a nossa morte." Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016
"Ninguém vive a sua morte. A nossa morte não é vivida. É sempre qualquer coisa que nos é imposta, em absoluto, de fora para dentro. A morte do outro, essa é a nossa morte." Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016
"O pouco ou muito que eu tinha de fazer neste mundo está feito ou não está feito." Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016
"Nunca sabemos o que verdadeiramente nos move. Gostava de acabar os dias reconciliado com o mundo, e sobretudo saber que mundo foi este em que vivi e o que é a vida. Sei disso tanto agora que tenho quase cem anos como quando tinha dois anos." Público, 2017
Jornal de Notícias, in www.jn.pt/artes/eduardo-lourenco-em-40-frases-13095805.html