Pe. Cantalamessa: Catequeses Quaresmais

Catequeses Quaresmais do P. Raniero Cantalamessa à Cúria Romana

Cidade do Vaticano, 25 de Março de 2011

Primeira pregação quaresmal

As duas faces do amor: ‘eros’ e ‘ágape’

1. As duas faces do amor280972-2

Com as prédicas desta Quaresma, eu gostaria de continuar o esforço, iniciado no Advento, de trazer uma pequena contribuição à re-evangelização do Ocidente secularizado, que constitui nesta hora a preocupação principal de toda a Igreja e, em particular, do Santo Padre Bento XVI.

Há um âmbito em que a secularização age de maneira especialmente difusa e nefasta, e é o âmbito do amor. A secularização do amor consiste em separar o amor humano de Deus, em todas as formas desse amor, reduzindo-o a algo meramente “profano”, onde Deus sobra e até incomoda.

Mas o amor não é um assunto importante apenas para a evangelização, ou seja, para as relações com o mundo. Ele importa, antes de todo o mais, para a própria vida interna da Igreja, para a santificação dos seus membros. É nesta perspectiva que se situa a encíclica Deus caritas est, do Papa Bento XVI, e é nela que nós também nos colocamos para estas reflexões.

O amor sofre de uma separação nefasta não só na mentalidade do mundo secularizado, mas também, do lado oposto, entre os crentes e, em particular, entre as almas consagradas. Poderíamos formular a situação, simplificando ao máximo, assim: temos no mundo um eros sem ágape; e entre os crentes, temos frequentemente um ágape sem eros.

O eros sem ágape é um amor romântico, mas comummente passional, até violento. Um amor de conquista, que reduz fatalmente o outro a objecto do próprio prazer e ignora toda dimensão de sacrifício, de fidelidade e de doação de si. Não é preciso insistir na descrição desse amor, porque se trata de uma realidade que temos todo dia diante dos nossos olhos, propagandeada com estrondo pelos romances, filmes, novelas, internet, revistas. É o que a linguagem comum entende, hoje, com a palavra “amor”.

Para nós é mais útil entender o que significa ágape sem eros. Na música, existe uma diferenciação que pode nos ajudar a ter uma ideia: a diferença entre o jazz quente e o jazz frio. Eu li certa vez essa caracterização dos dois géneros, mas sei que não é a única possível. O jazz quente (hot) é o jazz apaixonado, ardente, expressivo, feito de ímpetos, de sentimentos e, portanto, de improvisações originais. O jazz frio (cool) é o profissional: os sentimentos se tornam repetitivos, o estro é substituído pela técnica, a espontaneidade pelo virtuosismo.

Com base nessa distinção, o ágape sem eros é um “amor frio”, um amar parcial, sem a participação do ser inteiro, mais por imposição da vontade do que por ímpeto íntimo do coração. Um entrar num cenário predefinido, em vez de criar um próprio, realmente irrepetível, como irrepetível é cada ser humano perante Deus. Os actos de amor voltados para Deus parecem aqueles de namorados desinspirados, que escrevem à amada cartas copiadas de modelos prontos.

Se o amor mundano é um corpo sem alma, o amor religioso praticado assim é uma alma sem corpo. O ser humano não é um anjo, um espírito puro; é alma e corpo substancialmente unidos: tudo o que ele faz, amar inclusive, tem que reflectir essa estrutura. Se o componente humano ligado ao tempo e à corporeidade é sistematicamente negado ou reprimido, a saída será dúplice: ou seguir adiante aos arrastos, por senso de dever, por defesa da própria imagem, ou ir atrás de compensações mais ou menos lícitas, chegando até os dolorosíssimos casos que estão afligindo actualmente a Igreja. No fundo de muitos desvios morais de almas consagradas, não é possível ignorá-lo: há uma concepção distorcida e retorcida do amor.

Temos, então, um duplo motivo e uma dupla urgência de redescobrir o amor na sua unidade original. O amor verdadeiro e integral é uma pérola encerrada entre duas conchas que são o eros e o ágape. Não podem ser separadas, essas duas dimensões do amor, sem destruí-lo, como o hidrogénio e o oxigénio não podem ser separados sem se privarem da água.

 

2. A tese da incompatibilidade entre os dois amores

A reconciliação mais importante entre as duas dimensões do amor é prática. É aquela que acontece na vida das pessoas, mas, para ser possível, ela precisa começar pela reconciliação entre o eros e o ágape inclusive teoricamente, na doutrina. Isto nos permitirá conhecer finalmente o que é que se entende por estes dois termos tão frequentemente usados e subentendidos.

A importância da questão nasce do fato de existir uma obra que popularizou em todo o mundo cristão a tese oposta da inconciliabilidade das duas formas de amor. É o livro do teólogo luterano sueco Anders Nygren, intitulado Eros e Ágape. Podemos resumir o pensamento dele nestes termos: eros e ágape designam dois movimentos opostos. O primeiro indica ascensão e subida do homem para Deus e para o divino como próprio bem e própria origem; o outro, o ágape, indica a descida de Deus até o homem com a encarnação e a cruz de Cristo, e, portanto, a salvação oferecida ao homem sem mérito nem resposta de sua parte, a não ser a fé e somente a fé. O Novo Testamento fez uma escolha precisa, usando, para exprimir o amor, o termo ágape, e refutando sistematicamente o termo eros.

Foi São Paulo quem recolheu e formulou com mais pureza essa doutrina do amor. Depois dele, ainda segundo a tese de Nygren, essa antítese radical se perdeu para dar lugar a tentativas de síntese. Assim que o cristianismo entra em contacto cultural com o mundo grego e a visão platónica, já com Orígenes, há uma reavaliação do eros, como movimento ascensional da alma rumo ao bem e ao divino, como atracção universal exercitada pela beleza e pelo divino. Nesta linha, o Pseudo Dionísio Areopagita escreverá que “Deus é eros” [1], substituindo com este termo o ágape da célebre frase de João (I Jo, 4,10).

No ocidente, uma síntese análoga foi feita por Agostinho com a doutrina da caritas, entendida como doutrina do amor descendente e gratuito de Deus pelo homem (ninguém falou da “graça” com mais força do que ele), mas também como anseio do homem pelo bem e por Deus. É dele a afirmação: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e inquieto está o nosso coração até descansar em ti” [2]. Também é dele a imagem do amor como um peso que atrai a alma, como por força de gravidade, para Deus, como ao lugar do próprio repouso e prazer [3]. Tudo isso, para Nygren, insere um elemento do amor de si, do próprio bem, e, portanto, de egoísmo, que destrói a pura gratuidade da graça; é uma recaída na ilusão pagã de fazer a salvação consistir numa ascensão a Deus, em vez de na gratuita e imotivada descida de Deus até nós.

Prisioneiros desta impossível síntese entre eros e ágape, entre amor de Deus e amor de si, são, para Nygren, São Bernardo, quando define o grau supremo do amor de Deus como um “amar a Deus por si mesmo” e um “amar a si mesmo por Deus” [4]; São Boaventura, com seu ascensional Itinerário da mente para Deus; e São Tomás de Aquino, que define o amor de Deus infuso no coração do baptizado (cf. Rom, 5,5) como “o amor com que Deus nos ama e nos faz amá-lo” (amor quo ipse nos diligit et quo ipse nos dilectores sui facit) [5]. Isto viria a significar que o homem, amado por Deus, pode, por sua vez, amar a Deus, dar-lhe algo de seu, o que destruiria a absoluta gratuidade do amor de Deus. No plano existencial, ainda de acordo com Nygren, o mesmo desvio acontece na mística católica. O amor dos místicos, com a sua fortíssima carga de eros, nada é, para ele, senão amor sensual sublimado, uma tentativa de estabelecer com Deus uma relação de presunçosa reciprocidade em amor.

Quem rompeu a ambiguidade e devolveu à luz a pura antítese paulina, segundo o autor, foi Lutero. Fundamentando a justificação apenas na fé, ele não excluiu a caridade do momento-base da vida cristã, como o acusa a teologia católica; antes, libertou a caridade, o ágape, do elemento espúrio do eros. À fórmula do “somente a fé”, com exclusão das obras, corresponderia, em Lutero, a fórmula do “somente o ágape”, com exclusão do eros.

Não me cabe estabelecer se o autor interpretou corretamente neste ponto o pensamento de Lutero, que, deve-se dizer, nunca pôs o problema em termos de contraste entre eros e ágape como fez com fé e obras. É significativo, no entanto, que Karl Barth, num capítulo da sua Dogmática Eclesial, também chegue ao mesmo resultado que Nygren de um contraste insanável entre eros e ágape. “Onde entra em cena o amor cristão”, escreve ele, “começa de súbito o conflito com o outro amor, e este conflito não tem mais fim” [6]. Eu digo que se isto não é luteranismo, é sem dúvida teologia dialéctica, teologia do “aut-aut”, da antítese, não da síntese.

O contragolpe desta operação é a radical mundanização e secularização do eros. Enquanto certa teologia retirava o eros do ágape, a cultura secular era bem feliz, por sua vez, ao retirar o ágape do eros, ou seja, ao retirar do amor humano toda referência a Deus e à graça. Freud apresentou para isto uma justificativa teórica, reduzindo o amor a eros e o eros a libido, uma mera pulsão sexual que luta contra toda repressão e inibição. É o estágio a que se reduz hoje o amor em muitas manifestações da vida e da cultura, principalmente no mundo do espectáculo.

Dois anos atrás eu estava em Madrid. Os jornais só faziam falar de uma certa mostra de arte na cidade, intitulada As lágrimas do eros. Era uma mostra de obras artísticas de cunho erótico – quadros, desenhos, esculturas – que pretendiam pôr em foco o inseparável vínculo que existe, na experiência do homem moderno, entre eros e thanatos, entre amor e morte. À mesma constatação se chega quando se lê a colectânea de poesias As flores do mal, de Baudelaire, ou Uma temporada no inferno, de Rimbaud. O amor que por natureza deveria levar à vida acaba ao invés levando à morte.

3. Retorno à síntese

Se não podemos mudar de uma vez a ideia de amor que o mundo possui, podemos, sim, corrigir a visão teológica, que, sem querer, a favorece e legitima. É o que fez de maneira exemplar o papa Bento XVI com a encíclica Deus caritas est. Ele reafirma a síntese católica tradicional expressando-a com os termos modernos. “Eros e ágape”, lemos ali, “amor ascendente e amor descendente, não se deixam jamais separar de todo um do outro [...]. A fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto ao original fenómeno humano que é o amor, mas aceita o homem todo, intervindo na sua procura pelo amor para purificá-la, destruindo, em paralelo, novas dimensões suas” (7-8). Eros e ágape estão unidos à própria fonte do amor, que é Deus: “Ele ama”, segue o texto da encíclica, “e este seu amor pode ser qualificado certamente como eros, que, no entanto, é também e totalmente ágape” (9).

Entende-se o acolhimento insolitamente favorável que este documento pontifício encontrou mesmo nos ambientes leigos mais abertos e responsáveis. Dá esperança ao mundo. Corrige a imagem de uma fé que toca o mundo em tangente, sem penetrá-lo, com a imagem evangélica da levedura que faz a massa fermentar; substitui a ideia de um reino de Deus que veio julgar o mundo pela de um reino de Deus que veio salvar o mundo, começando pelo eros que é a sua força dominante.

À visão tradicional, própria tanto da teologia católica como da ortodoxa, pode-se dar, creio eu, uma confirmação também do ponto de vista da exegese. Quem sustenta a tese da incompatibilidade entre eros e ágape se baseia no fato de o Novo Testamento evitar com esmero – e, ao parecer, propositadamente – o termo eros, usando em seu lugar sempre e somente ágape (a não ser por algum raro emprego do termo philia, que indica um amor de amizade).

O fato é verdadeiro, mas não são verdadeiras as conclusões que dele se tiram. Supõe-se que os autores do NT estivessem a par tanto do sentido que o termo eros tinha na linguagem comum (o eros assim chamado “vulgar”) como do sentido elevado e filosófico que tinha, por exemplo, em Platão, o chamado eros “nobre”. Na aceitação popular, eros indicava mais ou menos o que indica hoje quando se fala de erotismo ou de filmes eróticos: a satisfação do instinto sexual, um degradar-se mais do que elevar-se. Na aceitação nobre, indicava um amor pela beleza, a força que mantém o mundo e que impulsiona todos os seres à unidade, aquele movimento de ascensão rumo ao divino que os teólogos dialécticos reputam incompatível com o movimento de descida do divino até o homem.

É difícil defender que os autores do NT, dirigindo-se a pessoas simples e de nenhuma cultura, pretendessem lhes falar do eros de Platão. Eles evitaram o termo eros pelo mesmo motivo que o pregador de hoje evita o termo erótico, ou, se o emprega, é somente em sentido negativo. O motivo é que, tanto naquele tempo como agora, a palavra evoca o amor na sua expressão mais egoísta e sensual [7]. A desconfiança dos primeiros cristãos quanto ao eros se agravava ainda pelo papel que ele desempenhava nos desenfreados cultos dionisíacos.

Tão logo o cristianismo entra em contacto e diálogo com a cultura grega daquele tempo, cai por terra de imediato, como já vimos, toda preclusão quanto ao eros. Ele é usado com frequência, nos autores gregos, como sinónimo de ágape, e empregado para indicar o amor de Deus pelo homem, como também o amor do homem por Deus, o amor pelas virtudes e por tudo o que é belo. Basta, para nos convencermos disso, uma simples olhada no Léxico Patrístico Grego, de Lampe [8]. O sistema de Nygren e Barth, portanto, foi construído sobre uma falsa aplicação do assim chamado argumento “ex silentio”.

4. Um eros para os consagrados

O resgate do eros ajuda acima de tudo os enamorados humanos e os esposos cristãos, mostrando a beleza e a dignidade do amor que os une. Ajuda os jovens a experimentar o fascínio do outro sexo não como coisa turva, a ser vivida às costas de Deus, mas, ao contrário, como um dom do Criador para a sua alegria, desde que vivido na ordem querida por Ele. Na sua encíclica, o papa acena ainda para esta função positiva do eros sobre o amor humano quando fala do caminho de purificação do eros, que leva da atracção momentânea ao “para sempre” do matrimónio (4-5).

Mas o resgate do eros deve ajudar também a nós, consagrados, homens e mulheres. Eu acenei no início ao perigo que as almas religiosas correm de um amor frio, que não desce da mente para o coração. Um sol de inverno, que ilumina, mas não aquece. Se eros significa ímpeto, desejo, atracão, não devemos ter medo dos sentimentos, nem muito menos desprezá-los e reprimi-los. Quando se trata do amor de Deus, escreveu Guilherme de Saint Thierry, o sentimento de afeto (affectio) é também graça; a natureza não pode infundir um sentimento assim [9].

Os salmos estão cheios desse anseio do coração por Deus: “A ti, Senhor, eu elevo a minh’alma...”. “A minh’alma tem sede de Deus, do Deus vivente”. “Preste atenção”, diz o autor da Nuvem do não conhecimento, “a este maravilhoso trabalho da graça na tua alma. Ele não é senão impulso imprevisto, que surge sem aviso e aponta directamente para Deus, como uma centelha que se desencarcera do fogo... Golpeie essa nuvem do não conhecimento com a flecha afiada do desejo de amor e não esmoreça, ocorra o que ocorrer” [10]. É suficiente, para tanto, um pensamento, um movimento do coração, uma jaculatória.

Mas tudo isso não nos é bastante e Deus o sabe melhor que nós. Somos criaturas, vivemos no tempo e num corpo; precisamos de uma tela na qual projectar o nosso amor que não seja apenas “a nuvem do não conhecimento”, o véu de escuridão por trás do qual se oculta o Deus que ninguém nunca viu e que habita numa luz inacessível...

A resposta que se dá a esta interrogação nós conhecemos bem: por isso mesmo Deus nos deu o próximo para amarmos. “Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor se torna perfeito em nós. Quem não ama o próprio irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4, 12-20). Mas devemos ficar atentos para não saltar uma fase decisiva: antes do irmão que vemos, há outro que também vemos e tocamos: o Deus feito carne, Jesus Cristo! Entre Deus e o próximo existe o Verbo feito carne, que reuniu os dois extremos numa só pessoa. É nele que o próprio amor ao próximo encontra o seu fundamento: “Foi a mim que o fizestes”.

O que significa tudo isto pelo amor de Deus? Que o objecto primário no nosso eros, da nossa busca, desejo, atracão, paixão, deve ser o Cristo. “Ao Salvador é pré-ordenado o amor humano desde o princípio, como ao seu modelo e fim, como uma urna tão grande e tão ampla que pudesse acolher a Deus [...] O desejo da alma é unicamente de Cristo. Aqui é o lugar do seu repouso, porque só Ele é o bem, a verdade e tudo quanto inspira amor”. Não quer dizer restringir o horizonte do amor cristão de Deus a Cristo; quer dizer amar a Deus do jeito que Ele quer ser amado. “O Pai vos ama porque vós me amais” (Jo 16, 27). Não se trata de um amor mediato, quase por procuração, por meio do qual quem ama Jesus “é como se” amasse o Pai. Não. Jesus é um mediador imediato; amando a Ele, amamos, ipso facto, o Pai. “Quem me vê, vê o Pai”; quem me ama, ama o Pai.

É verdade que nem mesmo a Cristo se vê, mas ele existe. Ressuscitou, vive, está connosco, de modo mais real do que o mais apaixonado esposo está com a esposa. Eis o ponto crucial: pensar em Cristo não como uma pessoa do passado, mas como o Senhor ressuscitado e vivente, com quem eu posso falar, a quem eu posso beijar se quiser, certo de que o meu beijo não termina na estampa ou no lenho de um crucifixo, mas num rosto e em lábios de carne viva (ainda que espiritualizada), felizes de receber o meu beijo.

A beleza e a plenitude da vida consagrada depende da qualidade do nosso amor por Cristo. É só o que pode nos defender dos altos e baixos do coração. Jesus é o homem perfeito; nele se encontram, em grau infinitamente superior, todas aquelas qualidades e atenções que um homem procura numa mulher e uma mulher no homem. O amor dele não nos elimina necessariamente a sedução das criaturas e, em particular, a atracção do outro sexo (ela faz parte da nossa natureza, que Ele criou e não quer destruir). Mas nos dá a força para vencer essas atracções com uma atracção mais forte. “Casto”, escreve São João Clímaco, “é quem afasta o eros com o Eros” [11].

Será que tudo isso destrói a gratuidade do ágape, pretendendo dar a Deus alguma coisa em troca do seu coração? Anula a graça? De jeito nenhum. Antes, a exalta. O que, afinal, neste mundo, damos a Deus se não o que recebemos dele? “Nós amamos porque Ele nos amou primeiro” (1 Jo 4, 19). O amor que damos a Cristo é o seu próprio amor por nós, que devolvemos a Ele, como o eco nos devolve a nossa voz.

Onde está então a novidade e a beleza deste amor que chamamos eros? O eco reenvia para Deus o seu próprio amor, mas enriquecido, colorido e perfumado com a nossa liberdade. E é tudo o que Ele quer. A nossa liberdade lhe paga tudo. E não só isto, mas, coisa inaudita, escreve Cabasilas, “recebendo de nós o dom do amor em troca de tudo o que Ele nos deu, Ele ainda se reputa nosso devedor” [12]. A tese que contrapõe eros e ágape se baseia em outra conhecida contraposição: a contraposição entre graça e liberdade, e, mais ainda, na negação da liberdade no homem decaído.

Eu procurei imaginar, Veneráveis padres e irmãos, o que diria Cristo ressuscitado se, como fazia na vida terrena, quando entrava aos sábados numa sinagoga, viesse agora sentar-se aqui, no meu lugar, e nos explicasse em pessoa qual é o amor que Ele deseja de nós. Quero compartilhar com vocês, com simplicidade, o que eu penso que Ele diria. Pode nos servir para o nosso exame de consciência sobre o amor:

O amor ardente:

É colocares-me sempre em primeiro lugar.
É procurares-me alegrar em todo momento.
É confrontares teus desejos com o meu desejo.
É viveres como meu amigo, confidente, esposo, e seres feliz assim.
É te inquietares ao pensamento de ficar um pouco longe de mim.
É seres repleto de felicidade quando estou contigo.
É estares disposto a grandes sacrifícios para nunca me perder.
É preferires viver pobre e desconhecido comigo a rico e famoso sem mim.
É falares comigo como ao amigo mais amado em todo momento possível.
É te confiares a mim olhando para o teu futuro.
É desejares perder-te em mim como meta do teu existir.

Se vocês acharem, como eu acho, que estamos muito longe dessa situação, não nos desencorajemos. Temos alguém que pode nos ajudar a chegar lá se pedirmos sua ajuda. Repitamos com fé ao Espírito Santo: Veni, Sancte Spiritus, reple tuorum corda fidelium et tui amoris in eis ignem accende: Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor.

[Traduzido do original em italiano por ZENIT]


Notas:

(1) Pseudo Dionísio Areopagita, Os nomes divinos, IV,12 (PG, 3, 709 em diante.)

(2) S. Agostinho, Confissões I, 1.

(3) Comentário ao evangelho de João, 26, 4-5.

(4) Cf. S. Bernardo, De diligendo Deo, IX,26 –X,27.

(5) S. Tomás de Aquino, Comentário à Carta aos Romanos, cap. V, liç.1, n. 392-293; cf. S. Agostinho, Comentário à Primeira Carta de João, 9, 9.

(6) K. Barth, Dogmática eclesial, IV, 2, 832-852.

(7) O sentido que os primeiros cristãos davam à palavra eros se deduz do famoso texto de S. Inácio de Antioquia,  Carta aos Romanos, 7,2: “O meu amor (eros) foi crucificado e não há em mim fogo de paixão…não me atraem o nutrir corrupção e os prazeres desta vida”. “O meu eros” não indica aqui Jesus crucificado, mas “o amor de mim mesmo” , o apego aos prazeres terrenos, na linha do paulino “Fui crucificado com Cristo, não sou mais eu que vivo” (Gal 2, 19 s.).

(8) Cf. G.W.H. Lampe,  A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1961, pp.550.

(9) Guilherme de St. Thierry, Meditações, XII, 29 (SCh  324, p. 210).

(10 Anónimo, A nuvem do não conhecimento, trad. Italiana, Ed. Áncora, Milão, 1981, pp. 136.140.

(11) S. João Clímaco, A escada do paraíso, XV,98 (PG 88,880).

(12) N. Cabasilas, Vida em Cristo, VI, 4 .


Catequeses Quaresmais do P. Raniero Cantalamessa à Cúria Romana

Cidade do Vaticano, 1 de Abril de 2011

Segunda pregação quaresmal

DEUS É AMOR

O primeiro e fundamental anúncio que a Igreja tem a missão de levar ao mundo, e que o mundo espera da Igreja, é o amor de Deus. Mas, para terem como transmitir esta certeza, é preciso que os próprios evangelizadores sejam intimamente permeados por esse amor, que tem que ser a luz da sua vida. É para esta meta que, pelo menos em mínima parte, a presente meditação pretende se dirigir.

A expressão “amor de Deus” tem duas acepções bem diferentes: uma em que Deus é objeto e a outra em que Deus é sujeito: uma que indica o nosso amor por Deus e a outra que indica o amor de Deus por nós. O homem, mais propenso por natureza a ser activo que passivo, mais a ser credor que devedor, sempre deu precedência ao primeiro significado, àquilo que nós fazemos para Deus. A pregação cristã também seguiu esse caminho, falando, em certas épocas, quase só do “dever” de amar a Deus (“De diligendo Deo”).

Mas a revelação bíblica dá a prevalência ao segundo significado: ao amor “de” Deus, não ao amor “por” Deus. Aristóteles dizia que Deus move o mundo “porque é amado”, ou seja, é objeto de amor e causa final de toda criatura [1]. Mas a bíblia diz exactamente o contrário: Deus cria e move o mundo porque ama o mundo. O mais importante do amor de Deus não é que o homem ama a Deus, mas que Deus ama o homem e o ama “primeiro”: “Nisso está o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas Ele quem nos amou” (1Jo 4,10). Disso depende todo o resto, incluída a nossa própria possibilidade de amar a Deus: “Nós amamos porque Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19).

1. O amor de Deus na eternidade

João é o homem dos grandes saltos. Ao reconstruir a história terrena de Cristo, os outros tinham se atido ao seu nascimento de Maria; ele viaja para muito antes, do tempo para a eternidade. “No princípio era o Verbo”. E faz o mesmo a respeito do amor. Todos os outros, Paulo inclusive, falaram do amor de Deus manifestado na história e culminado na morte de Cristo; João vai além da história. Não nos apresenta só um Deus que ama, mas um Deus que é amor. “No princípio era o amor, o amor estava junto de Deus e o amor era Deus”: assim podemos destrinçar a sua afirmação “Deus é amor” (1Jo 4,10).

Sobre ela, Agostinho escreveu: “Se não houvesse, em toda esta carta e em todas as páginas da Escritura, nenhum elogio do amor além desta única palavra, que Deus é amor, não precisaríamos de nada mais” [2]. Toda a bíblia não faz senão “narrar o amor de Deus” [3]. Esta é a notícia que sustenta e explica todas as outras. Discute-se, sem fim, e não só de hoje, se existe Deus. Mas eu acho que o mais importante não é saber se Deus existe, mas se Ele é amor. Se, por hipótese [4], Ele existisse mas não fosse amor, teríamos mais a temer do que a nos alegrar com a sua existência, como ocorria nos primeiros povos e civilizações. A fé cristã nos assegura justo isso: Deus existe e é amor!

O ponto de partida da nossa viagem é a Trindade. Por que os cristãos crêem na Trindade? A resposta é: porque crêem que Deus é amor. Onde Deus é concebido como Lei suprema ou Poder supremo, não é preciso, evidentemente, uma pluralidade de pessoas, e, portanto, não se entende a Trindade. O direito e o poder podem ser exercidos por uma só pessoa. O amor não.

Não há amor sem que seja de algo ou de alguém, como, segundo o filósofo Husserl, não há conhecimento que não seja de algo. Quem é que Deus ama, para ser definido amor? A humanidade? Mas os homens só existem há poucos milhões de anos! Antes, a quem Deus amava, para ser definido amor? Ele não pode ter começado a ser amor a um certo ponto do tempo, porque Deus não pode mudar a sua essência. O cosmo? Mas o universo existe faz poucos bilhões de anos. Antes, o que Deus amava para poder-se definir amor? Não podemos dizer: amava a si mesmo, porque amar a si próprio não é amor, mas egoísmo, ou, como dizem os psicólogos, narcisismo.

E eis a resposta da revelação cristã que a Igreja recolheu de Cristo e explicitou no seu credo: Deus é amor em si mesmo, antes do tempo, porque desde sempre Ele tem em si um Filho, o Verbo, a quem ama com amor infinito, que é o Espírito Santo. Em todo amor há sempre três realidades ou sujeitos: um que ama, um que é amado e o amor que os une.

2. O amor de Deus na criação

Quando este amor-fonte se derrama no tempo, temos a história da salvação. A primeira etapa é a criação. O amor é, por natureza, “diffusivum sui”, tende a comunicar-se. Como “o agir segue o ser”, Deus, sendo amor, cria por amor. “Por que Deus nos criou?”: esta era a segunda pergunta do catecismo de antigamente, e a resposta era: “Para conhecê-lo, amá-lo e servi-lo nesta vida e desfrutá-lo na outra, no paraíso”. Resposta parcial. Ela responde à pergunta sobre a causa final: “para quê, com que finalidade fomos criados por Deus”; não à pergunta sobre a causa causante: “por quê, por qual motivação, fomos criados por Deus”. Esta pergunta não tem como resposta “para o amarmos”, mas sim “porque Ele nos ama”.

Segundo a teologia rabínica, citada pelo Santo Padre no seu último livro sobre Jesus, “o cosmo é criado não para existirem múltiplos astros e tantas outras coisas, e sim para haver um espaço para a aliança, o sim do amor entre Deus e o homem que lhe responde” [5]. A criação existe para o diálogo de amor de Deus com as suas criaturas.

Como é distante, neste ponto, a visão cristã da origem do universo da visão do cientificismo ateu recordado no Advento! Um dos sofrimentos mais profundos para um jovem é descobrir, um dia, que ele está no mundo por acaso, não querido, não esperado, talvez por uma falha dos pais. Um certo cientificismo ateu parece empenhado em infligir esse tipo de sofrimento à humanidade inteira. Ninguém saberia nos convencer melhor que Santa Catarina de Sena de termos sido criados por amor, numa sua fervente prece à Trindade:

“Como criaste, então, ó Pai eterno, esta tua criatura? [...] O fogo te obrigou. Ó amor inefável! Embora em tua luz previsses toda as iniquidades que a tua criatura cometeria contra a tua bondade infinita, agiste como se não visses, e pousaste a vista na beleza da tua criatura, da qual, como louco e ébrio de amor, te enamoraste e, por amor, a extraíste de ti, dando-lhe o ser à tua imagem e semelhança! Tu, verdade eterna, declaraste a mim a tua verdade: que o amor te obrigou a criá-la”.

Isto não é só ágape, amor de misericórdia, de doação e de descida; é também eros em estado puro; é atracção pelo objecto do próprio amor, estima e fascínio pela sua beleza.

3. O amor de Deus na revelação

A segunda etapa do amor de Deus é a revelação, a Escritura. Deus nos fala do seu amor sobretudo nos profetas. Diz em Oseias: “Quando Israel era um menino, eu o amei [...]. Eu ensinei Efraim a caminhar, conduzindo-o pelos braços [...]. Eu o atraía com laços humanos, com vínculos de amor; era, para eles, como quem retira o jugo e lhes dava docemente de comer [...]. Como poderia abandonar-te, Efraim? [...] O meu coração se comove inteiro dentro de mim, todas as minhas compaixões se acendem” (Os 11,1-4).

Achamos esta mesma linguagem em Isaías: “Acaso uma mulher esquece o filho e não se comove pelo fruto do seu ventre?” (Is 49,15). E em Jeremias: “Efraim é o filho que amo, meu pequeno, meu encanto! Toda vez que o repreendo recordo-me disso, comove-se o meu âmago e cedo à compaixão” (Jer 31,20).

Nestes oráculos, o amor de Deus se expressa ao mesmo tempo como amor paterno e materno. O amor paterno é feito de estímulo e solicitude; o pai quer o filho crescido e levado à plena maturidade. Por isso o corrige e dificilmente o louva em sua presença, por medo que se ache pronto e não progrida mais. Já o amor materno é feito de acolhida e de ternura; é um amor visceral; parte das profundas fibras do ser da mãe, onde a criatura se formou, e ali enraíza toda a sua pessoa, fazendo-a “estremecer de compaixão”.

No âmbito humano, esse dois tipos de amor – viril e materno – são sempre, mais ou menos claramente, repartidos. O filósofo Séneca dizia: “Não vês como é diferente a maneira de amar do pai e da mãe? Os pais acordam cedo os filhos para estudarem, não os deixam ociosos e os fazem derramar suor e às vezes lágrimas. As mães os embalam no colo, querem mantê-los por perto e evitam contrariá-los, fazê-los chorar e fazê-los cansar-se” [6]. Mas enquanto o Deus do filósofo pagão só tem pelos homens “o ânimo de um pai que ama sem fraqueza” (são palavras dele), o Deus bíblico tem também o ânimo da mãe que ama “com fraqueza”.

O homem conhece por experiência outro tipo de amor, do qual se diz que é “forte como a morte e suas centelhas são centelhas de fogo” (cf. Ct 8,6), e também a esse tipo de amor Deus recorreu, na bíblia, para nos dar uma ideia do seu amor apaixonado por nós. Todas as fases e vicissitudes do amor esponsal são evocadas e usadas para esse fim: o encanto do amor no estado nascente do namoro (cf. Jer 2,2); a plenitude da alegria do dia do casamento (cf. Is 62,5); o drama do rompimento (cf. Os 2,4) e, por fim, o renascer, cheio de esperança, do vínculo antigo (cf. Os 2,16; Is 54,8).

O amor esponsal é, fundamentalmente, um amor de desejo e de escolha. Se é verdade, então, que o homem deseja Deus, é verdade, misteriosamente, também o contrário: que Deus deseja o homem, quer e aprecia o seu amor, se alegra com ele “como o esposo se alegra com a esposa” (Is 62,5)!

Como o Santo Padre realça na Deus caritas est, a metáfora nupcial que atravessa quase toda a bíblia e inspira a linguagem da “aliança” é a melhor prova de que o amor de Deus por nós também é eros e ágape, é dar e buscar juntos. Não pode ser reduzido a pura misericórdia, a um “fazer caridade” ao homem, no sentido mais diminuído da expressão.

4. O amor de Deus na encarnação

Chegamos assim à etapa culminante do amor de Deus, a encarnação: “Deus tanto amou o mundo que lhe deu seu unigénito” (Jo 3,16). Diante da encarnação, perguntamos o mesmo que nos perguntamos na criação: por que Deus se fez homem? Cur Deus homo? Por muito tempo, a resposta foi: para nos redimir do pecado. Duns Scoto aprofundou esta resposta, fazendo do amor o motivo fundamental da encarnação, como de todas as outras obras ad extra da Trindade.

Deus, conforme Scoto, ama primeiramente a si mesmo; segundo, quer outros seres que o amem (“secundo vult alios habere condiligentes”). Se Ele decide a encarnação, é para que exista outro ser que o ame com o máximo amor possível fora dele mesmo [7]. A encarnação, portanto, teria ocorrido ainda que Adão não tivesse pecado. Cristo é o primeiro pensado e o primeiro querido, o “primogénito da criação” (Col 1,15), não a solução para um problema levantado a seguir com o pecado de Adão.

Mas a resposta de Scoto também é parcial e precisa do complemento da Escritura quanto ao amor de Deus. Deus quis a encarnação do Filho não só para ter alguém fora de si mesmo que o amasse de maneira digna de si, mas também e principalmente para ter fora de si mesmo alguém a quem amar de maneira digna de si! E este é o Filho feito homem, em quem o Pai “encontra toda a sua complacência” e com quem fomos todos feitos “filhos no Filho”.

Cristo é a prova suprema do amor de Deus pelo homem, não só em sentido objectivo, como penhor inanimado do próprio amor dado a outro, mas em sentido também subjectivo. Em outras palavras, não é só a prova do amor de Deus, mas é o próprio amor de Deus que tomou forma humana para pode amar e ser amado a partir de dentro da nossa situação. No princípio era o amor e “o amor se fez carne”: assim parafraseia um antiquíssimo escrito cristão as palavras do prólogo de João [8].

São Paulo cunha uma expressão sob medida para esta nova modalidade do amor de Deus: “o amor de Deus que é em Cristo Jesus” (Rm 8,39). Se, como dizia da vez passada, todo o nosso amor por Deus deve expressar-se concretamente em amor por Cristo, é porque todo amor de Deus por nós foi antes expresso e recolhido em Cristo.

5. O amor de Deus infundido nos corações

A história do amor de Deus não acaba na Páscoa de Cristo, mas se prolonga no Pentecostes que actualiza e mantém operante “o amor de Deus em Cristo Jesus” até o fim do mundo. Não somos obrigados, portanto, a viver só da lembrança do amor de Deus, como de coisa passada. “O amor de Deus foi infundido nos nossos corações mediante o Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

Mas o que é esse amor, que foi derramado em nosso coração no baptismo? É um sentimento de Deus por nós? Uma benévola disposição de Deus a nosso respeito? Uma inclinação? Algo, enfim, de intencional? É muito mais; é algo real. É, ao pé da letra, o amor de Deus, o amor que circula na Trindade entre Pai e Filho e que, na encarnação, assumiu uma forma humana e agora nos é participado sob a forma de “inabitação”. “O meu Pai o amará e a ele nós viremos e nele faremos morada” (Jo 14,23).

Tornamo-nos “participes da natureza divina” (2Pd 1,4), ou participes do amor divino. Encontramo-nos por graça, explica São João da Cruz, dentro do vórtice de amor que flui desde sempre na Trindade entre o Pai e o Filho [9]. Melhor ainda: entre o vórtice de amor que agora flui, no céu, entre o Pai e o seu Filho Jesus Cristo, ressuscitado da morte, de quem nós somos os membros.

6. Nós acreditamos no amor de Deus!

Veneráveis padres, irmãos e irmãs, esta que tracei pobremente é a revelação objetiva do amor de Deus na história. Agora olhemos para nós: o que faremos, o que diremos depois de ter escutado o quanto Deus nos ama? Uma primeira resposta é: reamar a Deus! Não é, este, o primeiro e o maior dos mandamentos da lei? Sim, mas isto vem depois. Outra resposta possível: amar-nos como Deus nos amou! Não diz o evangelista João que, se Deus nos amou, “também nós devemos amar uns aos outros” (1Jo 4,11)? Isso também vem depois. Primeiro temos outra coisa a fazer. Crer no amor de Deus! Depois de dizer que “Deus é amor”, o evangelista João exclama: “Nós acreditamos no amor que Deus tem por nós!” (1Jo 4,16).

É a fé. Mas aqui se trata de uma fé especial: a fé-espanto, a fé incrédula (um paradoxo, eu sei, mas verdadeiro!), a fé que não sabe entender daquilo em que crê, mesmo crendo. Como é possível que Deus, sumamente feliz na sua quieta eternidade, tenha tido o desejo não só de nos criar, mas até de vir em pessoa sofrer em meio a nós? Como é que isto é possível? Pronto: esta é a fé-espanto, a fé que nos faz felizes.

O grande converso e apologeta da fé Clive Staples Lewis (autor do ciclo narrativo de Nárnia, recentemente levado ao cinema) escreveu uma obra singular intitulada “As Cartas do Coisa-Ruim”. São cartas que um diabo velho escreve a um diabinho jovem e inexperiente, que tem a missão na terra de desencaminhar um jovem londrino recém-retornado à prática cristã. A meta é instruir o diabinho quanto às estratégias para atingir o objectivo. Trata-se de um moderno, finíssimo tratado de moral e ascética, a ser lido pelo contrário, fazendo exactamente o oposto do que é aconselhado.

A um certo ponto, o autor nos faz assistir a uma espécie de discussão entre os demónios. Eles não conseguem entender que o Inimigo (é assim que eles se referem a Deus) ame de verdade “os vermes humanos e deseje a liberdade deles”. Eles têm certeza de que isso não pode ser. Deve haver, necessariamente, uma farsa, um truque. Estamos nos perguntando isso, dizem eles, desde o dia em que o Nosso Pai (é assim que eles chamam Lúcifer), justo por este motivo, se afastou dele; ainda não descobrimos, mas um dia descobriremos [10]. O amor de Deus pelas suas criaturas é, para eles, o mistério dos mistérios. E eu acredito que, pelo menos nisso, os demónios têm razão.

Pareceria uma fé fácil e agradável; mas é, talvez, a coisa mais difícil que exista, até para nós, criaturas humanas. Acreditamos, nós, de verdade mesmo, que Deus nos ama? Não é que não creiamos de verdade, mas pelo menos não cremos o suficiente. Se acreditássemos, a vida, nós mesmos, as coisas, os fatos, a própria dor, tudo se transfiguraria rapidamente diante dos nossos olhos! Hoje mesmo estaríamos com ele no paraíso, porque o paraíso é isso: gozar da plenitude do amor de Deus.

O mundo sempre foi dificultando mais acreditar no amor. Quem foi traído ou ferido uma vez, tem medo de amar e ser amado, porque sabe o quanto dói ver-se enganado. Por isso vai sempre crescendo a fila dos que não conseguem acreditar no amor de Deus; ou pior: em amor nenhum. O desencanto e o cinismo são a moldura da nossa cultura secularizada. No pessoal, temos ainda a experiência da nossa pobreza e miséria, que nos faz dizer: “Sim, o amor de Deus é bonito, mas não é para mim! Eu não sou digno...”.

Os homens precisam saber que Deus os ama e ninguém melhor que os discípulos de Cristo para lhes dar essa boa notícia. Outros, no mundo, compartilham com os cristãos o temor de Deus, a preocupação com a justiça social e o respeito do homem, com a paz e a tolerância; mas ninguém –ninguém! – entre os filósofos, nem entre as religiões, diz ao homem que Deus o ama, o ama primeiro, e o ama com amor de misericórdia e de desejo: com eros e com ágape.

São Paulo nos sugere um método para aplicar à nossa existência concreta a luz do amor de Deus. Escreve: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será a tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Mas em todas essas coisas nós somos mais que vencedores, em virtude daquele que nos amou” (Rm 8, 35-37). Os perigos e os inimigos do amor de Deus que ele enumera são aqueles que, de fato, ele experimentou na vida: angústia, perseguição, espada... (cf. 2 Cor 11,23). Ele os repassa na mente e constata que nenhum deles é forte o bastante para triunfar quando se pensa no amor de Deus.

Nós estamos convidados a fazer como Ele: olhar para a nossa vida, do jeito que ela se apresenta, e trazer à tona os medos que se aninham nela, as tristezas, ameaças, complexos, aquele defeito físico ou moral, aquela lembrança doída que nos humilha, e escancarar tudo à luz do pensamento de que Deus me ama.

Da sua vida pessoal, o Apóstolo estende o olhar para o mundo que o circunda. “Eu estou certo de que nem a morte, nem a vida; nem anjos nem principados; nem presente nem futuro; nem potestades, nem altura, nem profundidade, nem nenhuma outra criatura poderá jamais nos separar do amor de Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8, 37-39). Ele observa o seu mundo, com as potências que o tornavam ainda mais ameaçador: a morte com o seu mistério, a vida presente com as suas lisonjas, as potências astrais ou infernais que incutiam tanto terror no homem de antigamente.

Nós podemos fazer igual: olhar para o mundo que nos circunda e que nos dá medo. A altura e a profundidade são hoje, para nós, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, o universo e o átomo. Tudo está pronto para nos esmagar; o homem é frágil e só, num universo tantas e tantas vezes maior do que ele, e que se tornou, além disso, ainda mais ameaçador depois das descobertas científicas que o homem fez e não consegue dominar, como a crise dos reatores nucleares de Fukushima está dramaticamente nos demonstrando.

Tudo pode ser questionado, todas as certezas podem nos faltar, mas nunca esta: Deus nos ama e é mais forte do que tudo. “O nosso auxílio está no nome do Senhor que fez o céu e a terra”.

[Traduzido do original em italiano por ZENIT]


Notas:

(1) Aristóteles, Metafísica, XII, 7, 1072b.

(2) S. Agostinho, Tratados sobre a primeira carta de João, 7, 4.

(3) S. Agostinho, De catechizandis rudibus, I, 8, 4: PL 40, 319.

(4) Cf. S. Kierkegaard, Discursos edificantes..., 3: O Evangelho dos sofrimentos, IV.

(5) Bento XVI, Jesus de Nazaré, II Parte, Livraria Editora Vaticana, 2011, p. 93.

(6) Séneca, De Providentia, 2, 5 s.

(7) Duns Scoto, Opus Oxoniense, I,d.17, q.3, n.31; Rep., II, d.27, q. un., n.3

(8) Evangelium veritatis (dos Códigos de Nag-Hammadi).

(9) Cf. S. João da Cruz, Cântico espiritual, A, estrofe 38.

(10) C. S. Lewis, The Screwtape Letters, 1942, cap. XIX.

[Traduzido do original italiano por ZENIT]


Catequeses Quaresmais do P. Raniero Cantalamessa à Cúria Romana

Cidade do Vaticano, 8 de Abril de 2011

Terceira pregação quaresmal

A CARIDADE SEM FINGIMENTO

1. Amarás o teu próximo como a ti mesmo

Um fato notável: o rio Jordão, no seu curso, forma dois mares – o mar da Galileia e o mar Morto. O mar da Galileia é borbulhante de vida, com águas das mais piscosas da terra. O mar Morto é precisamente “morto”: não há rastro de vida nem nele nem ao redor; somente sal. E se trata da mesma água do Jordão! A explicação, pelo menos em parte, é esta: o mar da Galileia recebe as águas do Jordão, mas não as retém para si; deixa fluírem, para irrigarem todo o vale do Jordão. Já o mar Morto recebe as águas e as retém para si, não tem efluentes, dali não sai uma gota. É um símbolo. Para receber o amor de Deus, devemos dá-lo aos irmãos, e, quanto mais damos, mais recebemos. É sobre isto que reflectiremos nesta meditação.

Depois de reflectir nas duas primeiras meditações sobre o amor de Deus como dom, é hora de meditarmos também sobre o dever de amar; e, em particular, sobre o dever de amar o próximo. O vínculo entre os dois amores é exposto de modo programático na palavra de Deus: “Se Deus nos amou tanto, nós devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,11).

“Amarás o próximo como a ti mesmo” era um mandamento antigo, escrito na lei de Moisés (Lev 19,18) e Jesus mesmo o cita como tal (Lc 10,27). Então como é que Jesus o chama de “seu” mandamento e de mandamento “novo”? A resposta é que mudaram o sujeito, o objeto e o motivo do amor ao próximo.

Mudou antes de tudo o objecto: quem é o próximo que deve ser amado. Não é mais só o compatriota, ou o hóspede que habita em meio a nós, mas todos os homens, inclusive o estrangeiro (o samaritano!), inclusive o inimigo! É verdade que a segunda parte da frase “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” não se encontra ao pé da letra no Antigo Testamento, mas assume a sua orientação geral, expressa na lei de talião “Olho por olho, dente por dente” (Lev 24,20), ainda mais se confrontada com o que Jesus nos exige:

“Mas eu vos digo: amai os vossos inimigos e rezai por quem vos persegue, para serdes filhos do vosso Pai que está nos céus; pois ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos. Se amais os que vos amam, que mérito tendes? Não fazem o mesmo os publicanos? E se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Assim não agem também os pagãos?” (Mt 5, 44-47).

Mudou também o sujeito do amor ao próximo, o significado da palavra próximo. Não é o outro; sou eu. Não é quem está perto, mas quem se aproxima. Com a parábola do bom samaritano, Jesus demonstra que não devemos esperar passivamente que o próximo surja em nosso caminho, dando seta e de sirene ligada. O próximo é você, ou aquele que você pode se tornar. O próximo não existe de cara; só temos um próximo se nos aproximamos de alguém.

E mudou, mais do que tudo, o modelo ou a medida do amor ao próximo. Antes de Jesus, o modelo era o amor a si mesmo: “como a ti mesmo”. Foi dito que Deus não podia amarrar o amor ao próximo numa estaca melhor que esta; não teria atingido o mesmo resultado nem se tivesse dito “Amarás o próximo como ao teu Deus”, porque quanto ao amor de Deus, ou seja, quanto ao que é amar a Deus, o homem ainda pode trapacear, mas quanto ao amor a si mesmo, não. O homem sabe perfeitamente o que significa, em qualquer circunstância, amar a si mesmo; é um espelho que está sempre diante dele [1].

Mas é possível enxergar mal até o amor a si mesmo. Por isso Jesus substitui o modelo e a medida por outro: “Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). O homem pode amar a si mesmo do jeito errado, desejando o mal em vez do bem, o vício e não a virtude. Se um homem desses ama o próximo como a si mesmo e quer para ele o mesmo que quer para si, pobre de quem é amado! Já o amor de Jesus, sabemos aonde nos leva: à verdade, ao bem, ao Pai. Quem o segue “não anda nas trevas”. Ele nos amou dando a vida por nós, quando éramos pecadores, ou seja, inimigos (Rom 5,6).

Entende-se assim o que o evangelista João quer dizer com a afirmação aparentemente contraditória: “Caríssimos, não vos escrevo um mandamento novo, mas um mandamento velho, que tínheis desde o princípio: o mandamento velho é a palavra que ouvistes. E é, no entanto, um mandamento novo o que vos escrevo” (1Jo 2, 7-8). O mandamento do amor ao próximo é antigo na letra, mas novo pela novidade do evangelho. Novo, explica o papa num capítulo de seu mais recente livro sobre Jesus, porque não é mais só “lei”, mas também, e antes, “graça”. Funda-se na comunhão com Cristo, possível pelo dom do Espírito [2].

Com Jesus, passamos da lei do contrappasso, ou entre dois agentes (“O que o outro te faz, fá-lo a ele”) para a lei do trapasso, entre três agentes: “O que Deus te fez, fá-lo ao próximo”, ou, na direção oposta, “O que fizeres com o próximo, Deus fará contigo”. Jesus e os apóstolos repetem este conceito: “Como Deus vos perdoou, perdoai-vos uns aos outros”. “Se não perdoardes de coração aos vossos inimigos, nem vosso pai vos perdoará”. É cortada pela raiz a desculpa do “mas ele não me ama, me ofende”. Isto diz respeito a ele, não a você. A você interessa o que você faz ao outro e como você se comporta diante do que ele faz a você.

Resta a principal pergunta: por que esta singular mudança de rota do amor de Deus ao próximo? Não seria mais lógico “Como eu vos amei, amai a mim” em vez de “Como eu vos amei, amai-vos uns aos outros”? Pois esta é a diferença entre o amor puramente eros e o amor que é eros e ágape juntos. O amor puramente erótico é um circuito fechado: “Ama-me, Alfredo, ama-me como eu te amo”, canta Violeta na Traviata de Verdi: eu te amo, tu me amas. O amor de ágape é um circuito aberto: vem de Deus e volta a ele, mas passando pelo próximo. Jesus inaugurou ele próprio esse novo tipo de amor: “Como o Pai me amou, eu amei a vós” (Jo 15,9).

Santa Catarina de Sena deu sobre o motivo disto a explicação mais simples e convincente. Ela escreve o que considera que Deus quer:

“Eu vos peço amar-me com o mesmo amor com que vos amo. Mas não podeis, já que vos amei sem ser amado. Todo o amor que me tendes é de dívida, não de graça, porque devestes amar-me, enquanto eu vos amo com amor de graça, e não de dívida. Não podeis, pois, dar a mim o amor que vos peço. Eis por que vos pus ao lado o vosso próximo: para lhe fazerdes o que a mim não podeis, que é amá-lo sem consideração de mérito nem à espera de utilidade. E considero que fazeis a mim o que fizerdes a ele” [3].

2. Amai-vos de coração sincero

Depois destas reflexões gerais sobre o mandamento do amor ao próximo, é hora de falar das qualidades que devem revestir esse amor. São fundamentalmente duas: deve ser um amor sincero e um amor de fato, um amor do coração e das mãos. Desta vez nos ateremos à primeira qualidade, deixando-nos guiar pelo grande cantor da caridade, que é Paulo.

A segunda parte da Carta as Romanos é um subseguir-se de recomendações sobre o amor recíproco na comunidade cristã. “A caridade não seja fingida [...]; amai-vos uns aos outros com afecto fraterno, esforçai-vos no recíproco estimar-se...” (Rm 12, 9). “Não devais a ninguém, senão um amor mútuo, porque quem ama seu semelhante cumpriu a lei” (Rm 13,8).

Para captar a alma unificante destas recomendações, a ideia de fundo, ou melhor, o “sentimento” que Paulo tem da caridade, temos que partir da palavra inicial: “A caridade não seja fingida!”. Esta não é uma das muitas exortações, mas a matriz de que derivam todas as outras. Contém o segredo da caridade. Procuremos captar, com a ajuda do Espírito, esse segredo.

O termo original usado por São Paulo, e traduzido como “sem fingimento”, é an-hypòkritos: “sem hipocrisia”. Este vocábulo é uma espécie de luz indicadora; é um termo raro, que achamos no Novo Testamento quase exclusivamente para definir o amor cristão. A expressão “amor sincero” (an-hypòkritos) volta em 2 Cor 6,6 e em 1Pd 1,22. Este último texto permite notar, com toda a certeza, o significado do termo em questão, porque o explica com uma perífrase: o amor sincero, diz, consiste no amar-se intensamente com sincero coração.

São Paulo, então, com aquela simples afirmação, “a caridade não seja fingida”, leva o tema até a própria raiz da caridade: o coração. O que se pede do amor é que seja verdadeiro, autêntico, não fictício. Como o vinho, para ser “sincero”, precisa ser espremido da uva, assim o amor precisa vir do coração. Também nisso o Apóstolo é o eco fiel do pensamento de Jesus, que indicou o coração, repetidamente e com força, como o “lugar” em que se determina o valor do que o homem faz, o que é puro ou impuro, na vida de uma pessoa (Mt 15,19).

Podemos falar de uma intuição Paulina a respeito da caridade; ela consiste em revelar, por trás do universo visível e exterior da caridade, feito de obras e palavras, outro universo todo interior, que é, em comparação com o primeiro, o que a alma é para o corpo. Revemos esta intuição no outro grande texto sobre a caridade, que é 1Cor 13. São Paulo, se observamos bem, está falando da caridade interior, das disposições e sentimentos de caridade: a caridade é paciente, é benigna, não é invejosa, não se irrita, tudo releva, tudo crê, tudo espera... Nada que se refira, em si e diretamente, ao fazer o bem, ou às obras de caridade, mas à raiz do querer bem. A benevolência vem antes da beneficência.

É o Apóstolo mesmo quem explicita a diferença entre as duas esferas da caridade, dizendo que o maior ato de caridade exterior – o de repartir com os pobres todos os próprios bens – não serviria de nada sem a caridade interior (cf. 1Cor 13,3). Seria o oposto da caridade “sincera”. A caridade hipócrita, de fato, é justo a que faz coisas boas sem querer bem; que mostra por fora o que não tem correspondência no coração. Neste caso, temos uma pequenez da caridade, que no fim pode ser disfarce de egoísmo, da busca de si mesmo, instrumentalização do irmão ou simples remorso de consciência.

Seria um erro fatal contrapor a caridade do coração à dos fatos, ou refugiar-se na caridade interior para achar nela uma espécie de álibi da falta de caridade nas obras. No mais, dizer que, sem a caridade, “nada adianta dar tudo aos pobres” não significa que isto não sirva para ninguém e seja inútil. Significa, sim, que não serve de nada “para mim”, mas pode ajudar o pobre que a recebe. Não se trata, portanto, de atenuar a importância das obras de caridade (veremos isto na próxima vez), mas de garantir que elas tenham fundamento firme contra o egoísmo e as suas astúcias infinitas. São Paulo quer que os cristãos sejam “enraizados e fundados na caridade” (Ef 3,17): que o amor seja a raiz e o fundamento de tudo.

Amar sinceramente quer dizer amar com esta profundidade, num grau em que você não pode mentir, porque está sozinho diante de si mesmo, do espelho da sua consciência, sob o olhar de Deus. “Ama o irmão”, escreve Agostinho, “aquele que, perante Deus, onde só ele vê, confirma o seu coração e se pergunta no íntimo se em verdade age por amor do irmão; e o olhar que penetra o coração, onde o homem não consegue enxergar, lhe rende testemunho” [4]. Era sincero, portanto, o amor de Paulo pelos hebreus se ele podia dizer: “Eu digo a verdade em Cristo, não minto; pois a minha consciência o confirma por meio do Espírito Santo; trago no peito grande tristeza e sofrimento contínuo; quisera eu mesmo ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus parentes segundo a carne” (Rm 9, 1-3).

Para ser genuína, a caridade cristã deve partir de dentro, do coração. E as obras de misericórdia, “das vísceras da misericórdia” (Col 3,12). Devemos, porém, precisar que se trata aqui de algo bem mais radical que a simples “interiorização”, que um mero acentuar mais a prática interna da caridade do que a externa. Este é só o primeiro passo. A interiorização se aproxima da divinização! O cristão, dizia São Pedro, é quem ama “de coração sincero”. Mas com que coração? Com “o coração novo e o Espírito novo” recebidos no baptismo.

Quando um cristão ama assim, é Deus quem ama através dele; ele se torna um canal do amor de Deus. Acontece como pela consolação, que não é mais que uma modalidade do amor: “Deus nos consola em toda nossa tribulação para podermos nós também consolar os que sofrem todo tipo de aflição com a mesma consolação com que somos consolados por Deus” (2 Cor 1,4). Nós consolamos com a consolação com que somos consolados por Deus, amamos com o amor com que somos amados por Deus. Não com outro. Isto explica a ressonância, aparentemente desproporcionada, de simplíssimos actos de amor, tantas vezes até escondidos, e toda a esperança e luz que eles criam ao seu redor.

3. A caridade edifica

Quando se fala da caridade nos escritos apostólicos, nunca se fala em abstracto, de modo genérico. O fundo é sempre a edificação da comunidade cristã. Em outras palavras, o primeiro âmbito de exercício da caridade tem que ser a Igreja e, mais concretamente, a comunidade em que se vive, as pessoas com que se têm relações quotidianas. Assim deve ser hoje ainda, em particular no coração da Igreja, entre os que trabalham em contacto estreito com o Sumo Pontífice.

Durante certo tempo, na antiguidade, designou-se com o termo caridade, ágape, não só a refeição fraterna que os cristãos faziam juntos, mas também a Igreja inteira [5]. O mártir Santo Inácio de Antioquia saúda a Igreja de Roma como a que “preside a caridade (ágape)”, ou seja, a “fraternidade cristã”, no conjunto de todas as igrejas [6]. Esta frase não afirma só o fato do primado, mas também a sua natureza, o modo de exercê-lo: na caridade.

A Igreja tem necessidade urgente de uma camada de caridade que restaure as suas fraturas. Paulo VI dizia num discurso: “A Igreja precisa sentir refluir por todas as suas faculdades humanas a onda do amor, daquele amor que se chama caridade, e que se difunde em nossos corpos por obra do Espírito Santo dado a nós” [7].  Só o amor cura. É o óleo do samaritano. Óleo também porque tem que flutuar acima de tudo, como o óleo sobre os líquidos. “Acima de tudo esteja a caridade, vínculo da perfeição” (Col 3,14). Acima de tudo, super omnia. Portanto, acima da fé e da esperança, da disciplina, da autoridade, ainda que, evidentemente, as próprias disciplina e autoridade podem ser uma expressão da caridade. Não há unidade sem caridade, e, se houvesse, seria uma unidade de pouco valor para Deus.

Um âmbito importante em que trabalhar é o dos julgamentos mútuos. Paulo escrevia aos Romanos: “Por que julgas o teu irmão? Por que desprezas o teu irmão? Deixemos de julgar-nos uns aos outros” (Rm 14, 10.13). Antes dele, Jesus tinha dito: “Não julgueis, para não serdes julgados. [...] Por que observas o cisco no olho do teu irmão e não vês a trave no teu?” (Mt 7, 1-3). Compara o pecado do próximo (o pecado julgado), seja qual for, a um cisco, diante do pecado de quem julga (o pecado de julgar), que é uma trave. A trave é o próprio fato de julgar, tão grave ele é perante Deus.

O discurso sobre julgamentos é delicado e complexo. Se ficar pela metade, parece pouco realista. Como é que se pode viver sem julgar nunca? O juízo é implícito em nós até num olhar. Não podemos observar, escutar, viver, sem fazer avaliações, ou seja, sem julgar. Um pai, um superior, um confessor, um juiz, qualquer um que tenha responsabilidade sobre outros, precisa julgar. Às vezes, até, como é o caso de muitos aqui na cúria, o julgar é, precisamente, o tipo de serviço que se é chamado a prestar à sociedade ou à Igreja.

Realmente, não é tanto o julgar que deve ser extirpado do nosso coração, mas o veneno do nosso julgar! O rancor, a condenação. Na redacção de Lucas, o mandado de Jesus “Não julgueis e não sereis julgados” é seguido imediatamente, como para explicitar o sentido destas palavras, pelo mandado “Não condeneis e não sereis condenados” (Lc 6,37). Em si, julgar é uma acção neutra. O juízo pode terminar tanto em condenação quanto em absolvição e justificação. São os juízos negativos os que a palavra de Deus reprime e elimina, aqueles que condenam o pecador junto com o pecado, aqueles que olham mais para a punição do que para a correcção do irmão.

Outro ponto qualificador da caridade sincera é a estima: “Lutai para vos estimardes mutuamente” (Rm 12,10). Para estimar o irmão, é preciso não estimar demais a si mesmo, não ser sempre seguro de si. É preciso, diz o Apóstolo, “não ter uma visão alta demais de si próprio” (Rm 12,3). Quem tem uma ideia muito alta de si mesmo é como um homem que, à noite, tem diante dos olhos uma fonte de luz intensa: não consegue ver nada além dela; não consegue ver a luz dos irmãos, seus dotes e seus valores.

“Minimizar” deve se tornar o nosso verbo preferido nas relações com os outros: minimizar os nossos destaques e minimizar os defeitos alheios. Não minimizar os nossos defeitos e os destaques alheios, como somos tantas vezes levados a fazer; é diametralmente o oposto! Há uma fábula de Esopo a este respeito; reelaborada por La Fontaine, ela diz assim:

“Ao chegar a este vale, cada um traz ao ombro um duplo embornal. Dentro do embornal dianteiro, lança prazenteiro os defeitos do próximo, enquanto no outro lança os próprios” [8].

Deveríamos inverter: lançar os nossos próprios defeitos na sacola que temos à nossa frente, e os defeitos dos outros deixá-los na sacola que fica para trás. São Tiago admoesta: “Não faleis mal uns dos outros” (Tg 4,11). A fofoca parece ter virado coisa inocente, mas é uma das que mais poluem a vida em grupo. Não basta não falar mal dos outros; precisamos também impedir que os outros o façam em nossa presença; fazê-los notar, mesmo que silenciosamente, que não estamos de acordo. Como é diferente o ar que respiramos num ambiente de trabalho ou numa comunidade quando levamos a sério a admoestação de São Tiago! Em muitos locais públicos está escrito “Aqui não se fuma”. Antigamente havia até alguns avisos de “Aqui não se blasfema”. Não faria mal acrescentar, em alguns casos, “Aqui não se fofoca”.

Terminemos ouvindo como dirigida a nós mesmos a exortação do Apóstolo à comunidade dos filipenses, tão amada por ele: “Tornai plena a minha alegria cultivando um só pensar, um mesmo amor, sendo unânimes e nutrindo um só sentimento. Nada façais por espírito de separação ou por vanglória, mas, com humildade, cada um repute os outros superiores a si mesmo, procurando não o próprio interesse, mas o do próximo. Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fil 2, 2-5).

[Traduzido do original italiano por ZENIT]


Notas:

(1) Cf. S. Kierkegaard, Os atos do amor, versão italiana, Milão, Rusconi, 1983, p. 163.

(2) Bento XVI, Jesus de Nazaré, II Parte, Livraria Editora Vaticana, 2011, p. 76.

(3) S. Catarina de Sena, Diálogo 64.

(4) S. Agostinho, Comentário à Primeira Carta de João, 6,2 (PL 35, 2020).

(5) Lampe, A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1961, p. 8

(6) S. Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, saudação.

(7) Audiência geral de 29 de Novembro de 1972 (Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, X, pp. 1210).

(8) J. de La Fontaine, Fábulas, I, 7