Mensagem do Cardeal-Patriarca para a Quaresma de 2022
Como filhos diante de Deus, como irmãos diante de todos
Caríssimos diocesanos
Iniciamos esta Quaresma com grande proximidade a todos os que sofrem os efeitos da guerra e muito especialmente na Ucrânia. A nossa proximidade traduz-se na disposição para socorrer e acolher quanto e como for preciso. Além disso e, como crentes, acreditamos no poder da oração e do jejum que a intensifica, pois rezar é querer com Deus e “quem quer o que Deus quer tem tudo quanto quer”.
Querer com Deus significa acolher a sua paternidade, solícita do bem de todos os filhos e geradora da nossa fraternidade, começando pelos que mais a requeiram.
Temos bem presente a vida de Jesus, que a partir da filiação divina nos ofereceu a convivência perfeita entre nós. A sua oração foi inteiramente filial, o seu jejum foi alimentar-se da vontade do Pai e a esmola que nos deu foi a sua própria vida, plenamente entregue. E foi assim mesmo, com motivação tão íntima e desprendida de si próprio, que há dois mil anos tudo renovou e continua a renovar, com os que partilham do seu Espírito.
Nós acreditamos que há sempre futuro a partir do coração divino e de quem se mantém filialmente nele e fraternalmente com todos. A Quaresma que iniciamos leva-nos à Páscoa de Cristo, mas exatamente na medida em que para lá caminharmos com Ele e a seu modo.
O modo de Jesus manifesta-se em todo o Evangelho, como estritamente filial. Não tem outra motivação senão a de cumprir a vontade de Deus Pai; nada o move senão isso mesmo, a realizar-se em si e nos outros, sem qualquer ostentação do que faça.
A frase evangélica é claríssima nesse sentido: «Tende cuidado em não praticar as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Aliás, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está nos Céus».
Reparemos que todos os conflitos nascem da autoimposição, tanto pessoal como mais alargada. Alega-se um bem que redunda em mal, quando confiscado em proveito próprio. Deus não se impõe no ato constante de nos dar a vida e os filhos de Deus, que verdadeiramente o sejam, vivem em ação de graças e assim partilham o que só de Deus recebem.
Olhemos para Jesus e aprendamos com Ele a ser filhos de Deus. São muitas as passagens evangélicas que nos mostram como há de ser. Quando era bem aceite no que dizia e fazia, logo lhe brotava a ação de graças: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque isso foi do teu agrado!» (Mt 11, 25-26).
Quando Simão o confessa como Messias e Filho de Deus vivo, logo remete a Deus Pai a origem dessa fé: «És feliz Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu» (Mt 16, 17). Assim também em relação a todos nós, pois somente o Pai nos conduz a Ele: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair» (Jo 6, 44). E a própria bondade que manifestava não a referia si, mas só e sempre a Deus Pai, como respondeu ao homem rico: «Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão um só: Deus» (Mc 10, 18).
É unicamente a vontade do Pai que o sustenta e impele: «O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra» (Jo 4, 34). Nada faz sem o Pai, única fonte da sua ação: «O Filho, por si mesmo, não pode fazer nada, senão o que vir fazer ao Pai, pois aquilo que este faz também o faz igualmente o Filho» (Jo 5, 19). E assim quanto a tudo o que faz e ajuíza: «Por mim mesmo, eu não posso fazer nada: conforme ouço, assim é que julgo; e o meu julgamento é justo, porque não busco a minha vontade mas a daquele que me enviou» (Jo 5, 30).
E assim continuaríamos, quase página a página dos quatro Evangelhos, tão conformes sobre a vida filial de Jesus. Vida filial em relação a Deus Pai, que é também a fonte da sua vida fraternal em relação a todos, transbordando o amor que d’Ele recebe: «Assim como o Pai me tem amor, assim eu vos amo a vós» (Jo 15, 9).
É este o “segredo” de Jesus e a explicação de tudo o que realiza. Os seus longos tempos de oração traduzem bem o que intimamente o segura. Pois é nesse “segredo” que Deus Pai o vê e também a nós: «Quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa».
Como exercício quaresmal, comunitária e pessoalmente, brote a oração de Cristo em nós, intensamente filial e consequentemente solidária, como no Pai Nosso se enuncia. Aliás, a oração comunitária ganha sempre com a intensidade da oração pessoal de cada um. Só assim conseguiremos amar a todos a partir de Deus, diferentes que sejam e adversários até, como Jesus exorta: «Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (Mt 5, 44-45).
Não se trata de desculpar o indesculpável ou de não corrigir o que merece correção. Trata-se de em tudo isso não nos mover o rancor, mas aquela misericórdia com que Deus nos mantém vivos e sempre aguarda o regresso dos seus pródigos.
Todos precisamos de crescer muito mais nesse sentido, de ver as coisas em Deus e a partir de Deus, no íntimo dos propósitos e na gratuidade das ações, sem outro intuito que não seja a glória divina, que é o bem de todos. Bem total, a respeitar e proteger em cada um, do princípio ao fim do seu percurso terreno. Porque «a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus» (Santo Ireneu).
Jejuamos das coisas, porque só Deus realmente sacia; repartimos o que temos, pois de Deus provém e a Deus retorna em quem nos pede; oramos filialmente, porque é este o único modo de estarmos diante da paternidade divina: como quem recebe, agradece e partilha.
São tempos difíceis, os desta Quaresma. Com a pandemia ainda por extinguir, com a guerra na Ucrânia que urge terminar, com a Igreja a renovar, com tanta pobreza a pedir resposta.
Também não eram fáceis os que tocaram ao próprio Jesus, dois milénios atrás. Ensinou-nos a enfrentá-los com um coração filial, correspondendo assim ao coração de Deus Pai, que no segredo nos vê e recompensa, fazendo-nos inteiramente seus e de Si para todos.
Assim mesmo, no mais íntimo e determinante de cada um, para o futuro que importa. Não para darmos nas vistas alheias, mas para nos refazermos sob o olhar de Deus. Para refletirmos aos outros o olhar divino, amando e servindo como Jesus o fez.
É o que nos pede o tempo que vivemos, é o exercício quaresmal perfeito. Não adiemos a resposta, «pois até a criação se encontra em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). - É connosco agora!
Sé de Lisboa, 2 de março de 2022
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
A renúncia quaresmal de 2021 juntou 117.614,32 €, destinados à Cáritas Diocesana de Lisboa, para continuar a responder a necessidades geradas pela pandemia. A renúncia deste ano será destinada em parte à Diocese de Palai (Índia) a favor do seu hospital, que atende especialmente a população mais pobre; e em parte à Cáritas Diocesana de Lisboa, para apoiar as necessidades do povo ucraniano, duramente atingido pela guerra.