Há alguns pontos que importa sublinhar no inicio da organização de alguns elementos de reflexão que desejaríamos partilhar. Antes de mais, com o Concílio Vaticano 11 (Sacrosanctum Concilium, n° 7), consideramos alegremente que, na acção litúrgica, Deus está presente na sua Palavra. Assumimos bem esta consciência porque ela é determinante. Quando nos reunimos para celebrar a Eucaristia somos, desde logo, convidados à escuta! Somos um povo de filhos, reunido em Cristo, para escutar a palavra do Pai que está presente e nos fala!
Ousaríamos mesmo dizer que, quando celebramos a Eucaristia, não comungamos de verdade, sacramentalmente, se não nos deixamos alimentar pela vida que a Palavra de Deus nos transmite. Pensando na Eucaristia, como família reunida, somos convidados ao alimento abundante de duas mesas, postas pela generosidade do coração do Pai: a mesa da Palavra (ambão) e a mesa do sacrifício (altar). Ele Se dirige a nós para ser acolhido. S. Jerónimo, referindo-se à atitude que se deve adoptar, tanto em relação à Eucaristia como à Palavra de Deus, afirma: «Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu ensinamento. E quando Ele fala em "comer a minha carne e beber o meu sangue" (Jo 6, 53), embora estas palavras se possam entender do mistério (eucarístico), todavia também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério (eucarístico), se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos distraímos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?». Realmente presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo está presente, de modo análogo, também na Palavra proclamada na liturgia (cf. Bento XVI, Verbum Domini, 56). A proclamação da Palavra de Deus na celebração implica reconhecer que é o próprio Cristo que Se faz presente.
Quando nos reunimos na celebração litúrgica, seja na Eucaristia, seja em cada um dos outros sacramentos, só nos abrimos ao dinamismo da Graça se efectivamente acolhemos, com a inteligência e com o coração, a voz de Deus que tem «palavras de vida eterna», entendida esta como o abraço amoroso de Deus, que sempre Se revela na abundância do seu Amor. O documento pós-conciliar que nos fala do Ordenamento das Leituras da Missa (OLM), diz, no n° 5: «Quanto mais se compreende a celebração litúrgica, tanto mais intensamente se aprecia a importância da Palavra de Deus, pois o que se diz de uma pode também afirmar-se da outra, já que ambas (liturgia da palavra e liturgia eucarística) recordam o mistério de Cristo e o perpetuam, embora cada uma á sua maneira».
Se não consideramos, sempre de novo, esta manifestação, esta epifania do Amor, tantas vezes seremos imitadores/repetidores de gestos e rituais que nos terão sido legados, mas não somos positivamente afectados pela frescura e pelo alento da vida que do coração do Pai nos vem!
Há uma verdadeira conversão a fazer! Uma mudança de atitude, de paradigma, se impõe! Há ainda uma boa parte das nossas assembleias para a qual a Palavra é elemento ritual em passagem habitual. A vida e a libertação presentes na Palavra não encontram, por vezes, terra fértil e disponível. Deus fala! A sua comunicação é acto de amor! Quem escuta, só o faz de verdade se se abre a esse amor gratuito, capaz de abrir a novos e sempre mais belos caminhos e melodias de amor que podem dar sabor, encanto e alento à vida quotidiana. Pode cimentar as bases mais autênticas da verdadeira comunidade, da verdadeira família.
Nunca podemos deixar de sentir com profundidade que Cristo está sempre presente na sua palavra, a realizar o mistério da salvação, santificando os homens e prestando ao Pai o culto perfeito. A «exposição contínua, plena e eficaz da palavra de Deus é sempre viva e eficaz (Heb 4, 12) pelo poder do Espírito Santo e manifesta o amor operante e indefectível do Pai para com os homens» (OLM 4 e VD 52).
A Palavra de Deus, lida e proclamada na liturgia pela Igreja, conduz, como se de alguma forma se tratasse da sua própria finalidade, ao sacrifício da aliança e ao banquete da graça, ou seja, à Eucaristia (OLM 10). A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério eucarístico. Com efeito, sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta a compreensão da Escritura (VD 55).
A palavra de Deus que é proclamada na celebração dos divinos mistérios, não se refere apenas às realidades presentes, mas também contempla o passado e antevê o futuro, estimulando a nossa esperança para essas realidades futuras, a fim de que, no meio da instabilidade deste mundo, fixemos os nossos corações onde se encontram as verdadeiras alegrias (OLM 7).
Se aceitamos com humildade que Deus fala na Palavra e nela nos diz quem é, mas também quem somos; nos diz o passado, o presente e o futuro, como assembleia de filhas e de filhos, sentimo-nos família, formamos, a partir da vida interior, alimentada pela Palavra, verdadeira comunidade de vida, de fé.