IV Domingo da Quaresma A
As leituras deste Domingo continuam a catequese baptismal da Quaresma e definem a experiência cristã como “viver na luz”.
No Domingo passado, reflectimos no símbolo da água, com o episódio da Samaritana; hoje, a liturgia, com a cura do cego de nascença, prossegue o tema da luz; na próxima semana, com a ressurreição de Lázaro, meditaremos no tema da vida.
As Leituras deste Domingo propõem o tema da «luz» e apresentam a experiência cristã de vivermos na «luz».
A primeira leitura narra-nos a escolha de David para rei de Israel e descreve-nos a sua unção. (É um óptimo pretexto para reflectirmos sobre a unção que todos nós recebemos no dia do nosso Baptismo e que nos constituiu testemunhas da “luz” de Deus no mundo.)
S. Paulo, na segunda leitura, recorda-nos que no Baptismo o cristão passa das trevas para a Luz e aceita o convite de viver como filho da "Luz", praticando as obras de Deus. (Ef 5,8-14)
O Evangelho apresenta Jesus como a "Luz do Mundo", que veio libertar os homens das trevas. A cura do cego descreve o processo de fé de um homem, que vai passando das trevas da cegueira para a luz da visão e, desta, para a Luz da fé em Cristo. O "Cego" é um símbolo de toda a humanidade que vive na escuridão, privada da "luz", impedida de chegar à plenitude da vida.
Primeira Leitura (1 Sam 16,1b.6-7.10-13ª)
Leitura do Primeiro Livro de Samuel
Naqueles dias, o Senhor disse a Samuel:
«Enche o corno de óleo e parte.
Vou enviar-te a Jessé de Belém,
pois escolhi um rei entre os seus filhos».
Quando chegou, Samuel viu Eliab e pensou consigo:
«Certamente é este o ungido do Senhor».
Mas o Senhor disse a Samuel:
«Não te impressiones com o seu belo aspecto,
nem com a sua elevada estatura, pois não foi esse que Eu escolhi.
Deus não vê como o homem;
o homem olha às aparências, o Senhor vê o coração».
Jessé fez passar os sete filhos diante de Samuel,
mas Samuel declarou-lhe:
«O senhor não escolheu nenhum destes».
E perguntou a Jessé:
«Estão aqui todos os teus filhos?»
Jessé respondeu-lhe:
«Falta ainda o mais novo, que anda a guardar o rebanho».
Samuel ordenou: «Manda-o chamar,
porque não nos sentaremos à mesa, enquanto ele não chegar».
Então Jessé mandou-o chamar:
era loiro, de belos olhos e agradável presença.
O Senhor disse a Samuel:
«Levanta-te e unge-o, porque é este mesmo».
Samuel pegou no corno do óleo e ungiu-o no meio dos irmãos.
Dequele dia em diante, o Espírito do Senhor apoderou-Se de David.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 22 (23)
Refrão: O Senhor é meu pastor, nada me faltará
O Senhor é meu pastor: nada me falta.
Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às águas refrescantes
e reconforta a minha alma.
Ele me guia por sendas direitas por amor do seu nome.
Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos,
não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo:
o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.
Para mim preparais a mesa
à vista dos meus adversários;
com óleo me perfumais a cabeça
e meu cálice transborda.
A bondade e a graça hão-de acompanhar-me
todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.
Segunda Leitura (Ef 5,8-14)
Leitura da Epístola do apóstolo S. Paulo aos Efésios
Irmãos:
Outrora vós éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor.
Vivei como filhos da luz,
porque o fruto da luz é a bondade, a justiça e a verdade.
Procurai sempre o que mais agrada ao Senhor.
Não tomeis parte nas obras das trevas, que são inúteis;
tratai antes de condená-las abertamente,
porque o que eles fazem em segredo
até é vergonhoso dizê-lo.
Mas, todas as coisas que são condenadas
são postas a descoberto pela luz,
e tudo que assim se manifesta torna-se luz.
É por isso que se diz:
«Desperta, tu que dormes; levanta-te do meio dos mortos
e Cristo brilhará sobre ti».
EVANGELHO – Jo 9,1-41
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo S. João
Naquele tempo,
Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença.
Os discípulos perguntaram-Lhe:
«Mestre, quem é que pecou para ele nasceu cego?
Ele ou os seus pais?
Jesus respondeu-lhes:
«Isso não tem nada que ver com os pecados dele ou dos pais;
mas aconteceu assim para se manifestarem nele as obras de Deus.
É preciso trabalhar, enquanto é dia,
nas obras d’Aquele que Me enviou.
Vai cegar a noite, em que ninguém pode trabalhar.
Enquanto Eu estou no mundo, sou a luz do mundo».
Dito isto, cuspiu em terra,
fez com a saliva um pouco de lodo e ungiu os olhos do cego.
Depois disse-lhe:
«Vai lavar-te à piscina de Siloé»; Siloé quer dizer «Enviado».
Ele foi, lavou-se e ficou a ver.
Entretanto, perguntavam os vizinhos e os que antes o viam a mendigar:
«Não é este o que costumava estar sentado a pedir esmola?»
Uns diziam: «É ele». Outros afirmavam: «Não é. É parecido com ele».
Mas ele próprio dizia: «Sou eu».
Perguntaram-lhe então:
«Como foi que se abriram os teus olhos?»
Ele respondeu:
«Esse homem, que se chama Jesus, fez um pouco de lodo,
ungiu-me os olhos e disse-me:
‘Vai lavar-te à piscina de Siloé’. Eu fui, lavei-me e comecei a ver».
Perguntaram-lhe ainda: «Onde está Ele?»
O homem respondeu: «Não sei».
Levaram aos fariseus o que tinha sido cego.
Era sábado esse dia em que Jesus fizeram lodo e lhe tinha aberto os olhos.
Por isso, os fariseus perguntaram ao homem como tinha recuperado a vista.
Ele declarou-lhes: «Jesus pôs-me lodo nos olhos;
depois fui lavar-me e agora vejo».
Diziam alguns dos fariseus:
«Esse homem não vem de Deus, porque não guarda o sábado».
Outros observavam:
«Como pode um pecador fazer tais milagres?»
E havia desacordo entre eles. Perguntaram então novamente ao cego:
«Tu que dizias d’Aquele que te deu a vista?»
O homem respondeu: «É um profeta».
Os judeus não quiseram acreditar que ele tinha sido cego e começara a ver.
Chamaram então os pais dele e perguntaram-lhes:
«É este o vosso filho? É verdade que nasceu cego?
Como é que agora vê?»
Os pais responderam:
«Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego;
mas não sabemos como é que ele agora vê,
nem sabemos quem lhe abriu os olhos.
Ele já tem idade para responder: perguntai-lho vós».
Foi por medo que eles deram esta resposta,
porque os judeus tinham decidido expulsar da sinagoga
quem reconhecesse que Jesus era o Messias.
Por isso é que disseram:
«Ele já tem idade para responder; perguntai-lho vós».
Os judeus chamaram outra vez o que tinha sido curado
e disseram-lhe: «Dá glória a Deus.
Nós sabemos que esse homem é pecador».
Ele respondeu: «Se é pecador, não sei. O que sei é que eu era cego e agora vejo».
Perguntaram-lhe então:
«Que te fez Ele? Como te abriu os olhos?»
O homem replicou:
«Já vos disse e não destes ouvidos. Porque desejais ouvi-lo novamente?
Também quereis fazer-vos seus discípulos?»
Então insultaram-no e disseram-lhe:
«Tu é que és seu discípulo; nós somos discípulos de Moisés;
mas este, nem sabemos de onde é».
O homem respondeu-lhes:
«Isto é realmente estranho: não sabeis de onde Ele é,
mas a verdade é que Ele me deu a vista.
Ora, nós sabemos que Deus não escuta os pecadores,
mas escuta aqueles que O adoram e fazem a sua vontade.
Nunca se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos
a um cego de nascença.
Se Ele não viesse de Deus, nada podia fazer».
Replicaram-lhe então eles:
«Tu nasceste inteiramente em pecado e pretendes ensinar-nos?»
E expulsaram-no.
Jesus soube que o tinham expulsado e, encontrando-o, disse-lhe:
«Tu acreditas no Filho do homem?»
Ele respondeu-Lhe:
«Senhor, quem é Ele, para que eu acredite?»
Disse-lhe Jesus;
«Já O viste: é Quem está a falar contigo».
O homem prostrou-se diante de Jesus e exclamou:
«Eu creio, Senhor».
Então Jesus disse-lhe:
«Eu vim para exercer um juízo: os que não vêem ficarão a ver;
os que vêem ficarão cegos».
Alguns fariseus que estavam com Ele, ouvindo isto,
perguntaram-Lhe:
«Nós também somos cegos?»
Respondeu-lhes Jesus:
«Se fôsseis cegos, não teríeis pecado.
Mas como agora dizeis: ‘Não vemos’, o vosso pecado permanece».
• O que é que, no nosso mundo, gera escuridão, trevas, alienação, cegueira e morte? O que é que impede o homem de ser livre e de se realizar plenamente, conforme previa o projecto de Deus?
• A catequese que João nos propõe hoje garante-nos: a realização plena do homem continua a ser a prioridade de Deus. Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio ao encontro dos homens e mostrou-lhes a luz libertadora: convidou-os a renunciar ao egoísmo e auto-suficiência que geram “trevas”, sofrimento, escravidão e a fazerem da vida um dom, por amor. Aderir a esta proposta é viver na “luz”. Como é que eu me situo face ao desafio que, em Jesus, Deus me faz?
• O Evangelho deste domingo descreve várias formas de responder negativamente à “luz” libertadora que Jesus oferece. Há aqueles que se opõem decididamente à proposta de Jesus porque estão instalados na mentira e a “luz” de Jesus só os incomoda; há aqueles que têm medo de enfrentar as “bocas”, as críticas, que se deixam manipular pela opinião dominante, e que, por medo, preferem continuar escravos do que arriscar ser livres; há aqueles que, apesar de reconhecerem as vantagens da “luz”, deixam que o comodismo e a inércia os prendam numa vida de escravos… Eu identifico-me com algum destes grupos?
• O cego que escolhe a “luz” e que adere incondicionalmente a Jesus e à sua proposta libertadora é o modelo que nos é proposto. A Palavra de Deus convida-nos, neste tempo de Quaresma, a um processo de renovação que nos leve a deixar tudo o que nos escraviza, nos aliena, nos oprime – no fundo, tudo o que impede que brilhe em nós a “luz” de Deus e que impede a nossa plena realização. Para que a celebração da ressurreição – na manhã de Páscoa – signifique algo, é preciso realizarmos esta caminhada quaresmal e renascermos, feitos Homens Novos, que vivem na “luz” e que dão testemunho da “luz”. O que é que eu posso fazer para que isso aconteça?
• Receber a “luz” que Cristo oferece é, também, acender a “luz” da esperança no mundo. O que é que eu faço para eliminar as “trevas” que geram sofrimento, injustiça, mentira e alienação? A “luz” de Cristo que os padrinhos me passaram no dia em que fui baptizado brilha em mim e ilumina o mundo?
Senhor!
Eu bem Te vejo, apesar
da escuridão!
Inda me não tocou a Tua Mão,
mas bem na sinto, bem na sinto em meus cabelos,
numa carícia igual a um perfume ou um perdão.
Senhor!
Eu bem Te vejo, apesar
da escuridão!
[…]
(Sebastião da Gama, “Ressurreição”, in Serra-Mãe)
Amigo dos olhos abertos!
Não sei como te chamar porque não nos chegou o teu nome mas o evangelista João deixou-nos um retrato teu que impressiona sempre que o escuto e ficou-me uma vontade de te escrever. Ao contrário de outros cegos dos evangelhos parece que não pediste nenhum milagre a Jesus. Não gritaste nem se ouviu a tua voz. Talvez nem tivesses ouvido falar dele. De facto foi Jesus que te encontrou no caminho e depois de tentar libertar as mentes dos discípulos do preconceito de que a doença e o sofrimento eram castigo dos pecados, pôs-te "na berlinda". Deves ter ficado surpreendido com aquele lodo feito de saliva e terra que Ele te pôs nos olhos e com a ordem para te ires lavar à piscina de Siloé. E foste, e ainda bem que foste!
Gostava tanto de te ouvir contar como foi o teu abrir de olhos e começares a ver! Sabes, às vezes, andamos com os olhos desfocados ou cheios de escamas que já nem nos maravilhamos com o dom de ver. Como se andássemos doentes dos olhos e só vemos o que é feio, o mal dos outros e do mundo, a escuridão. Imagino o teu olhar como o das crianças, encantado com tudo, maravilhado com o insignificante e com o grandioso, espantado quando viste o teu rosto pela primeira vez e o daqueles que só conhecias pela voz, pelas mãos. Estavas a nascer de novo! E como isso te transformou. Já não fazia sentido pedir esmola mas era preciso dizer que eras o mesmo e também outro. No meio de acesa polémica foste questionado, levado aos fariseus, quiseram manipular-te, insultaram-te, mas foi crescendo em ti uma voz, uma coragem para até ironizar com os que te julgavam. Não aceitavam que tivesses nascido "inteiramente em pecado" e estivesses a ensiná-los! Continuamos a ter dificuldade em acolher as surpresas de Deus. É tão fácil espalhar o preconceito e viver em condomínios fechados do pensamento. Julgamos ver melhor e talvez estejamos cegos para o essencial. Mas também há modos refinados de prolongar "cegueiras", de esconder verdades, de manipular pessoas e multidões. Na política, na economia e até na fé há "sábados" intocáveis de inércia e acomodamento, de poderes apetecíveis, de tradições vazias, de injustiças prolongadas. Continua a ser verdade: "o pior cego é aquele que não quer ver".
Mas foi o olhar de Jesus que mais te impressionou, não foi? Há uma canção brasileira que diz assim "Quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolvem-se encontrar... ". Ver e acreditar foi um enorme passo. Como se transformou o teu caminho? Como se transformam os nossos que também acreditamos em Jesus? Pode ver-se nos nossos olhos a luz que passou a habitar os teus? Obrigado pela tua paciência em me leres.
Um abraço a Jesus e vemo-nos por aí!
P. Vítor Gonçalves