D. Rui Valério: Brasão episcopal do Patriarca de Lisboa
Descrição Heráldica
Escudo azul-celeste dividido em três campos por cruz em prata. No campo superior, a pomba em prata; no campo à esquerda, uma vieira sobre três linhas onduladas, tudo em ouro; no campo à direita, estrela de sete raios de ouro.
O escudo assente sobre cruz arquiepiscopal (patriarcal) de ouro com pedraria de vermelho, encimada por chapéu de 15+15 borlas, como é uso dos Patriarcas da Igreja Latina, tudo de púrpura como é próprio do Patriarca de Lisboa.
Sotoposto ao escudo, listel dourado que ostenta o lema a vermelho, em maiúsculas, “IN MANIBUS TUIS”.
Interpretação
O azul-celeste inunda o espaço do escudo. É a cor dos Céus que a tradição cristã identifica com o Sagrado, com Deus, a origem absoluta de tudo quanto existe. É para o Céu que o crente é convidado a dirigir a sua atenção. É nele que habita a sua Pátria definitiva. Peregrinamos no tempo à procura da eternidade. Não foi para a escassez dos instantes que fomos criados, mas para essa morada definitiva e intemporal que a cada momento nos interpela a deixarmos tudo por seu amor.
A cruz da sabedoria. Y: O brasão está centrado na primeira letra de YIÓS, Filho. Evoca Cristo, o Filho amado do Pai que, na cruz, de braços abertos e estendidos, se oferece pela salvação do mundo. Afirmação cristocêntrica, pois tudo se realiza a partir d’Ele e converge para Ele que, no Sacrifício de amor, nos revela a Verdadeira Sabedoria. A cruz da sabedoria que divide o campo do escudo, é memória de Cristo crucificado, “escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas, para os que são chamados, é poder e sabedoria de Deus. Porque, o que é tido como loucura de Deus é mais sábio que os homens e o que é tido como fraqueza de Deus é mais forte que os homens” (1 Cor 1, 23-25).
Rasga-se o Céu e o Espírito desce sobre Jesus, em forma de pomba (Lc 3, 21-22). É o dom inaudito que o Pai comunica ao Filho para que este o reserve sobre todos os que abraçarem a boa notícia segundo a qual Deus nos ama sem reservas nem limites. É no Espírito que a vida íntima de Deus se derrama sobre a humanidade. Através do Espírito, Deus consagra o seu eleito para a missão de “anunciar a Boa-Nova aos pobres”, “proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista”, “libertar os oprimidos” e “proclamara um ano favorável da parte do Senhor” (Lc 4, 18-19).
No batismo – que a vieira e as linhas onduladas das águas simbolizam – o crente é ungido no Espírito e enxertado em Cristo. Uma nova vida se configura no coração do homem novo. As águas primordiais são o princípio da vida, a renovação do ser e a recuperação de tudo o que parecia perdido. Mas este dom deve ser recursivamente trazido à consciência e nela assumido. Assim, ao longo da vida, entre tribulações e caminhos inesperados, torna-se necessário renovar essa promessa originária que um tempo fora efetuada no baptismo, como Luís Maria Grignion de Monfort propôs, no carisma que doou à Igreja. Ainda, segundo uma interpretação fundada em Santo Agostinho, a vieira evoca a profundidade do mistério de Deus no qual o baptismo, pelo dom do Espírito Santo, nos faz mergulhar.
As águas onde a vida baloiça recordam também o tempo que servi na Armada e nela entendi quão valiosa é a camaradagem e o bem comum.
Mas a história pessoal tem as suas particularidades. Nascido na Diocese de Leiria-Fátima, foi à luz e Maria, a Mãe de Jesus e a Senhora de Fátima, a Senhora mais brilhante que o sol, que amadureci para a vida cristã. E por um acaso providencial, encontrei a congregação dos padres monfortinos, onde cresci humana e espiritualmente, nessa devoção a Maria que é caminho para Deus. Foi à sombra do olhar atento e materno de Nossa Senhora de Fátima que vi medrar em mim a vocação sacerdotal e o desejo de entrega aos humildes e aos pobres (Lc 1, 52-53), bem como às crianças a quem Maria se fez presente nesse desconhecido fim do mundo que era, então, a Cova da Iria. Foi aí também que incessantemente a Senhora de Fátima se não cansou de repropor o apelo à oração e à conversão, no espírito originário da Boa Nova: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-nos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15).
“O meu destino está nas tuas mãos” (Sl 31, 16), canta o salmista no meio das provações da vida. Não há maior felicidade do que abandonar-se inteiramente nas mãos de Deus, nas mãos d’Aquele que nunca nos falta, ainda que se desmoronem todas as certezas e vacile a confiança entre os homens. Só Deus basta.
Segundo a interpretação de Santo Ireneu, as mãos de Deus são o Seu Filho, Jesus Cristo, e o Espírito Santo, nos quais nos é dado viver.
E conquanto Cristo haja sentido o mais atroz de todos os sofrimentos (Mc 15, 34), foi nas mãos do Pai que ele entregou confiadamente o seu espírito (Lc 23, 46). Vivo, por isso, no desejo ardente de permanecer, sossegado e tranquilo, nas mãos de Deus, como criança saciada ao colo de sua mãe (Sl 131, 2).
D. Rui Valério, novo Patriarca de Lisboa
Saudação de D. Rui Valério na celebração de tomada de posse
1. A presença na casa do Senhor, encoraja-me a fazer minhas as palavras da Virgem Maria: «a minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 46-47) - sinto júbilo por experimentar tão intimamente a força do amor de Deus, que verdadeiramente elege e recria continuamente nas sendas da história, e que, tomando em suas mãos a fragilidade do barro de cada um, lhe confere a sua Beleza, a sua Bondade, a sua Verdade e o seu Amor. Ilumina-me de esperança o processo da salvação integral que, em Cristo, quer oferecer, e que nunca cessa de repropor ao mundo e à humanidade, através de um estilo que Santo Agostinho imortalizou nas palavras “Sem ti, nada faz Aquele que, mesmo sem ti te criou”.
Reconheço, com gratidão, a profundidade profética impressa no gesto e na circunstância de tomar posse como Patriarca de Lisboa, precisamente na casa do Senhor, uma força e mensagem simbólica, sim, mas também cheia de pathos e compromisso: sempre tudo terá início a partir d’Ele, de Cristo, e é n’Ele que começará cada passo a fazer. Como entoa S. João no Prólogo do seu evangelho “Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência.” Porque só “Nele é que está a Vida, E a Vida é a Luz dos homens.” (Jo 1, 3-4) Eis a pauta que conduzirá cada dia da nossa vida.
2. Saúdo Vossa Eminência senhor D. Manuel Clemente e, na Sua pessoa, a minha reverência pelo caminho histórico, espiritual e pastoral do Patriarcado, que Vossa Eminência enalteceu e engrandeceu. Agradeço a dádiva da Sua amizade e o marco evangelizador que imprimiu na diocese e que, como Pastor e líder, soube contagiar a todo o povo de Deus, nomeadamente na construção de pontes entre o evangelho e a integralidade da vida.
Saúdo o Senhor Núncio Apostólico e agradeço toda a sua dedicação e espírito de missão, reveladoras de um grande amor à Igreja de Lisboa. Na pessoa de V.ª Excelência a minha total fidelidade, disponibilidade e comunhão a Sua Santidade, o Papa Francisco.
Saúdo os Reverendíssimos Senhores Bispos, D. Joaquim Mendes e D. Américo Aguiar; para além do nível do acolhimento com que me receberam, só oferecido a um irmão, agradeço o testemunho de dedicação, entrega e competência com que servem a Igreja. O nível organizativo e de conteúdos das Jornada Mundial da Juventude é apenas uma expressão do nível e da grandeza do vosso ministério.
Saúdo o Ilustríssimo Cabido e todo o Presbitério de Lisboa. A nossa presença nesta Igreja Mãe de Lisboa, onde nos encontramos a tomar posse das funções de Pastor, exprime bem como é perante vós, e convosco, e no meio de vós que nos posicionamos. Gostaria de expressar aqui o meu agradecimento, certo em nome pessoal, mas também em nome da comunidade cristã, pela seriedade que colocais no desempenho do vosso múnus presbiteral, mas sobretudo porque sois cultores de vida espiritual, que é já uma marca do perfil sacerdotal de Lisboa.
Caríssimos, o presbitério é a fonte que estrutura o presbítero e a sua essência é a comunhão. O Concílio Vaticano II, contrariamente ao que teria sido a sua genuína intenção, quando reafirma a centralidade da koinonia, não deseja apenas conferir-lhe um caráter institucional. Como observava um dos comentadores mais autorizados dos seus documentos, monsenhor Gérard Philips, a comunhão está referida, também, à dimensão antropológica e pessoal de cada membro do Povo de Deus. Significa que, ao bom estilo evangélico, quando Jesus envolve na força do amor todas as dimensões do ser humano - porque se «ama a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente” (Mt 22, 37) -, assim nós realizaremos a comunhão como irmãos, vivendo-a com todo o nosso ser e em todos os níveis da nossa realidade.
Saúdo os digníssimos Diáconos Permanentes, manifestando-vos não só o meu sentido reconhecimento pelo serviço que, tão devotadamente, ofereceis à Igreja e ao Povo de Deus, congratulo-me também convosco porque, a servir, constituis uma força de esperança para a humanidade.
Saúdo as consagradas e os consagrados; obrigado pela vossa devotada vida de oração e pela vida de serviço apostólico com que cimentais as estruturas da edificação do Reino de Deus. Tendes o privilégio de viver do essencial da vida e de serdes, dessa essencialidade, profetas e testemunhas. Ao mundo, tantas vezes desorientado, reproponde, com alegria, a grandeza amorosa da castidade, a radicalidade da pobreza, a liberdade da obediência.
Saúdo o santo Povo de Deus, os seminaristas, os leigos, os jovens, todas as mulheres e homens de boa vontade. Obrigado pelo vosso testemunho de santidade e de amor a Cristo e à Igreja. Vós fostes constituídos os principais depositários da palavra que o Espírito Santo dirigiu à Igreja de Lisboa, no decorrer das JMJ. Estais convocados para a expressar. E nós, prontos para a receber.
Saúdo todas as vítimas de todos os tipos de abuso. Não repito palavras já esmorecidas pelo uso, mas dou-vos, e darei sempre, a minha solidariedade, a minha presença e constante proximidade. Convosco carregarei o fardo do vosso sofrimento, acreditando na cura e redenção.
3. Por fim, uma referência ao tempo em que nos situamos: é dia de sábado e memória litúrgica de Santa Maria. Providencialmente, evoca o silêncio do sábado santo, mas que a companhia da Virgem Santíssima nos abra à dimensão eclesial e ao seu envio para a missão.
Evoco, nesta hora solene, a obra de Deus na Igreja de Lisboa, ao longo da história. Verdadeiro sinal dos tempos e do estímulo a caminhar no amor, na esperança e na fé incondicional em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo; mas, com particular incidência, as bênçãos que o mesmo Senhor a quem pertence o ontem, o hoje e a eternidade, derramou no passado recente: o caminho sinodal, a realização da Jornada Mundial da Juventude e as muitas vidas de santidade de sacerdotes, de consagrados e de leigos. Tudo tem contribuído para um compromisso de evangelização e para um caminho de sinodalidade.
Em segundo lugar, as vicissitudes eclesiais, sociais e culturais das últimas décadas têm sido, para a nossa Igreja, de facto, despertadores para a missão evangelizadora. Não seria difícil descrever as etapas e analisar as causas deste novo paradigma pastoral; mas, limitar-me-ei a considerá-lo como um dado de facto e acrescentar o meu testemunho. Antes de mais, a nossa sociedade está em constante mutação, sendo que este caráter mutável constitui o âmago de todas as vertentes antropológicas, ou seja, diz respeito a todos e à integralidade do ser humano. Assim, não são apenas as escolhas profissionais que vão mudando ao ritmo da oferta de emprego, nem a voragem com que hoje se embarca na pluralidade de experiências e na diversidade de possibilidades, para depois se tomar uma decisão... Também a dimensão da espiritualidade como que adquiriu um “ritmo” diferente. É assim um misto de espiritualidade buffet e self service, em que se tende a dispensar os “intermediários” e se colhem das várias propostas fragmentos de conveniência. O que constitui, para nós, um real desafio. Mais uma vez, a cena a que São Paulo alude nos Atos dos Apóstolos, no discurso tido no Areópago de Atenas sobre as muitas divindades que flutuavam nas ruas da cidade, inclusive o deus desconhecido, é atual também hoje.
Tal como sempre, também hoje, à Igreja, incumbe a grave responsabilidade de indicar o verdadeiro alimento, a verdadeira água, e oferecê-lo. É essa a sua missão urgente.
Como já anotava o teólogo Yves Congar, acerca da pertinência da missão evangelizadora, conservando uma desarmante atualidade, e cito: “o nosso mundo já não está naquela espécie de harmonia e homogeneidade com a cultura católica, com os seus símbolos, com as formas de expressão católicas. Simplesmente é profano, secular, laico; é científico e técnico; mas também, cada vez mais, utilitário, hiper sensual, violento, afrodisíaco. Em larga medida é ateu, não porque esteja demonstrada a inexistência de Deus, mas porque se constrói cada vez mais fora da perspetiva de Deus e do seu culto. E rematava: hoje, exigem-se gestos verdadeiros, uma palavra simples e verdadeira, sinais fortes e compreensíveis. Quer-se que a liturgia seja de Alguém, que seja expressão da sua alma e, por isso, que envolva e diga respeito à vida.”
Queremos ser Igreja Missionária que, ao estilo de Maria, se levanta apressadamente para a montanha do mundo e da humanidade.
Sé Patriarcal de Lisboa, 2 de setembro de 2023
+ Rui Valério, Patriarca de Lisboa
D. Rui Valério: o novo Patriarca de Lisboa
D. Rui Valério: Mensagem à amada Igreja de Lisboa
1. Obrigado, Lisboa, capital da juventude e cidade da esperança, por teres iluminado de alegria o céu do mundo e fortalecido de amor o coração de todos os que acreditam na Vida. Para sempre os teus dias serão Jornadas de encontro e a tua história de horizontes onde todos têm lugar.
Como a terra depois de arada permanece em silêncio para que a força transbordante das sementes nela lançadas fecunde e cresça, também este é, para nós, o tempo do silêncio para que os grãos de vida e esperança, que a Jornada Mundial da Juventude derramou em nossos corações, germinem e tragam fruto abundante de humildade, de santidade e de serviço missionário que sonha chegar a todos.
2. Por isso, apenas três sentimentos tomam conta do meu coração na circunstância do chamamento deste pobre e humilde servo do Senhor para Patriarca de Lisboa.
O primeiro está contido nas palavras temor e tremor: A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque olhou para este humilde servo e, embora conhecendo a dimensão e natureza dos seus limites, o chamou à grandiosa missão de servir a Igreja de Lisboa. Uma Barca imensa repleta de vida, de serviço, de santidade e de história missionária… uma grandiosidade a contrastar com a pequenez dos meus remos.
Enche-me de esperança, contudo, a certeza de que Cristo e o Espírito, com Maria, são os verdadeiros guias e protagonistas da Igreja; a graça e a força de Deus, a substância de toda a ação pastoral; o Evangelho de Jesus, a real matéria da missão. Por isso, confio que, através da minha fragilidade e pequenez, possam chegar a todos a força e a graça do Senhor. Nunca, como nesta hora, ressoam vigorosamente as palavras de São Paulo “quando sou fraco, então é que sou forte”.
Assim, com temor e tremor, ciente da minha fragilidade, mas por amor a Cristo e à sua Igreja, na mais estrita fidelidade ao Santo Padre e em espírito de obediência, na graça de Deus e na alegria do Espírito, digo com Nossa Senhora “Sim, faça-se segundo a Vossa Palavra”.
O segundo sentimento decorre da minha intenção de escutar: “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho” (Hb 1, 1-3), na prontidão e alegria dos jovens, nos gestos e palavras do Papa Francisco, na disponibilidade e serviço de tanta instituição e na generosidade de muitas pessoas. Aqui, em Lisboa, Deus falou e tocou o coração e a vida da nossa amada Igreja, na qual estão todos e todos dela fazem parte. Estamos convocados a escutar-nos reciprocamente, permanecendo e caminhando juntos, ao bom jeito de sinodalidade, para escutar a voz de Deus na Palavra que Ele dirigiu a cada um de nós. Assim, a escuta é ponto estruturante do nosso programa, como o é o exemplo dos apóstolos pobres, despojados e desprendidos de tudo, mas cheios do Espírito Santo que os configurava a Cristo vivo e que, com Maria Santíssima, os capacitava para incendiarem de amor o coração da humanidade, escancarando o horizonte de vida de cada pessoa à luz da eternidade.
Assumiremos como prática o gesto próprio do Bom Pastor que deixou as noventa e nove ovelhas para ir à procura da que se perdera. Para Jesus Cristo, não é lícito deixar ninguém para trás. E um dos modos mais pertinentes para manter viva a chama e a mística da Jornada Mundial da Juventude é não deslocar o foco dos jovens. Assim, no horizonte de vida e ação da nossa Igreja está bem presente quanto afirmava São Paulo VI acerca da Igreja ter de ser missionária sob pena de não ser e, analogamente, o Papa Francisco, ainda mais concreto, que sem jovens a Igreja simplesmente morre. Para os jovens e com os jovens, somos chamados a ser Igreja missionária e em saída, levando no coração o ardor de chegar a todos.
O terceiro sentimento é de alegria no serviço. Na presença do Senhor, de quem recebeu o maravilhoso dom da esperança e da vida nova e o mandato missionário de o levar aos recantos mais escondidos da interioridade de cada um de nós, bem como aos quatro cantos do mundo inteiro, a Igreja de Lisboa estará à altura da confiança que Cristo Jesus uma vez mais lhe confiou.
3. Igreja abençoada por infinitas graças que, no decorrer dos séculos, mas sobretudo no dealbar de épocas, têm configurado o rosto de uma Igreja aberta, corajosa, que não vira costas a nenhum desafio e que faz do serviço a Cristo e ao Evangelho a fonte da sua alegria. Firme na fé e segura no caminho do amor, sabe que é barca guiada e protegida por Cristo, pela Santíssima Virgem, São Vicente e Santo António, com sacerdotes, diáconos, religiosos(as) e leigos(as) conscientes de que são hoje, como noutras eras, chamados a estar dentro e nos lugares de charneira.
Assim, a Igreja de Lisboa, missionária e evangelizadora, tem no Tejo e no mar que a banha essa faceta, cantada por Pessoa na obra Mensagem: “E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma / E faz a febre em mim de navegar / Só encontrará de Deus na eterna calma / O porto sempre por achar.”
4. Agradeço ao Senhor a sua confiança. Agradeço à Santa Igreja: o encorajamento do Santo Padre, o apoio do Senhor Núncio Apostólico e o estímulo e amizade do Senhor D. Manuel Clemente, a quem saúdo reconhecendo, grato, o exemplo de Bom Pastor que nos ensina a dar a vida pelo povo de Deus, para que esse mesmo povo tenha vida em abundância.
5. Saúdo os Senhores Bispos Auxiliares, D. Joaquim Mendes e D. Américo Aguiar, como irmão ao serviço do Senhor e da sua Igreja, disposto a um verdadeiro espírito de colaboração para fazer da ação pastoral um itinerário de configuração a Cristo. Toca-me, particularmente, a profundidade espiritual da vossa vida e o carácter eclesial da vossa missão.
Saúdo o Presbitério de Lisboa e todos os sacerdotes que aqui vivem e trabalham. Pronto a caminhar convosco, é com gratidão e alegria que vejo em vós o rosto da dedicação total a Cristo e à Igreja. A vossa vida de comunhão com o Senhor edifica-me e estimula-me a servir todos com coragem e generosidade pastoral.
Saúdo os diáconos permanentes, expressão viva do serviço e da caridade da Igreja que, no Patriarcado de Lisboa, são ainda o rosto atual do nosso amado Padroeiro, São Vicente: caminharemos juntos e juntos servimos o Senhor e os irmãos.
Saúdo os(as) religiosos(as) e consagrados(as), louvando o Senhor por ter feito de Lisboa um oásis para a vida de oração, contemplação e ação de tantas ordens, congregações, institutos e estilos de vida, cujo eixo está na dádiva total a Cristo.
Saúdo os leigos, na luz sinodal que nos impele a caminhar juntos para realizar a plenitude da vocação da Igreja, como Corpo de Cristo. Na mudança de época que vivemos, pertence-vos a vós a determinante responsabilidade da Evangelização do mundo e da cultura nas suas mais variadas vertentes, e de configurar o rosto sinodal do Povo de Deus.
Saúdo os jovens, agradecendo, desde já, o dom da comparência na Jornada Mundial da Juventude e a dádiva da alegria e do entusiasmo com que iluminaram de esperança o céu da humanidade. Agora sois os depositários de um dinamismo de vida e esperança que juntos iremos expandir para manter vivo.
Saúdo os irmãos e irmãs vítimas de abusos por membros da Igreja, meus irmãos; partilho da vossa dor e, juntos, vamos prosseguir, com esperança, no caminho da cura total do vosso e nosso sofrimento, da tolerância zero.
Saúdo todas as mulheres e homens de boa vontade, com afeto e disponibilidade para dialogar, ciente de que todos somos chamados a construir o bem e a servir a casa comum onde nos é dado coabitar pacífica e harmoniosamente.
Saúdo, enfim, as ilustres entidades oficiais, detentoras da honrosa vocação de servir a comunidade; em espírito de cooperação conjugaremos esforços para promover a dignidade de cada pessoa e responder a todos os desafios humanistas.
In Manibus Tuis
+ Rui Valério
Assistência religiosa aos doentes
Impedir a assistência espiritual e religiosa a um doente é ilegal, injusto e desumano
O Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa (SAER) existe nos hospitais para garantir que os utentes sejam assistidos nas suas necessidades espirituais e religiosas de forma, adequada e permanente (1). É regulado pelo Decreto-lei 253/2009, de 27 de setembro, e está integrado nos cuidados de saúde prestados pelas unidades hospitalares, contribuindo, dessa forma, «para a qualidade dos cuidados prestados» (2) e para um hospital humanizado e centrado na pessoa.
Dois motivos essenciais e relacionados entre si fundamentam a existência do SAER nos hospitais modernos:
1º – O direito do utente à assistência espiritual e religiosa, dando conta do inegociável direito à liberdade religiosa inscrito no Código dos Direitos Humanos, garantido pela Constituição e regulado pela lei de liberdade religiosa. O internamento hospitalar não pode, por isso, constituir um impedimento ao «direito à assistência religiosa e à prática de atos de culto» (3) em liberdade de consciência. Neste sentido, impedir a alguém o acesso à assistência espiritual e religiosa é interferir no foro interno da consciência e substituir-se ou apropriar-se da vontade da pessoa de forma autoritária, intolerante, ilegal e injusta.
2º – A assistência espiritual e religiosa é «uma necessidade essencial, com efeitos relevantes na relação com o sofrimento e a doença» (4), sendo de particular relevância no sofrimento severo e em situações de fim de vida. Tendo como fundamento a investigação científica e indo ao encontro da prática de profissionais de saúde e da experiências das religiões, esta afirmação do Decreto-lei reconhece que a espiritualidade e a prática da fé, através da satisfação das necessidades espirituais, são promotoras e preventoras de saúde física e mental, contribuem para a recuperação da saúde e estão associadas a sentimentos de bem-estar, paz, conforto, reconciliação, propósito e sentido de vida, sendo uma preciosa ajuda no sofrimento. Pelo contrário, a negação, desvalorização ou marginalização das necessidades espirituais é, para o utente, fonte de grande angústia espiritual que acaba por se manifestar sintomatologicamente associada ao aumento de tensão, estados confusionais, ansiedade, depressão, desesperança, desejo de morte, comportamentos suicidas e até pedidos de eutanásia, levando a atitudes terapêuticas inadequadas e provocadoras de mais sofrimento. Neste sentido, impedir a um doente o acesso à assistência espiritual e religiosa é o mesmo que impedir a terapêutica adequada e aumentar o sofrimento, resultado numa atitude brutal, insensível, violenta e desumana.
Na minha prática assistencial – enquanto Assistente Espiritual de um grande hospital da área Metropolitana Lisboa, e a quem não foi vedado o acesso a utentes com covid-19 –, foi possível aferir a enorme importância que a presença, a visita e o acompanhamento espiritual prestado aos doentes que o solicitaram, e que se encontravam em situação de isolamento, assumia na sua própria condição, permitindo-lhes enfrentar os medos, as dúvidas, os anseios, as questões fundamentais da vida e reconduzi-los à perceção do sentido, à animação e à mitigação da angústia e do sentimento de solidão. Foi possível resgatar sentimentos de esperança, de confiança e de resiliência. Foi possível estabelecer ligações, foi possível estabelecer contactos com as famílias (até com o recurso das tecnologias e de videochamadas), salvaguardando o precioso e escasso tempo de médicos e enfermeiros para outras tarefas, e tornar mais presente o sabor dos afetos. Foi possível aumentar as respostas para uma assistência adequada e humanizada aos doentes, e não apenas para um cuidado técnico, que se reconhece como fundamental.
Evidentemente toda esta intervenção se desenvolveu no mais rigoroso cumprimento de todas as estritas normas, procedimentos e protocolos de segurança, tendo para tal contribuído o precioso envolvimento e instruções dos diversos profissionais, que instruíram, orientaram, esclareceram e integraram o Assistente Espiritual.
Acresce dizer que, com a consciência do valor desta presença junto dos doentes em questão, muitas das solicitações partiram dos próprios profissionais. Mais ainda, partilhando uma experiência comum, também os vários profissionais puderam sentir no Assistente Espiritual, um elemento mais no seio da Equipa Assistencial. Acolhendo-o e considerando-o. Num contexto muito complexo chegámos a desenhar e a construir sorrisos, nos utentes e nos profissionais.
Haverá orientações associadas às regras de contingência, face à pandemia, que fundamentem o impedimento ou proíbam a assistência espiritual e religiosa em contexto hospitalar? Que se saiba, não. Não parece existir nada substancialmente diferente daquilo que está inscrito e regulado pelo Decreto-lei 253/2009, onde não há doentes de primeira ou de segunda em relação à assistência espiritual. Sabemos que a covid-19 é uma situação infeto contagiosa grave que, em contexto de cuidados de saúde, exige rigor na execução dos protocolos e bom senso para evitar o contágio e propagação da infeção entre profissionais e para a comunidade. Sabemo-lo e respeitamo-lo!
A meu ver, não atender, desvalorizar, negar, impedir a assistência espiritual e religiosa a um doente, com ou sem covid, que a solicita por si ou por intermédio da família é ilegal e injusto, é brutal e é desumano. Percebo-o não a partir da compaixão e de cuidados integrais, mas de uma filosofia que reduz a pessoa humana a uma visão bio mecanicista e nega outras dimensões, nomeadamente a dimensão espiritual e religiosa e a sua importância. Impedir a assistência espiritual e religiosa, sendo que esta é um direito e uma necessidade do doente reconhecida por lei, parece-me resultar numa postura, contrária à lei e aos interesses do doente. Não será tempo de, em nome da razão, da verdade e da compaixão, reconhecer, atender e promover os direitos dos doentes, proporcionando-lhes que usem a totalidade dos seus recursos, nomeadamente os espirituais e religiosos, no enfrentamento da doença e do sofrimento?
Assim o entendo.
Fernando d’Oliveira, Assistente Espiritual e Religioso da Casa de Saúde do Telhal
Ecclesia, 07-08-2020
O Papa escreve aos Sacerdotes de Roma
Caros irmãos,
Neste tempo pascal pensava encontrar-vos e celebrar juntos a Missa Crismal. Não sendo possível uma celebração de carácter diocesano, escrevo-vos esta carta. A nova fase que iniciamos requer de nós sabedoria, previsão e compromisso comum, para que todos os esforços e sacrifícios feitos até agora não sejam em vão.
Durante este tempo de pandemia, muitos de vós partilhastes comigo, por correio eletrónico ou por telefone, o que significava esta situação imprevista e desconcertante. Portanto, sem poder sair nem ter um contacto direto, permitistes-me saber “em primeira mão” o que estáveis a viver. Essa partilha alimentou a minha oração, em muitos casos para agradecer pelo testemunho corajoso e generoso que recebia de vós; noutros, era a súplica e a intercessão confiante no Senhor que sempre estende a sua mão (cf. Mt 14,31). Embora fosse necessário manter o distanciamento social, isso não impediu que se fortalecesse sentido de pertença, de comunhão e de missão, que nos ajudou a garantir que a caridade, especialmente para com as pessoas e comunidades mais desfavorecidas, não fosse posta em quarentena. Nesses diálogos sinceros, pude constatar que a distância necessária não era sinónimo de retrocesso ou fechamento em si mesmo que anestesia, adormece e apaga a missão.
Motivado por estes intercâmbios, escrevo-vos porque desejo estar mais próximo de vós para acompanhar, partilhar e confirmar o vosso caminho. A esperança depende também de nós e exige que nos ajudemos a mantê-la viva e ativa: uma esperança contagiosa que se cultiva e reforça no encontro com os outros e que, como dom e tarefa, nos é dada para construir a nova “normalidade” que tanto desejamos.
Escrevo-vos olhando para a primeira comunidade apostólica, que também viveu momentos de confinamento, isolamento, medo e incerteza. Passaram-se cinquenta dias entre a imobilidade, o fechamento e o incipiente anúncio que haveria de mudar a sua vida para sempre. Enquanto as portas do lugar onde se encontravam com medo estavam fechadas, os discípulos foram surpreendidos por Jesus, «apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: “A paz esteja convosco”. Dito isto, mostrou lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor. Jesus disse lhes de novo: “A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós”. Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes: “Recebei o Espírito Santo”» (Jo 20,19-22). Que também nós nos deixemos surpreender!
«Estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, com medo estavam» (Jo 20,19)
Hoje como ontem sentimos que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e não há nada genuinamente humano que não encontre eco no seu coração” (Gaudium et spes, 1). Como conhecemos bem tudo isto! Todos escutámos os números e as percentagens que nos assolavam dia após dia; tocámos a dor do nosso povo com as mãos. O que ia chegando não eram dados distantes: as estatísticas tinham nomes, rostos, histórias partilhadas. Como comunidade presbiteral, não fomos estranhos a esta realidade e não ficámos a olhá-la pela janela; e encharcados pela tempestade que enfurecia, usastes de todos os meios para estar presentes e acompanhar as vossas comunidades: vistes chegar o lobo e não fugistes nem abandonastes o rebanho (cf. Jo 10 12-13).
Sofremos a perda repentina de familiares, vizinhos, amigos, paroquianos, confessores, pontos de referência da nossa fé. Vimos os rostos desconsolados daqueles que não puderam estar perto e dizer adeus aos seus entes queridos nas suas últimas horas. Vimos o sofrimento e a impotência dos profissionais de saúde que, exaustos, se esgotavam em intermináveis dias de trabalho, preocupados em atender a tantos pedidos. Todos sentimos a insegurança e o medo de trabalhadores e voluntários que se expunham diariamente para assegurar os serviços essenciais; e também para acompanhar e cuidar daqueles que, devido à sua exclusão e vulnerabilidade, sofriam ainda mais as consequências desta pandemia. Ouvimos e vimos as dificuldades e os transtornos do confinamento social: a solidão e o isolamento, especialmente dos idosos; a ansiedade, a angústia e o sentimento de falta de proteção diante da incerteza do trabalho e da habitação; a violência e o desgaste nas relações. O medo ancestral do contágio voltou a atacar com força. Partilhámos também as angustiantes preocupações de famílias inteiras que não sabem o que pôr na mesa na próxima semana.
Experimentámos a nossa própria vulnerabilidade e impotência. Assim como o forno põe à prova os vasos do oleiro, também fomos postos à prova (cf. Sir 27,5). Atordoados com tudo o que estava a acontecer, sentimos de maneira amplificada a precariedade da nossa vida e dos compromissos apostólicos. A imprevisibilidade da situação revelou a nossa incapacidade de conviver e de nos confrontarmos com o desconhecido, com o que não podemos governar ou controlar e, como todos os outros, sentimo-nos confusos, receosos, indefesos. Vivemos também aquela ira saudável e necessária que nos leva a não deixarmos cair os braços diante das injustiças e nos recorda que fomos sonhados para a Vida. Como Nicodemos, à noite, surpreendidos porque “o vento sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, perguntamo-nos: “Como pode isto acontecer?”. E Jesus respondeu-nos: “Tu és mestre de Israel e não sabes essas coisas?” (cf. Jo 3,8-10).
A complexidade do que se devia enfrentar não tolerava receitas ou respostas de manual; exigia muito mais do que fáceis exortações ou discursos edificantes, incapazes de criar raízes e assumir conscientemente tudo o que a vida concreta exigia de nós. A dor do nosso povo causava-nos sofrimentos, as suas incertezas atingiam-nos, a nossa fragilidade comum despia-nos de qualquer falsa condescendência idealista ou espiritualista, bem como de qualquer tentativa de fuga puritana. Ninguém é estranho a tudo o que acontece. Podemos dizer que vivemos comunitariamente a hora do pranto do Senhor: choramos diante do túmulo do amigo Lázaro (cf. Jo 11,35), diante da falta de abertura do seu povo (cf. Lc 13,14; 19,41), na noite escura do Getsémani (cf. Mc 14,32-42; Lc 22,44). É também a hora do pranto do discípulo diante do mistério da Cruz e do mal que atinge tantos inocentes. É o pranto amargo de Pedro depois da negação (cf. Lc 22,62), de Maria Madalena diante do sepulcro (cf. Jo 20, 11).
Sabemos que, nessas circunstâncias, não é fácil encontrar o caminho a percorrer, e nem sequer faltarão as vozes que dirão tudo o que poderia ter sido feito diante desta realidade desconhecida. Os nossos modos habituais de nos relacionarmos, organizarmos, celebrarmos, rezarmos, convocarmos e até de enfrentarmos os conflitos foram modificados e postos em causa por uma presença invisível que transformou a nossa quotidianidade em adversidade. Não se trata apenas de um facto individual, familiar, de um determinado grupo social ou de uma terra. As características do vírus fazem desaparecer as lógicas com as quais estávamos habituados a dividir ou classificar a realidade. A pandemia não conhece adjetivos nem limites, e ninguém pode pensar em se desenrascar sozinho. Todos somos atingidos e envolvidos.
A narrativa de uma sociedade profilática, imperturbável e sempre pronta para o consumo indefinido foi posta em causa, revelando falta de imunidade cultural e espiritual diante dos conflitos. Uma série de perguntas e problemas antigos e novos (que muitas regiões consideravam ultrapassados e coisas do passado) ocuparam o horizonte e a atenção. Perguntas que não encontrarão resposta simplesmente com a reabertura das várias atividades; pelo contrário, será indispensável desenvolver uma escuta atenta mas cheia de esperança, serena mas tenaz, constante mas não ansiosa, que possa preparar e aplanar os caminhos que o Senhor nos chama a percorrer (cf. Mc 1,2-3). Sabemos que das tribulações e das experiências dolorosas não saímos iguais a como entramos. Devemos estar vigilantes e atentos. O próprio Senhor, na sua hora crucial, rezou por esta intenção: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do Mal” (Jo 17,15). Expostos e atingidos pessoal e comunitariamente na nossa vulnerabilidade e fragilidade e nos nossos limites, corremos o sério risco de nos retirarmos e de estarmos a “remoer” a desolação que a pandemia nos apresenta, bem como de nos exasperarmos num otimismo ilimitado, incapaz de aceitar a dimensão real dos acontecimentos (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 226-228).
As horas da tribulação questionam a nossa capacidade de discernimento para descobrir quais são as tentações que ameaçam apanhar-nos numa atmosfera de perplexidade e confusão, para depois nos fazer cair numa tendência que impedirá as nossas comunidades de promover a nova vida que o Senhor Ressuscitado nos quer dar. São diversas as tentações, típicas deste tempo, que podem cegar-nos e fazer-nos cultivar certos sentimentos e atitudes que não permitem que a esperança estimule a nossa criatividade, o nosso talento e a nossa capacidade de resposta: desde o querer assumir honestamente a gravidade da situação, mas tentando resolvê-la apenas com atividades substitutivas ou paliativas, esperando que tudo volte à “normalidade”, ignorando as feridas profundas e o número de pessoas que entretanto faleceram; até permanecermos imersos numa certa nostalgia paralisante do passado recente que nos faz dizer “nada será como antes” e nos torna incapazes de convidar outras pessoas a sonhar e a desenvolver novos caminhos e novos estilos de vida.
«Veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse lhes: “A paz esteja convosco”. Dito isto, mostrou lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor. Jesus disse lhes de novo: “A paz esteja convosco”» (Jo 20,19-21).
O Senhor não escolheu nem procurou uma situação ideal para entrar na vida dos seus discípulos. Teríamos preferido, com certeza, que tudo o que se passou não tivesse acontecido, mas aconteceu; e, como os discípulos de Emaús, podemos também continuar a murmurar entristecidos ao longo do caminho (cf. Lc 24,13-21). Apresentando-Se no Cenáculo com as portas fechadas, no meio do isolamento, do medo e da insegurança em que viviam, o Senhor conseguiu transformar toda a lógica e dar um novo significado à história e aos acontecimentos. Cada tempo é adequado para o anúncio da paz; nenhuma circunstância está desprovida da sua graça. A sua presença no meio do confinamento e às ausências forçadas, anuncia aos discípulos de ontem como a nós hoje um novo dia capaz de questionar a imobilidade e a resignação e de mobilizar todos os dons para o serviço da comunidade. Com a sua presença, o confinamento tornou-se fecundo, dando vida à nova comunidade apostólica.
Digamos com confiança e sem medo: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20). Não tenhamos medo dos cenários complexos em que vivemos, porque aí, no meio de nós, está o Senhor; Deus sempre realizou o milagre de gerar bons frutos (cf. Jo 15,5). A alegria cristã nasce precisamente desta certeza. No meio de contradições e de incompreensões que temos de enfrentar todos os dias, submersos e até mesmo atordoados por tantas palavras e conexões, esconde-se a voz do Ressuscitado que nos diz: «A paz esteja convosco!».
É reconfortante pegar o Evangelho e contemplar Jesus no meio do seu povo, acolhendo e abraçando a vida e as pessoas tal como se apresentam. Os seus gestos encarnam o belíssimo cântico de Maria: «Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes» (Lc 1,51-52). Ele próprio ofereceu as suas mãos e o seu lado aberto como um caminho de ressurreição. Não esconde nem disfarça as suas feridas; pelo contrário, convida Tomé a tocar com a mão até que ponto como um peito ferido pode ser fonte de Vida em abundância (cf. Jo 20,27-29).
Em repetidas ocasiões, como companheiro espiritual, pude testemunhar que “a pessoa que vê as coisas como são realmente deixa-se levar pela dor e pelas lágrimas no seu coração, é capaz de alcançar as profundezas da vida e ser verdadeiramente feliz”. Essa pessoa é consolada, mas com a consolação de Jesus e não com a do mundo. Assim pode ter a coragem de partilhar o sofrimento dos outros e deixar de fugir das situações dolorosas. Desse modo descobre que a vida tem sentido no socorrer o outro na sua dor, no compreender a angústia dos outros, no dar alívio aos outros. Esta pessoa sente que o outro é carne da sua carne, não tem medo de se aproximar até tocar na sua ferida, tem compaixão até sentir que as distâncias se anulam. Assim é possível colher a exortação de São Paulo: “Chorai com os que choram” (Rm 12,15). Saber chorar com os outros, isto é santidade” (Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, 76).
«“Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós”. Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes: “Recebei o Espírito Santo”» (Jo 20,21-22).
Caros irmãos, como comunidade presbiteral, somos chamados a anunciar e a profetizar o futuro, como a sentinela que anuncia a aurora que traz um novo dia (cf. Is 21,11): ou será algo de novo, ou será mais que o normal, muito mais e até pior. A Ressurreição não é apenas um acontecimento histórico do passado para recordar e celebrar; é mais, muito mais: é o anúncio da salvação de um tempo novo que ressoa e já irrompe hoje: «Já começa a brotar, não vedes?» (Is 43,19); é o ad-venire que o Senhor nos chama a construir. A fé permite-nos uma imaginação realista e criativa, capaz de abandonar a lógica da repetição, da substituição ou da conservação; convida-nos a instaurar um tempo sempre novo: o tempo do Senhor. Se uma presença invisível, silenciosa, expansiva e viral nos colocou em crise e nos baralhou, deixemos que esta outra Presença discreta, respeitosa e não invasiva nos chame de novo e nos ensine a não ter medo de enfrentar a realidade. Se uma presença não palpável foi capaz de desconcertar e inverter as prioridades e as agendas globais aparentemente imóveis que tanto sufocam e devastam as nossas comunidades e nossa irmã terra, não tenhamos medo de que seja a presença do Ressuscitado a traçar o nosso percurso, a abrir horizontes e a nos dar a coragem de viver este momento histórico e singular. Um punhado de homens receosos foi capaz de iniciar uma nova corrente, anúncio vivo de Deus connosco. Não temais! «A força do testemunho dos santos está em viver as Bem-aventuranças e a regra de comportamento do juízo final» (Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, 109).
Deixemo-nos surpreender mais uma vez pelo Ressuscitado. Que seja Ele, a partir do seu peito ferido, sinal de quão dura e injusta se torna a realidade, a estimular-nos a não voltarmos as costas à dura e difícil realidade dos nossos irmãos. Que seja Ele a ensinar-nos a acompanhar, curar e enfaixar as feridas do nosso povo, não com medo, mas com a audácia e a prodigalidade evangélica da multiplicação dos pães (cf. Mt 14,15-21); com a coragem, a preocupação e a responsabilidade do samaritano (cf. Lc 10,33-35); com a alegria e a festa do pastor pela sua ovelha reencontrada (cf. Lc 15,4-6); com o abraço reconciliador do pai que conhece o perdão (cf. Lc 15,20); com a piedade, a delicadeza e a ternura de Maria de Betânia (cf. Jo 12,1-3); com a mansidão, a paciência e a inteligência dos discípulos missionários do Senhor (cf. Mt 10,16-23). Que sejam as mãos feridas do Ressuscitado a consolar as nossas tristezas, a aumentar a nossa esperança e a estimular-nos a procurar o Reino de Deus para lá dos nossos abrigos habituais. Deixemo-nos surpreender também pelo nosso povo fiel e simples, muitas vezes provado e dilacerado, mas também visitado pela misericórdia do Senhor. Que este povo nos ensine a plasmar e temperar o nosso coração de pastores com a mansidão e a compaixão, com a humildade e a magnanimidade da resistência ativa, solidária, paciente e corajosa, que não fica indiferente, mas nega e desmascara todo o ceticismo e fatalismo. Quanto há para aprender com a força do Povo fiel de Deus, que encontra sempre o modo de socorrer e acompanhar quem caiu! A ressurreição é o anúncio de que as coisas podem mudar. Deixemos que seja a Páscoa, que não conhece fronteiras, a nos conduzir criativamente aos lugares onde combatem a esperança e a vida, onde o sofrimento e a dor se tornam um espaço propício à corrupção e à especulação, onde a agressividade e a violência parecem ser a única saída.
Como sacerdotes, filhos e membros de um povo sacerdotal, temos o dever de assumir a responsabilidade pelo futuro e de o projetar como irmãos. Coloquemos nas mãos feridas do Senhor, como oferta sagrada, a nossa fragilidade, a fragilidade de nosso povo, bem como a de toda a humanidade. O Senhor é Aquele que nos transforma, que se serve de nós como do pão, toma a nossa vida nas suas mãos, nos abençoa, nos parte e nos reparte e nos dá ao seu povo. E com humildade deixemo-nos ungir pelas palavras de Paulo, para que se espalhem como óleo perfumado nos diversos recantos da nossa cidade, despertando assim a esperança discreta que muitos – tacitamente – guardam nos seus corações: «Em tudo somos oprimidos, mas não esmagados; andamos perplexos, mas não desesperados; perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não aniquilados. Levamos sempre e em toda a parte no nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, para que se manifeste também no nosso corpo a vida de Jesus» (2 Cor 4 8-10). Participemos com Jesus na sua paixão, a nossa paixão, para viver também com Ele a força da ressurreição: certeza do amor de Deus capaz de mover as entranhas e de sair para as encruzilhadas dos caminhos para partilhar “a Boa Nova com os pobres, proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (cf. Lc 4,18-19), com a alegria de que todos possam participar ativamente com a sua dignidade de filhos do Deus vivo.
Quero partilhar convosco todas estas coisas, que pensei e senti durante este tempo de pandemia, para que nos ajudem no caminho do louvor ao Senhor e do serviço aos irmãos. Espero que sirvam para todos nós, para “amar e servir mais”.
Que o Senhor Jesus vos abençoe e a Virgem Santa vos proteja. E, por favor, peço-vos que não vos esqueçais de rezar por mim.
Fraternalmente,
Francisco
Roma, São João de Latrão, 31 de maio de 2020, Solenidade do Pentecostes
Carta do Santo Padre aos Sacerdotes da Diocese de Roma