Papa Leão XIV: Homilia aos cardeais
Começarei com uma palavra em inglês. O resto será em italiano.
Porém, desejo repetir as palavras do Salmo Responsorial: “Cantai ao Senhor um cântico novo, pelas maravilhas que Ele operou”.
E, na verdade, não só comigo, mas com todos nós. Caros irmãos Cardeais, enquanto celebramos nesta manhã, convido-vos a reconhecer as maravilhas que o Senhor fez, as bênçãos que o Senhor continua a derramar a todos nós através do Ministério de Pedro.
Vós chamastes-me a carregar esta cruz e a ser abençoado com esta missão, e eu sei que posso contar com todos e cada um de vós para caminhardes comigo, enquanto como Igreja, como comunidade de amigos de Jesus e como fiéis continuamos a anunciar a Boa Nova, a anunciar o Evangelho.
«Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo» (Mt 16, 16). Com estas palavras, Pedro, interrogado juntamente com os outros discípulos pelo Mestre, sobre a sua fé n’Ele, expressa em síntese o tesouro que a Igreja, através da sucessão apostólica, guarda, aprofunda e transmite há dois mil anos.
Jesus é o Messias, o Filho do Deus vivo, ou seja, o único Salvador, que revela o rosto do Pai.
N’Ele, para se tornar próximo e acessível aos homens, Deus revelou-se nos olhos confiantes de uma criança, na mente viva de um jovem, na fisionomia madura de um homem (cf. Conc. Vat. II, Const. Past. Gaudium et spes, 22), até aparecer aos seus, após a ressurreição, com o seu corpo glorioso. Mostrou-nos assim um modelo de humanidade santa que todos podemos imitar, juntamente com a promessa de um destino eterno, que ultrapassa todos os nossos limites e capacidades.
Na sua resposta, Pedro compreende ambas as coisas: o dom de Deus e o caminho a percorrer para se deixar transformar, dimensões inseparáveis da salvação, confiadas à Igreja para que as anuncie a bem da humanidade. Confiadas a nós, escolhidos por Ele antes de sermos formados no ventre materno (cf. Jr 1, 5), regenerados na água do Batismo e, apesar dos nossos limites e sem mérito nosso, conduzidos até aqui e daqui enviados, para que o Evangelho seja anunciado a toda a criatura (cf. Mc 16, 15).
E Deus, de modo particular, chamando-me através do vosso voto a suceder ao Primeiro dos Apóstolos, confia-me este tesouro para que, com a sua ajuda, eu seja seu fiel administrador (cf. 1 Cor 4, 2) em benefício de todo o Corpo místico da Igreja; para que ela seja cada vez mais cidade colocada sobre o monte (cf. Ap 21, 10), arca de salvação que navega sobre as ondas da história, farol que ilumina as noites do mundo. E isto não tanto pela magnificência das suas estruturas e pela grandiosidade dos seus edifícios – como estes monumentos em que nos encontramos – mas pela santidade dos seus membros, do povo que Deus adquiriu, a fim de proclamar as maravilhas daquele que o chamou das trevas para a sua luz admirável (cf. 1 Pe 2, 9).
No entanto, antes do diálogo em que Pedro faz a sua profissão de fé, há uma outra pergunta: «Quem dizem os homens», interpela Jesus «que é o Filho do Homem?» (Mt 16, 13). Não se trata de uma pergunta banal, diz antes respeito a um aspecto importante do nosso ministério: a realidade em que vivemos, com os seus limites e potencialidades, as suas interrogações e convicções.
«Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» (Mt 16, 13). Pensando nesta cena, refletindo sobre ela, poderíamos encontrar duas possíveis respostas a esta pergunta e traçar outras tantas atitudes.
Em primeiro lugar, há a resposta do mundo. Mateus sublinha que o diálogo entre Jesus e os seus sobre a identidade d’Ele tem lugar na belíssima cidade de Cesareia de Filipe, cheia de palácios luxuosos, inserida numa paisagem natural encantadora, no sopé do Hermon, mas também sede de círculos de poder cruéis e palco de traições e infidelidades. Esta imagem fala-nos de um mundo que considera Jesus uma pessoa totalmente desprovida de importância, quando muito uma personagem curiosa, capaz de suscitar admiração com a sua maneira invulgar de falar e agir. Por isso, quando a sua presença se tornará incómoda, devido aos pedidos de honestidade e às exigências morais que invoca, este “mundo” não hesitará em rejeitá-lo e eliminá-lo.
Depois, há uma outra possível resposta à pergunta de Jesus: a das pessoas comuns. Para elas, o Nazareno não é um “charlatão”: é um homem justo, corajoso, que fala bem e que diz coisas certas, como outros grandes profetas da história de Israel. Por isso, seguem-no, pelo menos enquanto podem fazê-lo sem demasiados riscos ou inconvenientes. Porém, porque essas pessoas o consideram apenas um homem, no momento do perigo, durante a Paixão, também elas o abandonam e vão embora, desiludidas.
Impressiona a atualidade destas duas atitudes. Com efeito, elas encarnam ideias que poderíamos facilmente reencontrar – talvez expressas com uma linguagem diferente, mas essencialmente idênticas – nos lábios de muitos homens e mulheres do nosso tempo.
Ainda hoje não faltam contextos em que a fé cristã é considerada uma coisa absurda, para pessoas fracas e pouco inteligentes; contextos em que em vez dela se preferem outras seguranças, como a tecnologia, o dinheiro, o sucesso, o poder e o prazer.
São ambientes onde não é fácil testemunhar nem anunciar o Evangelho, e onde quem acredita se vê ridicularizado, contrastado, desprezado, ou, quando muito, suportado e digno de pena. No entanto, precisamente por isso, são lugares onde a missão se torna urgente, porque a falta de fé, muitas vezes, traz consigo dramas como a perda do sentido da vida, o esquecimento da misericórdia, a violação – sob as mais dramáticas formas – da dignidade da pessoa, a crise da família e tantas outras feridas das quais a nossa sociedade sofre, e não pouco.
Ainda hoje, não faltam contextos nos quais Jesus, embora apreciado como homem, é simplesmente reduzido a uma espécie de líder carismático ou super-homem, e isto não apenas entre os não crentes, mas também entre muitos batizados, que acabam por viver, a este nível, num ateísmo prático.
Este é o mundo que nos está confiado e no qual, como tantas vezes nos ensinou o Papa Francisco, somos chamados a testemunhar a alegria da fé em Cristo Salvador. Por isso, também para nós, é essencial repetir: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo» (Mt 16, 16).
É essencial fazê-lo, primeiramente, na nossa relação pessoal com Ele, no empenho em percorrer um caminho quotidiano de conversão. Mas depois também, como Igreja, vivendo juntos a nossa pertença ao Senhor e levando a todos a sua Boa Nova (cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Lumen gentium, 1).
Digo isto, em primeiro lugar, para mim mesmo, como Sucessor de Pedro, ao iniciar esta minha missão de Bispo da Igreja que está em Roma, chamada a presidir na caridade à Igreja universal, segundo a célebre expressão de Santo Inácio de Antioquia (cf. Carta aos Romanos, Proémio). Ele, enquanto era conduzido como prisioneiro a esta cidade, lugar do seu iminente sacrifício, escrevia aos cristãos que aqui se encontravam: «Então serei verdadeiro discípulo de Jesus, quando o meu corpo for subtraído à vista do mundo» (Carta aos Romanos, IV, 1). Referia-se ao ser devorado pelas feras no circo – como aconteceu –; porém, as suas palavras recordam, num sentido mais amplo, um compromisso irrenunciável para quem, na Igreja, exerce um ministério de autoridade: desaparecer para que Cristo permaneça, fazer-se pequeno para que Ele seja conhecido e glorificado (cf. Jo 3, 30), gastar-se até ao limite para que a ninguém falte a oportunidade de O conhecer e amar.
Que Deus me dê esta graça, hoje e sempre, com a ajuda da terna intercessão de Maria, Mãe da Igreja.
Papa Leão XIV,
Homilia aos Cardeais, na sua primeira Eucaristia (09-05-2025), na Capela Sistina)
Quaresma, o tempo dos três P
O excerto evangélico de Quarta-feira de Cinzas (Mateus 6, 1-6 e 16-18) é como o diapasão que dá a nota musical para que a Quaresma tenha ressonância na nossa existência concreta. O evangelista coloca diante dos nossos olhos, em sequência, os ensinamentos de Jesus sobre os três pilares da piedade judaica: a esmola (o Pão a dar ao pobre), a oração (a Palavra de Deus a observar) e o jejum (a Penitência a viver). Os três ensinamentos estão claramente dispostos em paralelo, apresentando a mesma construção literária: o exemplo de um comportamento a evitar que se revela autorreferencial; a enunciação do verdadeiro sentido da obra de piedade; a certeza na recompensa da parte do Pai.
O versículo 1 constitui uma espécie de chapéu introdutório relativamente às três obras de justiça. Jesus adverte para a exibição exterior na sua execução. Podemos interrogar-nos em que relação se coloca aquela recomendação com uma outra frase do discurso da montanha: «Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e deem graças ao vosso Pai que está nos Céus» (5, 16). As obras, então, devem permanecer ocultas ou devem ser conhecidas. A relação entre 6,1 e 5,16 não é, efetivamente, simples de articular, quanto à materialidade da ação. Certamente, entre os dois passos há uma diferença de perspetiva: em 5, 13-16 Jesus evidenciava as consequências positivas do comportamento segundo as bem-aventuranças, quando se torna um estilo de vida comunitário; em 6, 1-18, por seu lado, a atenção é colocada sobre a interioridade, isto é, sobre a intencionalidade com que cada crente realiza as obras de justiça. Por isso, para Jesus a boa obra não deve ser realizada para segundas intenções, estranhas ao bem que a própria obra traz consigo.
A polémica de Jesus é deliberadamente irónica: não está atestada, em algum texto antigo, o uso de tocar a trompa no momento de dar a esmola. A imagem, deliberadamente exagerada, é funcional para colocar em evidência a intenção do coração. Tornar público um ato de caridade demonstra que o coração não se saciou com o ato em si, que por isso se revela instrumentalizado para obter uma gratificação posterior, que resulta ser o verdadeiro propósito da boa obra realizada. Se o ato de caridade não é o objetivo, deixa de ser sincero, pelo que aquele que o está a realizar está a fazer um papel. A isso alude o termo “hypokrités”, de que deriva o nosso “hipócrita”, mas que na origem indicava o ator de teatro. À hipérbole da trompa corresponde a imagem das duas mãos: a esmola dever ser de tal maneira reservada, que nem a mão esquerda deve saber que a mão direita a realizou.
O segundo quadro concentra-se na atitude interior no momento da oração. Como dito antes, em relação à evidenciação com que se realiza a obra, Jesus não renega a oração comunitária, que, de resto, está implicitamente contida no texto do Pai-nosso, em que as petições se expressam no plural. Aqui, todavia, com uma outra imagem deliberadamente exagerada, preocupa-se em mostrar os riscos da ausência de cuidado da própria interioridade. Especificamente, uma oração apenas exterior coloca em risco a relação com o Pai. Jesus mostra, constantemente, com as palavras e com o exemplo, a exigência de uma relação pessoal e estreita com Deus; isto é possível quanto mais sincero e contínuo é o diálogo com Ele. A oração solitária, portanto, não está em oposição com a oração pública e comunitária; antes, torna-se o meio para manter vivo o diálogo com Deus e exprimir, com toda a liberdade, aquilo que se move no próprio coração.
No Antigo Testamento o jejum assume diversos significados: penitência pelos pecados, dor por um luto, esconjuro contra uma desgraça, preparação para receber um dom particular de Deus. A crítica de Jesus também aqui está contida numa hipérbole: como os atores se maquilham de usam máscaras para a sua interpretação, assim também os hipócritas não só mostram os sinais do jejum mas acentuam-nos, chegando a desfigurar-se o a cobrir o rosto, de maneira a fazerem-se notar ainda mais. Jesus convida a assumir a atitude exatamente contrária, mantendo os hábitos comuns, de maneira que só Deus conheça o jejum que se está a praticar. Em toda a perícope, Deus é sempre definido como Pai; isto está certamente em conexão com a presença do Pai-nosso nesta secção do discurso da montanha. O propósito das três obras de justiça, apartadas daquilo que poderia constituir aparência e vanglória, resulta ser a conservação da relação com Deus; uma relação não genérica, funcional ou servil, mas caracterizada pela experiência da paternidade.
Os três “P”, expressões de fé que a Igreja recomenda, designam o campo das relações que nos fazem viver. O Pão a dar em esmola abraça todas as nossas relações com os outros, consideradas como dom de si, sob o timbre da solidariedade. A Penitência, expressa com o jejum, diz respeito às nossas relações com a natureza, de quem recebemos os bens para a nossa subsistência, mas também a relação com o nosso corpo. A Palavra de Deus a escutar em oração reenvia para a nossa relação com Ele, que se vive através das duas anteriores. O que acontece quando tudo aquilo que constitui a nossa existência é realizado «para se ser feito admirar», «para se ser considerado justo» sob todos os aspetos? A relação vai inexoravelmente rumo ao fracasso. Deixamos de estar ligados / unidos ao outro, porque o ato que partia de nós para os outros / o Outro regressa a nós. O círculo fecha-se e não saímos de nós mesmos. A “salvação”, porém, inclusive do ponto de vista simplesmente humano, só pode ser um êxodo do círculo da morte (o pó que retorna ao pó). A solução que nos é proposta é o regresso à fonte da nossa vida, que nós chamamos Deus, e este regresso acontece através de todas as nossas relações, quando são autênticas.
Simone Caleffi, In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins, 08.10.2023, snpcultura.org
D. Rui Valério: Brasão episcopal do Patriarca de Lisboa
Descrição Heráldica
Escudo azul-celeste dividido em três campos por cruz em prata. No campo superior, a pomba em prata; no campo à esquerda, uma vieira sobre três linhas onduladas, tudo em ouro; no campo à direita, estrela de sete raios de ouro.
O escudo assente sobre cruz arquiepiscopal (patriarcal) de ouro com pedraria de vermelho, encimada por chapéu de 15+15 borlas, como é uso dos Patriarcas da Igreja Latina, tudo de púrpura como é próprio do Patriarca de Lisboa.
Sotoposto ao escudo, listel dourado que ostenta o lema a vermelho, em maiúsculas, “IN MANIBUS TUIS”.
Interpretação
O azul-celeste inunda o espaço do escudo. É a cor dos Céus que a tradição cristã identifica com o Sagrado, com Deus, a origem absoluta de tudo quanto existe. É para o Céu que o crente é convidado a dirigir a sua atenção. É nele que habita a sua Pátria definitiva. Peregrinamos no tempo à procura da eternidade. Não foi para a escassez dos instantes que fomos criados, mas para essa morada definitiva e intemporal que a cada momento nos interpela a deixarmos tudo por seu amor.
A cruz da sabedoria. Y: O brasão está centrado na primeira letra de YIÓS, Filho. Evoca Cristo, o Filho amado do Pai que, na cruz, de braços abertos e estendidos, se oferece pela salvação do mundo. Afirmação cristocêntrica, pois tudo se realiza a partir d’Ele e converge para Ele que, no Sacrifício de amor, nos revela a Verdadeira Sabedoria. A cruz da sabedoria que divide o campo do escudo, é memória de Cristo crucificado, “escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas, para os que são chamados, é poder e sabedoria de Deus. Porque, o que é tido como loucura de Deus é mais sábio que os homens e o que é tido como fraqueza de Deus é mais forte que os homens” (1 Cor 1, 23-25).
Rasga-se o Céu e o Espírito desce sobre Jesus, em forma de pomba (Lc 3, 21-22). É o dom inaudito que o Pai comunica ao Filho para que este o reserve sobre todos os que abraçarem a boa notícia segundo a qual Deus nos ama sem reservas nem limites. É no Espírito que a vida íntima de Deus se derrama sobre a humanidade. Através do Espírito, Deus consagra o seu eleito para a missão de “anunciar a Boa-Nova aos pobres”, “proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista”, “libertar os oprimidos” e “proclamara um ano favorável da parte do Senhor” (Lc 4, 18-19).
No batismo – que a vieira e as linhas onduladas das águas simbolizam – o crente é ungido no Espírito e enxertado em Cristo. Uma nova vida se configura no coração do homem novo. As águas primordiais são o princípio da vida, a renovação do ser e a recuperação de tudo o que parecia perdido. Mas este dom deve ser recursivamente trazido à consciência e nela assumido. Assim, ao longo da vida, entre tribulações e caminhos inesperados, torna-se necessário renovar essa promessa originária que um tempo fora efetuada no baptismo, como Luís Maria Grignion de Monfort propôs, no carisma que doou à Igreja. Ainda, segundo uma interpretação fundada em Santo Agostinho, a vieira evoca a profundidade do mistério de Deus no qual o baptismo, pelo dom do Espírito Santo, nos faz mergulhar.
As águas onde a vida baloiça recordam também o tempo que servi na Armada e nela entendi quão valiosa é a camaradagem e o bem comum.
Mas a história pessoal tem as suas particularidades. Nascido na Diocese de Leiria-Fátima, foi à luz e Maria, a Mãe de Jesus e a Senhora de Fátima, a Senhora mais brilhante que o sol, que amadureci para a vida cristã. E por um acaso providencial, encontrei a congregação dos padres monfortinos, onde cresci humana e espiritualmente, nessa devoção a Maria que é caminho para Deus. Foi à sombra do olhar atento e materno de Nossa Senhora de Fátima que vi medrar em mim a vocação sacerdotal e o desejo de entrega aos humildes e aos pobres (Lc 1, 52-53), bem como às crianças a quem Maria se fez presente nesse desconhecido fim do mundo que era, então, a Cova da Iria. Foi aí também que incessantemente a Senhora de Fátima se não cansou de repropor o apelo à oração e à conversão, no espírito originário da Boa Nova: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-nos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15).
“O meu destino está nas tuas mãos” (Sl 31, 16), canta o salmista no meio das provações da vida. Não há maior felicidade do que abandonar-se inteiramente nas mãos de Deus, nas mãos d’Aquele que nunca nos falta, ainda que se desmoronem todas as certezas e vacile a confiança entre os homens. Só Deus basta.
Segundo a interpretação de Santo Ireneu, as mãos de Deus são o Seu Filho, Jesus Cristo, e o Espírito Santo, nos quais nos é dado viver.
E conquanto Cristo haja sentido o mais atroz de todos os sofrimentos (Mc 15, 34), foi nas mãos do Pai que ele entregou confiadamente o seu espírito (Lc 23, 46). Vivo, por isso, no desejo ardente de permanecer, sossegado e tranquilo, nas mãos de Deus, como criança saciada ao colo de sua mãe (Sl 131, 2).
D. Rui Valério, novo Patriarca de Lisboa
Saudação de D. Rui Valério na celebração de tomada de posse
1. A presença na casa do Senhor, encoraja-me a fazer minhas as palavras da Virgem Maria: «a minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 46-47) - sinto júbilo por experimentar tão intimamente a força do amor de Deus, que verdadeiramente elege e recria continuamente nas sendas da história, e que, tomando em suas mãos a fragilidade do barro de cada um, lhe confere a sua Beleza, a sua Bondade, a sua Verdade e o seu Amor. Ilumina-me de esperança o processo da salvação integral que, em Cristo, quer oferecer, e que nunca cessa de repropor ao mundo e à humanidade, através de um estilo que Santo Agostinho imortalizou nas palavras “Sem ti, nada faz Aquele que, mesmo sem ti te criou”.
Reconheço, com gratidão, a profundidade profética impressa no gesto e na circunstância de tomar posse como Patriarca de Lisboa, precisamente na casa do Senhor, uma força e mensagem simbólica, sim, mas também cheia de pathos e compromisso: sempre tudo terá início a partir d’Ele, de Cristo, e é n’Ele que começará cada passo a fazer. Como entoa S. João no Prólogo do seu evangelho “Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência.” Porque só “Nele é que está a Vida, E a Vida é a Luz dos homens.” (Jo 1, 3-4) Eis a pauta que conduzirá cada dia da nossa vida.
2. Saúdo Vossa Eminência senhor D. Manuel Clemente e, na Sua pessoa, a minha reverência pelo caminho histórico, espiritual e pastoral do Patriarcado, que Vossa Eminência enalteceu e engrandeceu. Agradeço a dádiva da Sua amizade e o marco evangelizador que imprimiu na diocese e que, como Pastor e líder, soube contagiar a todo o povo de Deus, nomeadamente na construção de pontes entre o evangelho e a integralidade da vida.
Saúdo o Senhor Núncio Apostólico e agradeço toda a sua dedicação e espírito de missão, reveladoras de um grande amor à Igreja de Lisboa. Na pessoa de V.ª Excelência a minha total fidelidade, disponibilidade e comunhão a Sua Santidade, o Papa Francisco.
Saúdo os Reverendíssimos Senhores Bispos, D. Joaquim Mendes e D. Américo Aguiar; para além do nível do acolhimento com que me receberam, só oferecido a um irmão, agradeço o testemunho de dedicação, entrega e competência com que servem a Igreja. O nível organizativo e de conteúdos das Jornada Mundial da Juventude é apenas uma expressão do nível e da grandeza do vosso ministério.
Saúdo o Ilustríssimo Cabido e todo o Presbitério de Lisboa. A nossa presença nesta Igreja Mãe de Lisboa, onde nos encontramos a tomar posse das funções de Pastor, exprime bem como é perante vós, e convosco, e no meio de vós que nos posicionamos. Gostaria de expressar aqui o meu agradecimento, certo em nome pessoal, mas também em nome da comunidade cristã, pela seriedade que colocais no desempenho do vosso múnus presbiteral, mas sobretudo porque sois cultores de vida espiritual, que é já uma marca do perfil sacerdotal de Lisboa.
Caríssimos, o presbitério é a fonte que estrutura o presbítero e a sua essência é a comunhão. O Concílio Vaticano II, contrariamente ao que teria sido a sua genuína intenção, quando reafirma a centralidade da koinonia, não deseja apenas conferir-lhe um caráter institucional. Como observava um dos comentadores mais autorizados dos seus documentos, monsenhor Gérard Philips, a comunhão está referida, também, à dimensão antropológica e pessoal de cada membro do Povo de Deus. Significa que, ao bom estilo evangélico, quando Jesus envolve na força do amor todas as dimensões do ser humano - porque se «ama a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente” (Mt 22, 37) -, assim nós realizaremos a comunhão como irmãos, vivendo-a com todo o nosso ser e em todos os níveis da nossa realidade.
Saúdo os digníssimos Diáconos Permanentes, manifestando-vos não só o meu sentido reconhecimento pelo serviço que, tão devotadamente, ofereceis à Igreja e ao Povo de Deus, congratulo-me também convosco porque, a servir, constituis uma força de esperança para a humanidade.
Saúdo as consagradas e os consagrados; obrigado pela vossa devotada vida de oração e pela vida de serviço apostólico com que cimentais as estruturas da edificação do Reino de Deus. Tendes o privilégio de viver do essencial da vida e de serdes, dessa essencialidade, profetas e testemunhas. Ao mundo, tantas vezes desorientado, reproponde, com alegria, a grandeza amorosa da castidade, a radicalidade da pobreza, a liberdade da obediência.
Saúdo o santo Povo de Deus, os seminaristas, os leigos, os jovens, todas as mulheres e homens de boa vontade. Obrigado pelo vosso testemunho de santidade e de amor a Cristo e à Igreja. Vós fostes constituídos os principais depositários da palavra que o Espírito Santo dirigiu à Igreja de Lisboa, no decorrer das JMJ. Estais convocados para a expressar. E nós, prontos para a receber.
Saúdo todas as vítimas de todos os tipos de abuso. Não repito palavras já esmorecidas pelo uso, mas dou-vos, e darei sempre, a minha solidariedade, a minha presença e constante proximidade. Convosco carregarei o fardo do vosso sofrimento, acreditando na cura e redenção.
3. Por fim, uma referência ao tempo em que nos situamos: é dia de sábado e memória litúrgica de Santa Maria. Providencialmente, evoca o silêncio do sábado santo, mas que a companhia da Virgem Santíssima nos abra à dimensão eclesial e ao seu envio para a missão.
Evoco, nesta hora solene, a obra de Deus na Igreja de Lisboa, ao longo da história. Verdadeiro sinal dos tempos e do estímulo a caminhar no amor, na esperança e na fé incondicional em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo; mas, com particular incidência, as bênçãos que o mesmo Senhor a quem pertence o ontem, o hoje e a eternidade, derramou no passado recente: o caminho sinodal, a realização da Jornada Mundial da Juventude e as muitas vidas de santidade de sacerdotes, de consagrados e de leigos. Tudo tem contribuído para um compromisso de evangelização e para um caminho de sinodalidade.
Em segundo lugar, as vicissitudes eclesiais, sociais e culturais das últimas décadas têm sido, para a nossa Igreja, de facto, despertadores para a missão evangelizadora. Não seria difícil descrever as etapas e analisar as causas deste novo paradigma pastoral; mas, limitar-me-ei a considerá-lo como um dado de facto e acrescentar o meu testemunho. Antes de mais, a nossa sociedade está em constante mutação, sendo que este caráter mutável constitui o âmago de todas as vertentes antropológicas, ou seja, diz respeito a todos e à integralidade do ser humano. Assim, não são apenas as escolhas profissionais que vão mudando ao ritmo da oferta de emprego, nem a voragem com que hoje se embarca na pluralidade de experiências e na diversidade de possibilidades, para depois se tomar uma decisão... Também a dimensão da espiritualidade como que adquiriu um “ritmo” diferente. É assim um misto de espiritualidade buffet e self service, em que se tende a dispensar os “intermediários” e se colhem das várias propostas fragmentos de conveniência. O que constitui, para nós, um real desafio. Mais uma vez, a cena a que São Paulo alude nos Atos dos Apóstolos, no discurso tido no Areópago de Atenas sobre as muitas divindades que flutuavam nas ruas da cidade, inclusive o deus desconhecido, é atual também hoje.
Tal como sempre, também hoje, à Igreja, incumbe a grave responsabilidade de indicar o verdadeiro alimento, a verdadeira água, e oferecê-lo. É essa a sua missão urgente.
Como já anotava o teólogo Yves Congar, acerca da pertinência da missão evangelizadora, conservando uma desarmante atualidade, e cito: “o nosso mundo já não está naquela espécie de harmonia e homogeneidade com a cultura católica, com os seus símbolos, com as formas de expressão católicas. Simplesmente é profano, secular, laico; é científico e técnico; mas também, cada vez mais, utilitário, hiper sensual, violento, afrodisíaco. Em larga medida é ateu, não porque esteja demonstrada a inexistência de Deus, mas porque se constrói cada vez mais fora da perspetiva de Deus e do seu culto. E rematava: hoje, exigem-se gestos verdadeiros, uma palavra simples e verdadeira, sinais fortes e compreensíveis. Quer-se que a liturgia seja de Alguém, que seja expressão da sua alma e, por isso, que envolva e diga respeito à vida.”
Queremos ser Igreja Missionária que, ao estilo de Maria, se levanta apressadamente para a montanha do mundo e da humanidade.
Sé Patriarcal de Lisboa, 2 de setembro de 2023
+ Rui Valério, Patriarca de Lisboa