PARÓQUIA S. MIGUEL DE QUEIJAS

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Quaresma, o tempo dos três P

Quaresma2024O excerto evangélico de Quarta-feira de Cinzas (Mateus 6, 1-6 e 16-18) é como o diapasão que dá a nota musical para que a Quaresma tenha ressonância na nossa existência concreta. O evangelista coloca diante dos nossos olhos, em sequência, os ensinamentos de Jesus sobre os três pilares da piedade judaica: a esmola (o Pão a dar ao pobre), a oração (a Palavra de Deus a observar) e o jejum (a Penitência a viver). Os três ensinamentos estão claramente dispostos em paralelo, apresentando a mesma construção literária: o exemplo de um comportamento a evitar que se revela autorreferencial; a enunciação do verdadeiro sentido da obra de piedade; a certeza na recompensa da parte do Pai.

O versículo 1 constitui uma espécie de chapéu introdutório relativamente às três obras de justiça. Jesus adverte para a exibição exterior na sua execução. Podemos interrogar-nos em que relação se coloca aquela recomendação com uma outra frase do discurso da montanha: «Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e deem graças ao vosso Pai que está nos Céus» (5, 16). As obras, então, devem permanecer ocultas ou devem ser conhecidas. A relação entre 6,1 e 5,16 não é, efetivamente, simples de articular, quanto à materialidade da ação. Certamente, entre os dois passos há uma diferença de perspetiva: em 5, 13-16 Jesus evidenciava as consequências positivas do comportamento segundo as bem-aventuranças, quando se torna um estilo de vida comunitário; em 6, 1-18, por seu lado, a atenção é colocada sobre a interioridade, isto é, sobre a intencionalidade com que cada crente realiza as obras de justiça. Por isso, para Jesus a boa obra não deve ser realizada para segundas intenções, estranhas ao bem que a própria obra traz consigo.

A polémica de Jesus é deliberadamente irónica: não está atestada, em algum texto antigo, o uso de tocar a trompa no momento de dar a esmola. A imagem, deliberadamente exagerada, é funcional para colocar em evidência a intenção do coração. Tornar público um ato de caridade demonstra que o coração não se saciou com o ato em si, que por isso se revela instrumentalizado para obter uma gratificação posterior, que resulta ser o verdadeiro propósito da boa obra realizada. Se o ato de caridade não é o objetivo, deixa de ser sincero, pelo que aquele que o está a realizar está a fazer um papel. A isso alude o termo “hypokrités”, de que deriva o nosso “hipócrita”, mas que na origem indicava o ator de teatro. À hipérbole da trompa corresponde a imagem das duas mãos: a esmola dever ser de tal maneira reservada, que nem a mão esquerda deve saber que a mão direita a realizou.

O segundo quadro concentra-se na atitude interior no momento da oração. Como dito antes, em relação à evidenciação com que se realiza a obra, Jesus não renega a oração comunitária, que, de resto, está implicitamente contida no texto do Pai-nosso, em que as petições se expressam no plural. Aqui, todavia, com uma outra imagem deliberadamente exagerada, preocupa-se em mostrar os riscos da ausência de cuidado da própria interioridade. Especificamente, uma oração apenas exterior coloca em risco a relação com o Pai. Jesus mostra, constantemente, com as palavras e com o exemplo, a exigência de uma relação pessoal e estreita com Deus; isto é possível quanto mais sincero e contínuo é o diálogo com Ele. A oração solitária, portanto, não está em oposição com a oração pública e comunitária; antes, torna-se o meio para manter vivo o diálogo com Deus e exprimir, com toda a liberdade, aquilo que se move no próprio coração.

No Antigo Testamento o jejum assume diversos significados: penitência pelos pecados, dor por um luto, esconjuro contra uma desgraça, preparação para receber um dom particular de Deus. A crítica de Jesus também aqui está contida numa hipérbole: como os atores se maquilham de usam máscaras para a sua interpretação, assim também os hipócritas não só mostram os sinais do jejum mas acentuam-nos, chegando a desfigurar-se o a cobrir o rosto, de maneira a fazerem-se notar ainda mais. Jesus convida a assumir a atitude exatamente contrária, mantendo os hábitos comuns, de maneira que só Deus conheça o jejum que se está a praticar. Em toda a perícope, Deus é sempre definido como Pai; isto está certamente em conexão com a presença do Pai-nosso nesta secção do discurso da montanha. O propósito das três obras de justiça, apartadas daquilo que poderia constituir aparência e vanglória, resulta ser a conservação da relação com Deus; uma relação não genérica, funcional ou servil, mas caracterizada pela experiência da paternidade.

Os três “P”, expressões de fé que a Igreja recomenda, designam o campo das relações que nos fazem viver. O Pão a dar em esmola abraça todas as nossas relações com os outros, consideradas como dom de si, sob o timbre da solidariedade. A Penitência, expressa com o jejum, diz respeito às nossas relações com a natureza, de quem recebemos os bens para a nossa subsistência, mas também a relação com o nosso corpo. A Palavra de Deus a escutar em oração reenvia para a nossa relação com Ele, que se vive através das duas anteriores. O que acontece quando tudo aquilo que constitui a nossa existência é realizado «para se ser feito admirar», «para se ser considerado justo» sob todos os aspetos? A relação vai inexoravelmente rumo ao fracasso. Deixamos de estar ligados / unidos ao outro, porque o ato que partia de nós para os outros / o Outro regressa a nós. O círculo fecha-se e não saímos de nós mesmos. A “salvação”, porém, inclusive do ponto de vista simplesmente humano, só pode ser um êxodo do círculo da morte (o pó que retorna ao pó). A solução que nos é proposta é o regresso à fonte da nossa vida, que nós chamamos Deus, e este regresso acontece através de todas as nossas relações, quando são autênticas.

Simone Caleffi, In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins, 08.10.2023, snpcultura.org

D. Rui Valério: Brasão episcopal do Patriarca de Lisboa

Rui Valerio armasDescrição Heráldica

Escudo azul-celeste dividido em três campos por cruz em prata. No campo superior, a pomba em prata; no campo à esquerda, uma vieira sobre três linhas onduladas, tudo em ouro; no campo à direita, estrela de sete raios de ouro.
O escudo assente sobre cruz arquiepiscopal (patriarcal) de ouro com pedraria de vermelho, encimada por chapéu de 15+15 borlas, como é uso dos Patriarcas da Igreja Latina, tudo de púrpura como é próprio do Patriarca de Lisboa.
Sotoposto ao escudo, listel dourado que ostenta o lema a vermelho, em maiúsculas, “IN MANIBUS TUIS”.

Interpretação
O azul-celeste inunda o espaço do escudo. É a cor dos Céus que a tradição cristã identifica com o Sagrado, com Deus, a origem absoluta de tudo quanto existe. É para o Céu que o crente é convidado a dirigir a sua atenção. É nele que habita a sua Pátria definitiva. Peregrinamos no tempo à procura da eternidade. Não foi para a escassez dos instantes que fomos criados, mas para essa morada definitiva e intemporal que a cada momento nos interpela a deixarmos tudo por seu amor.

A cruz da sabedoria. Y: O brasão está centrado na primeira letra de YIÓS, Filho. Evoca Cristo, o Filho amado do Pai que, na cruz, de braços abertos e estendidos, se oferece pela salvação do mundo. Afirmação cristocêntrica, pois tudo se realiza a partir d’Ele e converge para Ele que, no Sacrifício de amor, nos revela a Verdadeira Sabedoria. A cruz da sabedoria que divide o campo do escudo, é memória de Cristo crucificado, “escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas, para os que são chamados, é poder e sabedoria de Deus. Porque, o que é tido como loucura de Deus é mais sábio que os homens e o que é tido como fraqueza de Deus é mais forte que os homens” (1 Cor 1, 23-25).

Rasga-se o Céu e o Espírito desce sobre Jesus, em forma de pomba (Lc 3, 21-22). É o dom inaudito que o Pai comunica ao Filho para que este o reserve sobre todos os que abraçarem a boa notícia segundo a qual Deus nos ama sem reservas nem limites. É no Espírito que a vida íntima de Deus se derrama sobre a humanidade. Através do Espírito, Deus consagra o seu eleito para a missão de “anunciar a Boa-Nova aos pobres”, “proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista”, “libertar os oprimidos” e “proclamara um ano favorável da parte do Senhor” (Lc 4, 18-19).

No batismo – que a vieira e as linhas onduladas das águas simbolizam – o crente é ungido no Espírito e enxertado em Cristo. Uma nova vida se configura no coração do homem novo. As águas primordiais são o princípio da vida, a renovação do ser e a recuperação de tudo o que parecia perdido. Mas este dom deve ser recursivamente trazido à consciência e nela assumido. Assim, ao longo da vida, entre tribulações e caminhos inesperados, torna-se necessário renovar essa promessa originária que um tempo fora efetuada no baptismo, como Luís Maria Grignion de Monfort propôs, no carisma que doou à Igreja. Ainda, segundo uma interpretação fundada em Santo Agostinho, a vieira evoca a profundidade do mistério de Deus no qual o baptismo, pelo dom do Espírito Santo, nos faz mergulhar.

As águas onde a vida baloiça recordam também o tempo que servi na Armada e nela entendi quão valiosa é a camaradagem e o bem comum.

Mas a história pessoal tem as suas particularidades. Nascido na Diocese de Leiria-Fátima, foi à luz e Maria, a Mãe de Jesus e a Senhora de Fátima, a Senhora mais brilhante que o sol, que amadureci para a vida cristã. E por um acaso providencial, encontrei a congregação dos padres monfortinos, onde cresci humana e espiritualmente, nessa devoção a Maria que é caminho para Deus. Foi à sombra do olhar atento e materno de Nossa Senhora de Fátima que vi medrar em mim a vocação sacerdotal e o desejo de entrega aos humildes e aos pobres (Lc 1, 52-53), bem como às crianças a quem Maria se fez presente nesse desconhecido fim do mundo que era, então, a Cova da Iria. Foi aí também que incessantemente a Senhora de Fátima se não cansou de repropor o apelo à oração e à conversão, no espírito originário da Boa Nova: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-nos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15).

“O meu destino está nas tuas mãos” (Sl 31, 16), canta o salmista no meio das provações da vida. Não há maior felicidade do que abandonar-se inteiramente nas mãos de Deus, nas mãos d’Aquele que nunca nos falta, ainda que se desmoronem todas as certezas e vacile a confiança entre os homens. Só Deus basta.

Segundo a interpretação de Santo Ireneu, as mãos de Deus são o Seu Filho, Jesus Cristo, e o Espírito Santo, nos quais nos é dado viver.

E conquanto Cristo haja sentido o mais atroz de todos os sofrimentos (Mc 15, 34), foi nas mãos do Pai que ele entregou confiadamente o seu espírito (Lc 23, 46). Vivo, por isso, no desejo ardente de permanecer, sossegado e tranquilo, nas mãos de Deus, como criança saciada ao colo de sua mãe (Sl 131, 2).

D. Rui Valério, novo Patriarca de Lisboa

RuiValerio

Saudação de D. Rui Valério na celebração de tomada de posse

1. A presença na casa do Senhor, encoraja-me a fazer minhas as palavras da Virgem Maria: «a minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 46-47) - sinto júbilo por experimentar tão intimamente a força do amor de Deus, que verdadeiramente elege e recria continuamente nas sendas da história, e que, tomando em suas mãos a fragilidade do barro de cada um, lhe confere a sua Beleza, a sua Bondade, a sua Verdade e o seu Amor. Ilumina-me de esperança o processo da salvação integral que, em Cristo, quer oferecer, e que nunca cessa de repropor ao mundo e à humanidade, através de um estilo que Santo Agostinho imortalizou nas palavras “Sem ti, nada faz Aquele que, mesmo sem ti te criou”.

Reconheço, com gratidão, a profundidade profética impressa no gesto e na circunstância de tomar posse como Patriarca de Lisboa, precisamente na casa do Senhor, uma força e mensagem simbólica, sim, mas também cheia de pathos e compromisso: sempre tudo terá início a partir d’Ele, de Cristo, e é n’Ele que começará cada passo a fazer. Como entoa S. João no Prólogo do seu evangelho “Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência.” Porque só “Nele é que está a Vida, E a Vida é a Luz dos homens.” (Jo 1, 3-4) Eis a pauta que conduzirá cada dia da nossa vida.

2. Saúdo Vossa Eminência senhor D. Manuel Clemente e, na Sua pessoa, a minha reverência pelo caminho histórico, espiritual e pastoral do Patriarcado, que Vossa Eminência enalteceu e engrandeceu. Agradeço a dádiva da Sua amizade e o marco evangelizador que imprimiu na diocese e que, como Pastor e líder, soube contagiar a todo o povo de Deus, nomeadamente na construção de pontes entre o evangelho e a integralidade da vida.

Saúdo o Senhor Núncio Apostólico e agradeço toda a sua dedicação e espírito de missão, reveladoras de um grande amor à Igreja de Lisboa. Na pessoa de V.ª Excelência a minha total fidelidade, disponibilidade e comunhão a Sua Santidade, o Papa Francisco.

Saúdo os Reverendíssimos Senhores Bispos, D. Joaquim Mendes e D. Américo Aguiar; para além do nível do acolhimento com que me receberam, só oferecido a um irmão, agradeço o testemunho de dedicação, entrega e competência com que servem a Igreja. O nível organizativo e de conteúdos das Jornada Mundial da Juventude é apenas uma expressão do nível e da grandeza do vosso ministério.

Saúdo o Ilustríssimo Cabido e todo o Presbitério de Lisboa. A nossa presença nesta Igreja Mãe de Lisboa, onde nos encontramos a tomar posse das funções de Pastor, exprime bem como é perante vós, e convosco, e no meio de vós que nos posicionamos. Gostaria de expressar aqui o meu agradecimento, certo em nome pessoal, mas também em nome da comunidade cristã, pela seriedade que colocais no desempenho do vosso múnus presbiteral, mas sobretudo porque sois cultores de vida espiritual, que é já uma marca do perfil sacerdotal de Lisboa.

Caríssimos, o presbitério é a fonte que estrutura o presbítero e a sua essência é a comunhão. O Concílio Vaticano II, contrariamente ao que teria sido a sua genuína intenção, quando reafirma a centralidade da koinonia, não deseja apenas conferir-lhe um caráter institucional. Como observava um dos comentadores mais autorizados dos seus documentos, monsenhor Gérard Philips, a comunhão está referida, também, à dimensão antropológica e pessoal de cada membro do Povo de Deus. Significa que, ao bom estilo evangélico, quando Jesus envolve na força do amor todas as dimensões do ser humano - porque se «ama a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente” (Mt 22, 37) -, assim nós realizaremos a comunhão como irmãos, vivendo-a com todo o nosso ser e em todos os níveis da nossa realidade.

Saúdo os digníssimos Diáconos Permanentes, manifestando-vos não só o meu sentido reconhecimento pelo serviço que, tão devotadamente, ofereceis à Igreja e ao Povo de Deus, congratulo-me também convosco porque, a servir, constituis uma força de esperança para a humanidade.

Saúdo as consagradas e os consagrados; obrigado pela vossa devotada vida de oração e pela vida de serviço apostólico com que cimentais as estruturas da edificação do Reino de Deus. Tendes o privilégio de viver do essencial da vida e de serdes, dessa essencialidade, profetas e testemunhas. Ao mundo, tantas vezes desorientado, reproponde, com alegria, a grandeza amorosa da castidade, a radicalidade da pobreza, a liberdade da obediência.

Saúdo o santo Povo de Deus, os seminaristas, os leigos, os jovens, todas as mulheres e homens de boa vontade. Obrigado pelo vosso testemunho de santidade e de amor a Cristo e à Igreja. Vós fostes constituídos os principais depositários da palavra que o Espírito Santo dirigiu à Igreja de Lisboa, no decorrer das JMJ. Estais convocados para a expressar. E nós, prontos para a receber.

Saúdo todas as vítimas de todos os tipos de abuso. Não repito palavras já esmorecidas pelo uso, mas dou-vos, e darei sempre, a minha solidariedade, a minha presença e constante proximidade. Convosco carregarei o fardo do vosso sofrimento, acreditando na cura e redenção.

3. Por fim, uma referência ao tempo em que nos situamos: é dia de sábado e memória litúrgica de Santa Maria. Providencialmente, evoca o silêncio do sábado santo, mas que a companhia da Virgem Santíssima nos abra à dimensão eclesial e ao seu envio para a missão.

Evoco, nesta hora solene, a obra de Deus na Igreja de Lisboa, ao longo da história. Verdadeiro sinal dos tempos e do estímulo a caminhar no amor, na esperança e na fé incondicional em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo; mas, com particular incidência, as bênçãos que o mesmo Senhor a quem pertence o ontem, o hoje e a eternidade, derramou no passado recente: o caminho sinodal, a realização da Jornada Mundial da Juventude e as muitas vidas de santidade de sacerdotes, de consagrados e de leigos. Tudo tem contribuído para um compromisso de evangelização e para um caminho de sinodalidade.

Em segundo lugar, as vicissitudes eclesiais, sociais e culturais das últimas décadas têm sido, para a nossa Igreja, de facto, despertadores para a missão evangelizadora. Não seria difícil descrever as etapas e analisar as causas deste novo paradigma pastoral; mas, limitar-me-ei a considerá-lo como um dado de facto e acrescentar o meu testemunho. Antes de mais, a nossa sociedade está em constante mutação, sendo que este caráter mutável constitui o âmago de todas as vertentes antropológicas, ou seja, diz respeito a todos e à integralidade do ser humano. Assim, não são apenas as escolhas profissionais que vão mudando ao ritmo da oferta de emprego, nem a voragem com que hoje se embarca na pluralidade de experiências e na diversidade de possibilidades, para depois se tomar uma decisão... Também a dimensão da espiritualidade como que adquiriu um “ritmo” diferente. É assim um misto de espiritualidade buffet e self service, em que se tende a dispensar os “intermediários” e se colhem das várias propostas fragmentos de conveniência. O que constitui, para nós, um real desafio. Mais uma vez, a cena a que São Paulo alude nos Atos dos Apóstolos, no discurso tido no Areópago de Atenas sobre as muitas divindades que flutuavam nas ruas da cidade, inclusive o deus desconhecido, é atual também hoje.

Tal como sempre, também hoje, à Igreja, incumbe a grave responsabilidade de indicar o verdadeiro alimento, a verdadeira água, e oferecê-lo. É essa a sua missão urgente.

Como já anotava o teólogo Yves Congar, acerca da pertinência da missão evangelizadora, conservando uma desarmante atualidade, e cito: “o nosso mundo já não está naquela espécie de harmonia e homogeneidade com a cultura católica, com os seus símbolos, com as formas de expressão católicas. Simplesmente é profano, secular, laico; é científico e técnico; mas também, cada vez mais, utilitário, hiper sensual, violento, afrodisíaco. Em larga medida é ateu, não porque esteja demonstrada a inexistência de Deus, mas porque se constrói cada vez mais fora da perspetiva de Deus e do seu culto. E rematava: hoje, exigem-se gestos verdadeiros, uma palavra simples e verdadeira, sinais fortes e compreensíveis. Quer-se que a liturgia seja de Alguém, que seja expressão da sua alma e, por isso, que envolva e diga respeito à vida.”

Queremos ser Igreja Missionária que, ao estilo de Maria, se levanta apressadamente para a montanha do mundo e da humanidade.

Sé Patriarcal de Lisboa, 2 de setembro de 2023
+ Rui Valério, Patriarca de Lisboa

D. Rui Valério: o novo Patriarca de Lisboa

RuiValerio2D. Rui Valério: Mensagem à amada Igreja de Lisboa

1. Obrigado, Lisboa, capital da juventude e cidade da esperança, por teres iluminado de alegria o céu do mundo e fortalecido de amor o coração de todos os que acreditam na Vida. Para sempre os teus dias serão Jornadas de encontro e a tua história de horizontes onde todos têm lugar.

Como a terra depois de arada permanece em silêncio para que a força transbordante das sementes nela lançadas fecunde e cresça, também este é, para nós, o tempo do silêncio para que os grãos de vida e esperança, que a Jornada Mundial da Juventude derramou em nossos corações, germinem e tragam fruto abundante de humildade, de santidade e de serviço missionário que sonha chegar a todos.

2. Por isso, apenas três sentimentos tomam conta do meu coração na circunstância do chamamento deste pobre e humilde servo do Senhor para Patriarca de Lisboa.

O primeiro está contido nas palavras temor e tremor: A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque olhou para este humilde servo e, embora conhecendo a dimensão e natureza dos seus limites, o chamou à grandiosa missão de servir a Igreja de Lisboa. Uma Barca imensa repleta de vida, de serviço, de santidade e de história missionária… uma grandiosidade a contrastar com a pequenez dos meus remos.

Enche-me de esperança, contudo, a certeza de que Cristo e o Espírito, com Maria, são os verdadeiros guias e protagonistas da Igreja; a graça e a força de Deus, a substância de toda a ação pastoral; o Evangelho de Jesus, a real matéria da missão. Por isso, confio que, através da minha fragilidade e pequenez, possam chegar a todos a força e a graça do Senhor. Nunca, como nesta hora, ressoam vigorosamente as palavras de São Paulo “quando sou fraco, então é que sou forte”.

Assim, com temor e tremor, ciente da minha fragilidade, mas por amor a Cristo e à sua Igreja, na mais estrita fidelidade ao Santo Padre e em espírito de obediência, na graça de Deus e na alegria do Espírito, digo com Nossa Senhora “Sim, faça-se segundo a Vossa Palavra”.

O segundo sentimento decorre da minha intenção de escutar: “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho” (Hb 1, 1-3), na prontidão e alegria dos jovens, nos gestos e palavras do Papa Francisco, na disponibilidade e serviço de tanta instituição e na generosidade de muitas pessoas. Aqui, em Lisboa, Deus falou e tocou o coração e a vida da nossa amada Igreja, na qual estão todos e todos dela fazem parte. Estamos convocados a escutar-nos reciprocamente, permanecendo e caminhando juntos, ao bom jeito de sinodalidade, para escutar a voz de Deus na Palavra que Ele dirigiu a cada um de nós. Assim, a escuta é ponto estruturante do nosso programa, como o é o exemplo dos apóstolos pobres, despojados e desprendidos de tudo, mas cheios do Espírito Santo que os configurava a Cristo vivo e que, com Maria Santíssima, os capacitava para incendiarem de amor o coração da humanidade, escancarando o horizonte de vida de cada pessoa à luz da eternidade.

Assumiremos como prática o gesto próprio do Bom Pastor que deixou as noventa e nove ovelhas para ir à procura da que se perdera. Para Jesus Cristo, não é lícito deixar ninguém para trás. E um dos modos mais pertinentes para manter viva a chama e a mística da Jornada Mundial da Juventude é não deslocar o foco dos jovens. Assim, no horizonte de vida e ação da nossa Igreja está bem presente quanto afirmava São Paulo VI acerca da Igreja ter de ser missionária sob pena de não ser e, analogamente, o Papa Francisco, ainda mais concreto, que sem jovens a Igreja simplesmente morre. Para os jovens e com os jovens, somos chamados a ser Igreja missionária e em saída, levando no coração o ardor de chegar a todos.

O terceiro sentimento é de alegria no serviço. Na presença do Senhor, de quem recebeu o maravilhoso dom da esperança e da vida nova e o mandato missionário de o levar aos recantos mais escondidos da interioridade de cada um de nós, bem como aos quatro cantos do mundo inteiro, a Igreja de Lisboa estará à altura da confiança que Cristo Jesus uma vez mais lhe confiou.

3. Igreja abençoada por infinitas graças que, no decorrer dos séculos, mas sobretudo no dealbar de épocas, têm configurado o rosto de uma Igreja aberta, corajosa, que não vira costas a nenhum desafio e que faz do serviço a Cristo e ao Evangelho a fonte da sua alegria. Firme na fé e segura no caminho do amor, sabe que é barca guiada e protegida por Cristo, pela Santíssima Virgem, São Vicente e Santo António, com sacerdotes, diáconos, religiosos(as) e leigos(as) conscientes de que são hoje, como noutras eras, chamados a estar dentro e nos lugares de charneira.

Assim, a Igreja de Lisboa, missionária e evangelizadora, tem no Tejo e no mar que a banha essa faceta, cantada por Pessoa na obra Mensagem: “E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma / E faz a febre em mim de navegar / Só encontrará de Deus na eterna calma / O porto sempre por achar.”

4. Agradeço ao Senhor a sua confiança. Agradeço à Santa Igreja: o encorajamento do Santo Padre, o apoio do Senhor Núncio Apostólico e o estímulo e amizade do Senhor D. Manuel Clemente, a quem saúdo reconhecendo, grato, o exemplo de Bom Pastor que nos ensina a dar a vida pelo povo de Deus, para que esse mesmo povo tenha vida em abundância.

5. Saúdo os Senhores Bispos Auxiliares, D. Joaquim Mendes e D. Américo Aguiar, como irmão ao serviço do Senhor e da sua Igreja, disposto a um verdadeiro espírito de colaboração para fazer da ação pastoral um itinerário de configuração a Cristo. Toca-me, particularmente, a profundidade espiritual da vossa vida e o carácter eclesial da vossa missão.

Saúdo o Presbitério de Lisboa e todos os sacerdotes que aqui vivem e trabalham. Pronto a caminhar convosco, é com gratidão e alegria que vejo em vós o rosto da dedicação total a Cristo e à Igreja. A vossa vida de comunhão com o Senhor edifica-me e estimula-me a servir todos com coragem e generosidade pastoral.

Saúdo os diáconos permanentes, expressão viva do serviço e da caridade da Igreja que, no Patriarcado de Lisboa, são ainda o rosto atual do nosso amado Padroeiro, São Vicente: caminharemos juntos e juntos servimos o Senhor e os irmãos.

Saúdo os(as) religiosos(as) e consagrados(as), louvando o Senhor por ter feito de Lisboa um oásis para a vida de oração, contemplação e ação de tantas ordens, congregações, institutos e estilos de vida, cujo eixo está na dádiva total a Cristo.

Saúdo os leigos, na luz sinodal que nos impele a caminhar juntos para realizar a plenitude da vocação da Igreja, como Corpo de Cristo. Na mudança de época que vivemos, pertence-vos a vós a determinante responsabilidade da Evangelização do mundo e da cultura nas suas mais variadas vertentes, e de configurar o rosto sinodal do Povo de Deus.

Saúdo os jovens, agradecendo, desde já, o dom da comparência na Jornada Mundial da Juventude e a dádiva da alegria e do entusiasmo com que iluminaram de esperança o céu da humanidade. Agora sois os depositários de um dinamismo de vida e esperança que juntos iremos expandir para manter vivo.

Saúdo os irmãos e irmãs vítimas de abusos por membros da Igreja, meus irmãos; partilho da vossa dor e, juntos, vamos prosseguir, com esperança, no caminho da cura total do vosso e nosso sofrimento, da tolerância zero.

Saúdo todas as mulheres e homens de boa vontade, com afeto e disponibilidade para dialogar, ciente de que todos somos chamados a construir o bem e a servir a casa comum onde nos é dado coabitar pacífica e harmoniosamente.

Saúdo, enfim, as ilustres entidades oficiais, detentoras da honrosa vocação de servir a comunidade; em espírito de cooperação conjugaremos esforços para promover a dignidade de cada pessoa e responder a todos os desafios humanistas.

In Manibus Tuis
+ Rui Valério

Assistência religiosa aos doentes

Doente1Impedir a assistência espiritual e religiosa a um doente é ilegal, injusto e desumano

O Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa (SAER) existe nos hospitais para garantir que os utentes sejam assistidos nas suas necessidades espirituais e religiosas de forma, adequada e permanente (1). É regulado pelo Decreto-lei 253/2009, de 27 de setembro, e está integrado nos cuidados de saúde prestados pelas unidades hospitalares, contribuindo, dessa forma, «para a qualidade dos cuidados prestados» (2) e para um hospital humanizado e centrado na pessoa.

Dois motivos essenciais e relacionados entre si fundamentam a existência do SAER nos hospitais modernos:

1º – O direito do utente à assistência espiritual e religiosa, dando conta do inegociável direito à liberdade religiosa inscrito no Código dos Direitos Humanos, garantido pela Constituição e regulado pela lei de liberdade religiosa. O internamento hospitalar não pode, por isso, constituir um impedimento ao «direito à assistência religiosa e à prática de atos de culto» (3) em liberdade de consciência. Neste sentido, impedir a alguém o acesso à assistência espiritual e religiosa é interferir no foro interno da consciência e substituir-se ou apropriar-se da vontade da pessoa de forma autoritária, intolerante, ilegal e injusta.

2º – A assistência espiritual e religiosa é «uma necessidade essencial, com efeitos relevantes na relação com o sofrimento e a doença» (4), sendo de particular relevância no sofrimento severo e em situações de fim de vida. Tendo como fundamento a investigação científica e indo ao encontro da prática de profissionais de saúde e da experiências das religiões, esta afirmação do Decreto-lei reconhece que a espiritualidade e a prática da fé, através da satisfação das necessidades espirituais, são promotoras e preventoras de saúde física e mental, contribuem para a recuperação da saúde e estão associadas a sentimentos de bem-estar, paz, conforto, reconciliação, propósito e sentido de vida, sendo uma preciosa ajuda no sofrimento. Pelo contrário, a negação, desvalorização ou marginalização das necessidades espirituais é, para o utente, fonte de grande angústia espiritual que acaba por se manifestar sintomatologicamente associada ao aumento de tensão, estados confusionais, ansiedade, depressão, desesperança, desejo de morte, comportamentos suicidas e até pedidos de eutanásia, levando a atitudes terapêuticas inadequadas e provocadoras de mais sofrimento. Neste sentido, impedir a um doente o acesso à assistência espiritual e religiosa é o mesmo que impedir a terapêutica adequada e aumentar o sofrimento, resultado numa atitude brutal, insensível, violenta e desumana.

Na minha prática assistencial – enquanto Assistente Espiritual de um grande hospital da área Metropolitana Lisboa, e a quem não foi vedado o acesso a utentes com covid-19 –, foi possível aferir a enorme importância que a presença, a visita e o acompanhamento espiritual prestado aos doentes que o solicitaram, e que se encontravam em situação de isolamento, assumia na sua própria condição, permitindo-lhes enfrentar os medos, as dúvidas, os anseios, as questões fundamentais da vida e reconduzi-los à perceção do sentido, à animação e à mitigação da angústia e do sentimento de solidão. Foi possível resgatar sentimentos de esperança, de confiança e de resiliência. Foi possível estabelecer ligações, foi possível estabelecer contactos com as famílias (até com o recurso das tecnologias e de videochamadas), salvaguardando o precioso e escasso tempo de médicos e enfermeiros para outras tarefas, e tornar mais presente o sabor dos afetos. Foi possível aumentar as respostas para uma assistência adequada e humanizada aos doentes, e não apenas para um cuidado técnico, que se reconhece como fundamental.

Evidentemente toda esta intervenção se desenvolveu no mais rigoroso cumprimento de todas as estritas normas, procedimentos e protocolos de segurança, tendo para tal contribuído o precioso envolvimento e instruções dos diversos profissionais, que instruíram, orientaram, esclareceram e integraram o Assistente Espiritual.

Acresce dizer que, com a consciência do valor desta presença junto dos doentes em questão, muitas das solicitações partiram dos próprios profissionais. Mais ainda, partilhando uma experiência comum, também os vários profissionais puderam sentir no Assistente Espiritual, um elemento mais no seio da Equipa Assistencial. Acolhendo-o e considerando-o. Num contexto muito complexo chegámos a desenhar e a construir sorrisos, nos utentes e nos profissionais.

Haverá orientações associadas às regras de contingência, face à pandemia, que fundamentem o impedimento ou proíbam a assistência espiritual e religiosa em contexto hospitalar? Que se saiba, não. Não parece existir nada substancialmente diferente daquilo que está inscrito e regulado pelo Decreto-lei 253/2009, onde não há doentes de primeira ou de segunda em relação à assistência espiritual. Sabemos que a covid-19 é uma situação infeto contagiosa grave que, em contexto de cuidados de saúde, exige rigor na execução dos protocolos e bom senso para evitar o contágio e propagação da infeção entre profissionais e para a comunidade. Sabemo-lo e respeitamo-lo!

A meu ver, não atender, desvalorizar, negar, impedir a assistência espiritual e religiosa a um doente, com ou sem covid, que a solicita por si ou por intermédio da família é ilegal e injusto, é brutal e é desumano. Percebo-o não a partir da compaixão e de cuidados integrais, mas de uma filosofia que reduz a pessoa humana a uma visão bio mecanicista e nega outras dimensões, nomeadamente a dimensão espiritual e religiosa e a sua importância. Impedir a assistência espiritual e religiosa, sendo que esta é um direito e uma necessidade do doente reconhecida por lei, parece-me resultar numa postura, contrária à lei e aos interesses do doente. Não será tempo de, em nome da razão, da verdade e da compaixão, reconhecer, atender e promover os direitos dos doentes, proporcionando-lhes que usem a totalidade dos seus recursos, nomeadamente os espirituais e religiosos, no enfrentamento da doença e do sofrimento?
Assim o entendo.

Fernando d’Oliveira, Assistente Espiritual e Religioso da Casa de Saúde do Telhal
Ecclesia, 07-08-2020

 

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